Trump traz esperança à Ucrânia
Por O Globo
É incerto até que ponto ele honrará suas
declarações, mas a reviravolta, se mantida, será auspiciosa
Em mais uma reviravolta notável e surpreendente, o presidente americano, Donald Trump, afirmou que a Ucrânia poderá reconquistar todo o território perdido para as tropas russas — ou “até mais”. Depois de encontro com o ucraniano Volodymyr Zelensky, em Nova York para a Assembleia Geral da ONU, Trump escreveu numa rede social: “Considero que a Ucrânia, com o apoio da União Europeia, tem condições de lutar e recuperar todo o seu território em sua forma original”. Até então, ele vinha insistindo que Zelensky “não tinha cartas” para vencer e sugeria implicitamente que cedesse território para pôr fim ao conflito iniciado pelos russos em fevereiro de 2022. Como tudo o que vem de Trump, ainda é incerto o teor prático da mudança na posição americana em relação à Ucrânia (ele falou em fornecer armas para a Otan, a aliança militar ocidental, “fazer o que quiser”). Se mantida, porém, será uma mudança auspiciosa. Repetidas vezes, o russo Vladimir Putin demonstrou não ter interesse na paz.
Diplomatas europeus ainda tentam entender a
reviravolta. Ao que parece, a paciência de Trump se esgotou. Apregoando manter
boa relação com Putin, ele prometeu acabar com a guerra em 24 horas na campanha
à Presidência. Depois de eleito, o prazo mudou para cem dias. Passados 208
desde a posse, em 15 de agosto, estendeu o tapete vermelho a Putin em reunião
de cúpula no Alasca. A promessa de um futuro encontro com a presença de
Zelensky não deu em nada. Enquanto isso, os ataques russos não deram trégua. E
não só na Ucrânia.
A benevolência incentivou Putin a testar a
determinação da Otan. Há duas semanas, cerca de duas dezenas de drones russos
invadiram o espaço aéreo da Polônia. Três dias depois, outro incidente foi
registrado na Romênia. Na semana passada, três jatos russos MiG-31 sobrevoaram
a Estônia por 12 minutos. Por fim, nesta segunda-feira, drones forçaram o fechamento
do aeroporto de Copenhague por várias horas. “Não podemos descartar que tenham
sido os russos”, disse a primeira-ministra dinamarquesa, Mette Frederiksen.
Questionado se as forças da Otan deveriam derrubar aeronaves russas que
invadirem seu espaço aéreo, Trump foi taxativo: “Sim”.
Aparentemente, a mudança é uma tentativa de
pressionar a Rússia, até então tratada com deferência exagerada, a fazer
concessões. Num cenário em que Trump amplie o apoio militar à Ucrânia, Putin
será forçado a reavaliar o custo de suas agressões. A Turquia foi firme em
2015, quando derrubou um caça russo, e não houve mais incidentes graves. Mas,
Trump sendo Trump, o ceticismo é a postura mais recomendada. Há uma dose de
oportunismo em suas declarações. Ele deu a impressão de que adotará uma postura
coadjuvante, empurrando a fatura para a Otan. “Desejo o melhor para ambos os
países”, afirmou.
Horas depois das declarações que marcaram a
reviravolta, o secretário de Estado, Marco Rubio, tentou corrigi-las. Voltou a
dizer que a Casa Branca não acredita ser possível acabar com a guerra com força
militar. O próprio Trump foi reticente sobre a participação de forças
americanas na guerra. Os próximos dias dirão se sua inflexão foi mesmo para
valer — e se a Europa pode ter esperança de, enfim, com apoio americano, acabar
com o maior conflito em seu território desde a Segunda Guerra.
É vital fechar fábricas clandestinas de armas
para o crime organizado
Por O Globo
Com aperto contra contrabando e desvio de
armamento legal, cresceu a aposta das facções na produção local
Em agosto, a Polícia Federal apreendeu num
galpão industrial de Santa Bárbara D’Oeste, interior de São Paulo, dez máquinas
de última geração usadas para fabricar ilegalmente fuzis AR-15 — havia 40 deles
no local. Um dia depois, o Grupo de Atuação de Combate ao Crime Organizado
(Gaeco) descobriu uma fábrica de munição caseira com mais de cem armas em São
Roque, também no interior paulista. Não bastassem o tráfico de armas que
circulam sem embaraço pelas fronteiras e o desvio de armas compradas
legalmente, tem crescido o fornecimento doméstico do crime organizado por meio
de usinas camufladas que produzem armamento “fantasma”.
