terça-feira, 23 de setembro de 2025

Um acordão em que ninguém ganha e o país perde. Por Vera Magalhães

O Globo

Resistência da extrema direita e revolta mostrada nas ruas por setores que vão do centro à esquerda demolem ideia de 'pacificar' o Brasil pela contemporização

A pacificação do país depende do respeito à Constituição, da aplicação das leis e do fortalecimento das instituições, não havendo possibilidade de se confundir a saudável e necessária pacificação com a covardia do apaziguamento, que significa impunidade e desrespeito à Constituição Federal. E mais: significa incentivo a novas tentativas de golpe de Estado.

A fala acima é do ministro Alexandre de Moraes, relator da Ação Penal 2668, da chamada trama golpista. Foi lida na introdução ao seu relatório no último dia 9, portanto há apenas 20 dias. Depois disso, Moraes foi confrontado abertamente pelo colega Luiz Fux na Primeira Turma do STF, mas teve sua posição chancelada ipsis literis pelos outros três integrantes do colegiado, o que resultou na condenação de Jair Bolsonaro e outros sete réus por tentativa de golpe de Estado e outros quatro crimes contra a democracia. O ex-presidente da República foi condenado a 27 anos e 3 meses em regime fechado.

Exatamente uma semana depois, em outra quinta-feira, se reuniam em São Paulo o ex-presidente Michel Temer, o deputado Paulinho da Força --recém-designado relator de uma proposta de anistia cuja urgência foi aprovada a toque de caixa e na esteira da igualmente rápida aprovação de uma Proposta de Emenda à Constituição que torna praticamente impossível processar parlamentares, mesmo por crimes comuns e mesmo se pegos em flagrante-- e o deputado Aécio Neves, reaparecido depois de um período de oito anos de ostracismo político.

Por telefone, não se sabe por quanto tempo e em que formato, foram contatados o presidente da Câmara, Hugo Motta, artíficie das votações-relâmpago e também daquela exótica reunião, e dois ministros do STF: o próprio Alexandre de Moraes e o decano Gilmar Mendes, que uma semana antes fizera questão de comparecer pessoalmente à Primeira Turma para chancelar publicamente Moraes.

Ninguém fez questão de esconder a reunião e o assunto: orgulhosos pela súbita relevância, participantes até gravaram vídeos e postaram o encontro nas redes sociais. Paulinho, que não é jurista, se pôs a fazer contas sobre redução de penas de crimes complexos, dispostos numa lei aprovada em 2021 em substituição à Lei de Segurança Nacional, uma herança da ditadura que ainda perdurava.

Ali, já estavam sendo convocados atos em todo o país contra a espantosa PEC da Blindagem, que, na prática, quer livrar os parlamentares do mesmo STF que julgou Bolsonaro numa semana, e cujos integrantes conversavam com os autores da proposta uma semana depois.

As reações à tentativa de "pacificar" o país por meio do casuísmo de se mexer em leis para condescender com quem, no entendimento de amplas maiorias do próprio Supremo, em centenas de julgamentos, dos "bagrinhos" aos políticos, tentou abolir a democracia no país, foram as esperadas: do lado da extrema direita, não se aceita nada que não seja anistia ampla, geral e irrestrita. Do lado da sociedade, centenas foram às ruas em todo o país neste domingo gritar não à PEC da Blindagem e à anistia. A ideia de contemporização não agradou a ninguém e está longe de pacificar o país.

Se o STF cair na armadilha de negociar com a mesma Câmara que dois dias antes de chamá-lo ao "entendimento" chocou o país ao rasgar o regimento para garantir ampla impunidade aos seus integrantes, vai dar margem a que se questione tudo que fez até aqui nos julgamentos do 8 de Janeiro e da trama golpista.

Quem pede anistia são os mesmos que buscam nos Estados Unidos punições aos ministros da Corte, já decretadas, aliás, contra Alexandre de Moraes. Contemporizar significaria demonstrar que outro país tem alguma razão ao apontar que o STF age de forma politizada nos julgamentos mais importantes em termos institucionais desde a redemocratização. Perde o país e nenhuma das partes que se quer "pacificar" sai satisfeita do acordão.

 

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