Correio Braziliense
Desde o Natal, o ex-presidente da Câmara
Arthur Lira articulava a aprovação da PEC da Blindagem, que ocorreu com folga
de 45 votos, juntando parlamentares de todos os matizes
O vento mudou na política, agora favorece mais à esquerda do que à direita, porque a oposição entrou em confronto com o espírito democrático e patriótico da maioria da população. As manifestações de domingo contra a PEC da Blindagem e o PL da Anistia marcaram esse ponto de inflexão. A entropia, o fisiologismo e o patrimonialismo, anabolizados pelas emendas parlamentares, são protagonizados por políticos ligados a velhas oligarquias, cuja reeleição não depende da opinião pública nem de redes sociais, mas de tradicionais "currais eleitorais". Agora, a Câmara descobriu que ainda existe no Brasil uma sociedade civil organizada, capaz de se indignar. Eleito pelo voto majoritário, cabe ao Senado corrigir o rumo do Congresso.
Foi essa indignação que tirou a esquerda do
canto do ringue e possibilitou que um amplo leque de associações, entidades e
movimentos organizassem, em apenas 72 horas, as grandes manifestações do fim de
semana passado contra a impunidade e o golpismo. Em 33 cidades, incluindo todas
as capitais, multidões deixaram claro que não aceitam impunidade nem
retrocessos. Sem anistia, nem blindagem para corruptos, foi esse o cristalino
recado dado. Foi uma espécie de "assim também já é demais", como
cantava a Clementina de Jesus.
Na Avenida Paulista, em São Paulo, cerca de
42 mil pessoas se reuniram, número comparável aos atos bolsonaristas do 7 de
Setembro. No Rio, a orla de Copacabana também recebeu 42 mil manifestantes. Em
Brasília, a Esplanada dos Ministérios foi tomada por milhares que marcharam até
o Congresso. Salvador, Belo Horizonte, Porto Alegre, Recife e Belém completaram
o mapa das mobilizações. A convocatória partiu de frentes sociais, sindicatos e
partidos de esquerda, mas ganhou visibilidade com artistas como Caetano Veloso,
Chico Buarque, Gilberto Gil, Djavan, Paulinho da Viola, Chico César, Daniela
Mercury e Wagner Moura.
O estopim da mobilização não foi apenas a
pauta do Congresso, mas também o somatório de fatos recentes que indignaram a
opinião pública. A bandeira dos Estados Unidos erguida em ato bolsonarista na
Paulista foi vista como afronta à soberania. O projeto de anistia ao
ex-presidente Jair Bolsonaro, condenado pelo STF a 27 anos e três meses de
prisão, soou como traição à democracia. A tentativa de golpe de 8 de janeiro,
cujas imagens estão na memória da população, assim como acontece com a pandemia
durante o governo Bolsonaro, foi amplamente repudiada.
A gota d´água foi a PEC da Blindagem, que
consolidou a percepção de que os deputados se consideram acima de todos. O
Congresso hoje é o mais distante dos Poderes, quando deveria ser o contrário;
mesmo assim, quer ser intocável. O deputado gaúcho Alcibio "Bibo"
Nunes, vice-líder do PL, chegou a ser descarado: "Tenho dois processos em
andamento, cada um pede 1 milhão. Eu quero é estar blindado. Viva a
blindagem!".
Bilhões e bilhões
As principais forças ocultas da PEC da
Blindagem são mesmo aquelas que estão na mira das investigações sobre o
orçamento secreto. O STF identificou quase uma centena de deputados e senadores
envolvidos em situação gravíssima, com bilhões de reais de origem e destino
incertos. Nos últimos seis anos, R$ 186,3 bilhões foram distribuídos em emendas
sem transparência — valor equivalente a US$ 34 bilhões. É muito dinheiro, muito
mesmo. Um mosaico de 6 mil emendas sob suspeita revela um padrão de corrupção
naturalizada: suborno, peculato, lavagem de dinheiro, fraude em licitações.
Esses deputados já deveriam se dar por satisfeitos porque a imunidade
parlamentar lhes garante o sigilo dos inquéritos, mas querem mais: impedir que
investigações sejam realizadas.
Na semana passada, novos inquéritos foram
abertos sobre 148 casos, somando R$ 85,4 milhões em desvios, destacou José
Casado, colunista da Veja, nesta segunda-feira. A lista de crimes citada
pelo STF inclui peculato, corrupção e desobediência a ordem judicial. É um
retrato devastador das legislaturas de 2019 e 2023, marcadas pela apropriação
privada de recursos públicos, uma conta que põe na berlinda o ex-presidente da
Câmara Arthur Lira (PP-AL). A PEC da Blindagem surge como reação a esse cerco
judicial. A votação mostrou que o cretinismo parlamentar contamina o Congresso.
Desde o Natal, Lira articulava a aprovação da
PEC da Blindagem, que ocorreu com folga de 45 votos, juntando parlamentares de
todos os matizes: extrema-direita bolsonarista, Centrão e apoio de parte da
esquerda. Houve um pacto perverso entre deputados enrolados e
bolsonaristas-raiz para aprovar de roldão, no mesmo pacote, a impunidade e a
anistia, aproveitando-se do caldo de cultura de um Parlamento cada vez mais
corporativista e descolado dos interesses dos eleitores que deveria
representar. O presidente Luiz Inácio Lula da Silva, em minoria no Congresso,
ficou olhando o circo pegar fogo.
O episódio expôs, mais uma vez, a fragilidade do jovem presidente da Câmara, Hugo Motta (PR-PB). Em março, ele havia sido atropelado por bolsonaristas que tentaram pautar a anistia. Os protestos foram uma reação quase espontânea a um Congresso que insiste em legislar para si mesmo enquanto ignora a sociedade. Foram também demonstração de força popular em defesa do STF, das instituições e da democracia. As ruas devolveram o cinismo com indignação. Qualquer tentativa de blindagem ou anistia enfrentará resistência e estará fadada ao fracasso.
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