Essas linhas de fabricação clandestina têm se
destacado no abastecimento dos arsenais do crime, segundo artigo dos
pesquisadores Bruno Langeani e Natália Pollachi, do Instituto Sou da Paz,
publicado em revista científica da London School of Economics. Eles verificaram
que, entre 2019 e 2023, a quantidade de metralhadoras e submetralhadoras
apreendidas aumentou 17,8% (de 790 para 931), e a de fuzis 44,8% (de 1.139 para
1.650). O mais preocupante é que 39% dos fuzis não tinham indicação de
fabricante. Eram fantasmas — evidência do funcionamento das fábricas ilegais de
armas. É, de acordo com os pesquisadores, um percentual muito alto, mesmo
levando em conta as dificuldades da polícia para identificar as armas
corretamente.
Não é de hoje que o crime organizado busca
fontes próximas de abastecimento para seus arsenais. O próprio crescimento da
criminalidade incentiva o surgimento dessas fábricas. Estudos forenses já
mostravam a prevalência de armas de fabricação “privada” nas apreensões. Um
deles revelou que 48% das submetralhadoras apreendidas em São Paulo em 2011 e
2012 eram armas artesanais, sem componentes industriais.
Livre de regulações, o mercado americano de
armamentos é a principal fonte de partes e peças montadas nas linhas de
produção clandestinas. O Paraguai costuma ser escala nas rotas de contrabando,
tanto das armas originais quanto das montadas, por vezes com peças de
fabricantes conhecidos. Os pesquisadores citam um caso ocorrido entre Pedro
Juan Caballero, no Paraguai, e Ponta Porã, no Brasil, cidades divididas apenas
por uma avenida. Segundo o relato, a polícia parou o carro de uma família e
notou que as portas do veículo pareciam pesadas demais. Dentro delas estavam
sete pistolas Glock e quatro fuzis fantasmas, fornecidos por linhas de montagem
que funcionam ao longo da fronteira.
Há inúmeras evidências de como a criminalidade passou a obter acesso a armas legais em virtude da política armamentista equivocada vigente durante o governo Bolsonaro (2019-2022). Agora, com a revogação do afrouxamento nas regras pelo atual governo, ganhou impulso a produção clandestina. Na repressão ao crime organizado, uma das prioridades deve ser cortar tais linhas de suprimento. As facções criminosas não podem se tornar autossuficientes no acesso ao principal recurso que usam para matar.
Mais apoio ao ainda improvável Estado
palestino
Por Folha de S. Paulo
Movimento encabeçado por França e Arábia
Saudita ganha adesões entre países de peso na diplomacia
A iniciativa cobra do Hamas que entregue os reféns e deponha armas, mas tem poucas chances sem os EUA e com Netanyahu agarrado ao poder
Em poucos dos últimos dias, ao menos dez
países ocidentais —incluindo França e Reino Unido,
dois pesos-pesados da diplomacia global— passaram a
reconhecer o Estado palestino. A posição anterior dessas nações era
a de só fazê-lo depois que Israel e
a Autoridade Nacional Palestina formalizassem
um acordo de paz definitivo.
O movimento, que deixa o governo do premiê
israelense Binyamin
Netanyahu ainda mais isolado, faz parte de uma iniciativa
franco-saudita para pôr fim à guerra em Gaza, com adesão de vários países
árabes e islâmicos.
A proposta em pauta, que vem sendo costurada
pelo presidente da França, Emmanuel
Macron, e pelo príncipe saudita Mohammed bin Salman, tem diversas
virtudes e um problema grave.
Pelo lado positivo, ela oferece um horizonte
de longo prazo. Não haverá paz na região enquanto não existir um Estado
palestino capaz de viver lado a lado com Israel. Igualmente importante, a
iniciativa cobra do Hamas que
entregue imediatamente todos os reféns e deponha suas armas.
De acordo com o plano, depois de estabelecido
um cessar-fogo, uma força sob mandato da ONU, composta
principalmente por países árabes, ocuparia Gaza, ajudaria na reconstrução e
supervisionaria a formação de um governo palestino sem o Hamas.
