O Globo
Resistência da extrema direita e revolta
mostrada nas ruas por setores que vão do centro à esquerda demolem ideia de
'pacificar' o Brasil pela contemporização
A pacificação do país depende do respeito à Constituição, da aplicação das leis e do fortalecimento das instituições, não havendo possibilidade de se confundir a saudável e necessária pacificação com a covardia do apaziguamento, que significa impunidade e desrespeito à Constituição Federal. E mais: significa incentivo a novas tentativas de golpe de Estado.
A fala acima é do ministro Alexandre de
Moraes, relator da Ação Penal 2668, da chamada trama golpista. Foi lida na
introdução ao seu relatório no último dia 9, portanto há apenas 20 dias. Depois
disso, Moraes foi confrontado abertamente pelo colega Luiz Fux na Primeira
Turma do STF, mas teve sua posição chancelada ipsis literis pelos outros três
integrantes do colegiado, o que resultou na condenação de Jair Bolsonaro e
outros sete réus por tentativa de golpe de Estado e outros quatro crimes contra
a democracia. O ex-presidente da República foi condenado a 27 anos e 3 meses em
regime fechado.
Exatamente uma semana depois, em outra
quinta-feira, se reuniam em São Paulo o ex-presidente Michel Temer, o deputado
Paulinho da Força --recém-designado relator de uma proposta de anistia cuja
urgência foi aprovada a toque de caixa e na esteira da igualmente rápida
aprovação de uma Proposta de Emenda à Constituição que torna praticamente
impossível processar parlamentares, mesmo por crimes comuns e mesmo se pegos em
flagrante-- e o deputado Aécio Neves, reaparecido depois de um período de oito
anos de ostracismo político.
Por telefone, não se sabe por quanto tempo e
em que formato, foram contatados o presidente da Câmara, Hugo Motta, artíficie
das votações-relâmpago e também daquela exótica reunião, e dois ministros do
STF: o próprio Alexandre de Moraes e o decano Gilmar Mendes, que uma semana
antes fizera questão de comparecer pessoalmente à Primeira Turma para chancelar
publicamente Moraes.
Ninguém fez questão de esconder a reunião e o
assunto: orgulhosos pela súbita relevância, participantes até gravaram vídeos e
postaram o encontro nas redes sociais. Paulinho, que não é jurista, se pôs a
fazer contas sobre redução de penas de crimes complexos, dispostos numa lei
aprovada em 2021 em substituição à Lei de Segurança Nacional, uma herança da
ditadura que ainda perdurava.
Ali, já estavam sendo convocados atos em todo
o país contra a espantosa PEC da Blindagem, que, na prática, quer livrar os
parlamentares do mesmo STF que julgou Bolsonaro numa semana, e cujos
integrantes conversavam com os autores da proposta uma semana depois.
As reações à tentativa de
"pacificar" o país por meio do casuísmo de se mexer em leis para
condescender com quem, no entendimento de amplas maiorias do próprio Supremo,
em centenas de julgamentos, dos "bagrinhos" aos políticos, tentou
abolir a democracia no país, foram as esperadas: do lado da extrema direita,
não se aceita nada que não seja anistia ampla, geral e irrestrita. Do lado da
sociedade, centenas
foram às ruas em todo o país neste domingo gritar não à PEC da Blindagem e à
anistia. A ideia de contemporização não agradou a ninguém e está longe de
pacificar o país.
Se o STF cair na armadilha de negociar com a
mesma Câmara que dois dias antes de chamá-lo ao "entendimento" chocou
o país ao rasgar o regimento para garantir ampla impunidade aos seus
integrantes, vai dar margem a que se questione tudo que fez até aqui nos
julgamentos do 8 de Janeiro e da trama golpista.
Quem pede anistia são os mesmos que buscam
nos Estados Unidos punições aos ministros da Corte, já decretadas, aliás,
contra Alexandre de Moraes. Contemporizar significaria demonstrar que outro
país tem alguma razão ao apontar que o STF age de forma politizada nos
julgamentos mais importantes em termos institucionais desde a redemocratização.
Perde o país e nenhuma das partes que se quer "pacificar" sai
satisfeita do acordão.
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