Há aí uma importante mudança de atitude, já
que algumas das nações árabes e islâmicas que agora subscrevem a iniciativa
forneciam, até o ataque de 7 de outubro de 2023, apoio político e financeiro ao
grupo terrorista.
Já a grande falha da proposta é que ela não
corresponde à realidade do terreno, o que a torna em alguma medida quixotesca.
Não existe, nem na Faixa de Gaza nem
na Cisjordânia,
um Estado a reconhecer. Gaza são ruínas, e a ANP não controla a maior parte da
Cisjordânia, sob ocupação israelense.
Reconhecer o que não existe lembra um tanto o
que ocorreu na Venezuela em
2019. Meio mundo reconheceu Juan Guaidó como
legítimo presidente interino, mas isso nunca passou de uma ficção —já que quem
detinha o comando sobre as instituições era (e ainda é) o ditador Nicolás
Maduro.
No mais, qualquer iniciativa de paz para a
região que não conte com a participação de Israel e dos EUA é algo com mínimas
chances de sucesso. Mas baixa probabilidade é diferente de nenhuma.
É aí que a inconstância de Donald Trump pode
revelar-se um trunfo. Hoje, o americano parece apoiar o projeto da extrema
direita israelense de ocupar Gaza,
deslocando palestinos do território. Mas, em se tratando do
republicano, a possibilidade de mudar de ideia nunca é desprezível.
Nesse caso, Netanyahu teria mais motivos para
interromper a carnificina e aceitar uma negociação abrangente. Além da pressão
internacional, Israel enfrenta crescente insatisfação interna.
Em qualquer hipótese, a proposta
franco-saudita tem o mérito de manter viva, ainda que somente no mundo da
diplomacia, a solução de dois Estados.
Guerra cultural em cartaz
Por Folha de S. Paulo
Prefeito de São Paulo usa disputa ideológica
para rescindir contrato com gestora do Theatro Municipal
Caso mostra efeitos danosos da polarização em
políticas públicas e a necessidade de contratos bem calibrados nas parcerias
com o Estado
O embate ideológico polarizado é nefasto
quando orienta políticas públicas, que deveriam seguir critérios técnicos. No
campo das artes, a crise no Theatro Municipal de São Paulo é
o exemplo mais recente desse efeito perverso.
Na quinta (19), o prefeito Ricardo Nunes (MDB) pediu a
rescisão do contrato com a organização social (OS) Sustenidos,
gestora do teatro desde junho de 2021.
A Fundação Theatro Municipal, que monitora a
atuação da Sustenidos, havia solicitado, no dia 12, que a OS demitisse um
funcionário por ele ter compartilhado postagem no Instagram que questionava a
comoção em relação à morte
do ativista conservador americano Charlie Kirk, no dia 10, porque
Kirk seria nazista.
O motivo alegado para o cancelamento do
contrato foi o não cumprimento desse pedido. A Sustenidos, em nota, repudiou o
conteúdo da postagem, feita em conta pessoal, sem vinculação com o teatro ou a
OS, mas declarou que a decisão não poderia se dar de forma açodada, sob risco
de infringir normas trabalhistas.
O funcionário foi afastado de suas funções e
um procedimento foi aberto no comitê de ética da entidade para avaliar o caso,
conforme recomendou um parecer de seus advogados.
A crítica à postagem foi amplificada por
políticos conservadores como o deputado federal Nikolas
Ferreira (PL-MG), e 28 vereadores à
direita enviaram ofício ao prefeito pedindo a rescisão.
Nunes usou um caso duvidoso, que levanta
questões sobre a liberdade de expressão e a autonomia das organizações sociais,
para suspender o contrato.
A suspensão poderia ter ocorrido em 2023,
quando o Tribunal de Contas do Município (TCM), após constatar metas de
produção não cumpridas e falhas em economicidade, determinou a
abertura de edital para a contratação de nova OS. Na segunda-feira
(22), um edital para esse fim foi aberto para consulta pública.
A atuação da Sustenidos também vem sendo
criticada por excesso de politização nas montagens operísticas, não só por
vereadores à direita, mas também por artistas, fãs de arte lírica
e especialistas no gênero. A entidade enfrentou, ainda, crises com setores
importantes do teatro —como o coro, a orquestra sinfônica e o balé— devido a
problemas de gestão e trabalhistas.
Do imbróglio, tiram-se os efeitos danosos da ideologia, seja de qual espectro político for, na administração pública e a necessidade de contratos bem calibrados, com monitoramento contínuo, nas parcerias do Estado com organizações de direito privado.
Brasil só tem a ganhar com abertura a diálogo
com Trump
Por Valor Econômico
Apesar das motivações políticas de Trump, a
apresentação pelo Brasil de argumentação e propostas técnicas detalhadas e
fundamentadas pode produzir algum resultado positivo
Brasil e Índia foram os dois únicos países
punidos com tarifas de 50% pelos Estados Unidos por motivos explicitamente
políticos. O caso brasileiro é inédito: é a primeira vez que um presidente
americano aplica sanções comerciais afirmando, entre outros motivos, que não
gostou das penas aplicadas pela Justiça ao candidato derrotado nas eleições,
por tentar um golpe de Estado. Donald Trump então vetou qualquer negociação com
autoridades brasileiras, enquanto buscava acordos com a maioria dos demais
países. Na Assembleia-Geral da ONU, porém, Trump abriu o primeiro espaço, ao
cruzar com o presidente Lula, que encerrara seu discurso de abertura do evento,
e combinar uma conversa. “Só negocio com quem eu gosto”, afirmou, citando a
“química” após o brevíssimo encontro com Lula.
Trump gosta de ter a iniciativa e mais uma
vez fez isso nos corredores da ONU, mesmo depois que o presidente brasileiro,
em um discurso diplomático, porém duro, reservou justas críticas ao
unilateralismo americano, que caminha para destruir as organizações
multilaterais construídas pelos EUA após a II Guerra, e a ingerência
inaceitável em assuntos domésticos, caso da interferência a favor do
ex-presidente Jair Bolsonaro, considerado por Trump um perseguido político.
A “química” pressentida por Trump pode durar
alguns dias ou servir de base a uma relação menos instável, embora
potencialmente conflituosa. O Brasil foge aos motivos básicos alegados pelos
EUA para taxar o país, e muito menos em 50%, diferentemente dos demais. Ele é
um entre pouco mais de uma dezena de nações com as quais os EUA têm superávit
comercial, e sua tarifa efetiva sobre importações americanas é pouco superior a
3%, contra tarifa média geral de 13%. É um país fechado, mas menos
protecionista em relação aos EUA, com os quais mantém relações há 200 anos.
As conversas diretas, que serão feitas à
distância, têm pontos de atenção. Poderão ser improdutivas e breves se os EUA
insistirem nas exigências políticas de benefícios a Bolsonaro. Imprevisível,
Trump pode querer repetir episódios como os que patrocinou com o presidente da
Ucrânia, Volodymyr Zelensky, ou da África do Sul, Cyril Ramaphosa, quando os
constrangeu com reprimendas grosseiras. Com Lula se recusando a negociar nos
termos de Trump, e colocando a barganha no terreno comercial, sem se preocupar
com prazos impostos pelos EUA, o presidente americano terá menos chances de repetir
os episódios com Zelensky e Ramaphosa.
Da mesma forma, o Brasil não irá a lugar
nenhum se, em vez de apresentar propostas factíveis de parceria, aferrar-se a
slogans ideológicos e declarações de princípios, que Trump despreza e não leva
a sério. Até agora o governo brasileiro não divulgou quais poderiam ser os
objetos de discussão produtiva com os EUA. Há possibilidades em torno dos
minerais críticos e estratégicos, pouco explorados ainda pelo país e objeto de
cobiça por Washington na disputa com a China, que frequentemente ameaça cortar
seu fornecimento aos americanos. A taxação de 20% sobre o etanol americano,
outra queixa explícita de Trump, pode ser amortecida. Por outro lado, o Brasil
deveria insistir no fim das tarifas sobre café e carnes, dois itens que estão
claramente provocando estragos nos orçamentos das famílias americanas e
contribuindo com a alta da inflação no país.
Na lista das prioridades do processo do USTR
contra o Brasil, que se desenrola, há também algo a fazer. Os EUA reclamam de
tarifas injustas e preferenciais, algo em que um exame bem feito poderia
encontrar pontos para um acordo. Corrigir as falhas apontadas pelos EUA na
fiscalização anticorrupção é algo que interessa também ao Brasil, assim como
combater o desmatamento ilegal, incrivelmente reclamado por um governo cuja
agenda antiambiental é explícita. Também há um campo de possibilidades sobre o
que os americanos consideram desrespeito à propriedade intelectual, embora suas
queixas específicas não sejam conhecidas publicamente.
O governo Lula, porém, é contrário à abertura
comercial, embora, se bem feita, ela beneficie o país. Isso limita bastante o
espaço da negociação bilateral com os Estados Unidos. Já a regulação das big
techs tornou-se um ponto inegociável pelos dois lados. Envolve soberania
nacional, segundo Lula, enquanto para Trump qualquer restrição às empresas
americanas é por princípio inegociável. No processo da USTR, comércio digital é
o primeiro ponto, reclamando de censura política nas redes sociais, o que não é
verdadeiro, e há queixas sobre o sistema de pagamento eletrônico, Pix, sobre o
qual o Brasil pode apresentar abertura para aprimoramentos, mas não restrições.
Apesar das motivações políticas de Trump, a apresentação pelo Brasil de argumentação e propostas técnicas detalhadas e fundamentadas pode produzir algum resultado positivo na conversas entre os dois presidentes. É mais a hora de demonstrar competência diplomática que protestos políticos. O Brasil só tem a ganhar, e nada a perder, com a fresta aberta inesperadamente por Trump.
O Senado não fez mais que a obrigação
Por O Estado de S. Paulo
Ao rejeitar a PEC da Blindagem, o Senado
apenas enterrou o monstrengo fuzilado pela sociedade indignada – que deve
permanecer alerta, pois o espectro do corporativismo criminoso segue vivo
A Câmara dos Deputados escreveu uma das
páginas mais vergonhosas da história republicana ao aprovar a chamada “PEC da
Blindagem” – ou da “Impunidade”, ou da “Bandidagem”, como queiram. Com ela, os
deputados, a título de defender prerrogativas parlamentares, assinaram um pacto
de autoproteção criminosa. Ontem, a Comissão de Constituição e Justiça do
Senado rejeitou in totum,
por 26 votos a 0, a aberração. Fez bem – mas não fez mais do que a obrigação.
A proposta exumava, em versão ainda mais
obscena, o sistema de licença prévia do Congresso para processar parlamentares,
mecanismo que vigorou entre 1988 e 2001 e que resultou em quase 300 pedidos de
investigação barrados – contra apenas um autorizado. A impunidade de
Hildebrando Pascoal, o “deputado da motosserra”, acusado de comandar homicídios
brutais e de envolvimento com o narcotráfico, é o emblema desse período de
vergonha. Foi justamente para pôr fim a essa era de impunidade que se aprovou a
Emenda Constitucional n.º 35/2001. A Câmara, duas décadas depois, quis
ressuscitar o cadáver político da licença prévia, pervertendo não só os mais
elementares princípios republicanos, mas também o simples bom senso.
Não parava aí. A PEC previa que as decisões
sobre prisão em flagrante e formação da culpa fossem tomadas em votação secreta
pelo plenário – devolvendo ao submundo o que a Emenda Constitucional n.º
76/2013 havia trazido à luz da transparência. Estendia foro privilegiado a
presidentes de partidos, cargo sem função estatal. E hipertrofiava a
inviolabilidade parlamentar, tornando-a salvo-conduto absoluto contra qualquer
responsabilização. Imunidade pervertida em impunidade, prerrogativa degenerada
em privilégio.
Alguns deputados tentaram traficar a falácia
de que se tratava de resgatar o “texto original” da Constituição. É um sofisma
pernicioso. O dispositivo da licença prévia foi concebido em um contexto de
transição democrática, para resguardar os mandatos depois de duas décadas de
cassações arbitrárias promovidas pelo regime militar. Hoje, num regime democrático
consolidado, o artifício não protege a democracia, mas os corruptos; não
defende a liberdade de representação, mas facilita a infiltração do crime
organizado no Parlamento. A pretexto de restaurar uma letra morta, a Câmara
seviciou o espírito da Constituição.
A indecência foi aprovada com articulação
consciente do Centrão e a cumplicidade covarde do presidente da Casa, Hugo
Motta. Não houve engano, não houve distração: houve dolo legislativo. O súbito
surto de “arrependimento” de alguns deputados, após a reação das ruas e das
redes sociais, é oportunismo puro. “Ninguém votou sem saber”, como lembrou o
senador Otto Alencar. As desculpas posteriores, de petistas a bolsonaristas,
foram apenas exercícios performáticos de marketing de danos.
Coube à sociedade o papel de verdadeiro
freio. O recado das multidões nas ruas foi contundente: os brasileiros não
toleram um Congresso acima da lei. O Senado, sensível ao custo político das
eleições majoritárias e pressionado pela opinião pública, agiu como barreira.
Seja pela virtude de alguns ou por instinto de sobrevivência de todos, os
senadores rasuraram uma das páginas mais vergonhosas da história do Congresso.
Mas não há como apagá-la.
Que ela sirva de lição. A “PEC da Blindagem”
não foi acidente, mas sintoma de um padrão corrosivo: o corporativismo voraz
que converte o Legislativo em condomínio de interesses privados, blindado
contra a Justiça e a sociedade. Esse mesmo espírito explica o uso predatório
das emendas orçamentárias, a conivência com “devedores contumazes” ou vendetas
contra o Banco Central. É a lógica de um poder capturado, divorciado da nação
que deveria representar.
Arquivar a PEC foi o primeiro passo. O
segundo é cobrar responsabilidades de quem a patrocinou e blindar – agora sim,
de forma legítima – a Constituição contra novos truques regimentais que
disfarçam privilégios como “prerrogativas”. A sociedade mostrou que não está
anestesiada. A democracia só se sustenta quando a lei vale para todos. E
igualdade perante a lei não se negocia.
Haddad entra na campanha
Por O Estado de S. Paulo
Com novo bloqueio de gastos e primeiros
sinais de queda na arrecadação, ministro terceiriza responsabilidades,
pressiona BC a reduzir juros e cobra Congresso a colaborar com contas públicas
O governo Lula da Silva bloqueou mais R$ 1,4
bilhão do Orçamento em setembro, elevando de R$ 10,7 bilhões para R$ 12,1
bilhões o total de gastos congelados no ano. Sem surpresas, os dispêndios com o
Benefício de Prestação Continuada (BPC), pago a idosos vulneráveis e a pessoas
com deficiência, foram o principal motivo a justificar a necessidade de um novo
bloqueio, apesar das ações do Executivo e do Judiciário para conter o ritmo de
concessões do benefício.
O avanço das despesas, como até as pedras
sabem, é o maior problema das contas públicas. Por isso, o que surpreendeu, na
divulgação do relatório bimestral do Orçamento, foi o discurso da equipe
econômica, que assumiu um tom bem mais político do que o que vinha sendo
adotado na área fiscal. Ao contrário do que se presumia, durante a entrevista
coletiva, o secretário-executivo do Ministério da Fazenda, Dario Durigan,
expressou mais preocupação com o comportamento das receitas do que com o dos
gastos.
Ao todo, a arrecadação projetada para o ano
recuou R$ 1,9 bilhão, puxada pelas receitas com impostos e contribuições, que,
pelas projeções, ficarão R$ 12 bilhões abaixo do que se esperava. Para Durigan,
isso se deve à desaceleração da atividade econômica, consequência de uma
política monetária “bastante restritiva”, cuja “dose do remédio” preocupa o
governo como um todo.
No dia seguinte, a Receita Federal divulgou
que a arrecadação teve uma queda real de 1,5% em agosto ante o mesmo mês do ano
anterior, a primeira nesse tipo de comparação desde novembro de 2023, ainda que
a arrecadação no acumulado do ano tenha registrado um aumento real de 3,73% em
relação ao mesmo período do ano passado.
O dado de agosto não parece ser um ponto fora
da curva. O chefe do Centro de Estudos Tributários e Aduaneiros da Receita,
Claudemir Malaquias, disse que a desaceleração da atividade econômica já pode
ser observada em indicadores como produção industrial, consumo e vendas no
varejo, ainda que, ao menos por enquanto, não tenha afetado nem os serviços nem
a massa salarial.
Embora incipientes, esses sinais bastaram
para que o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, embarcasse de vez na
estratégia política do governo. Após a divulgação da ata do Comitê de Política
Monetária (Copom) do Banco Central (BC), Haddad disse não haver justificativa
para os juros estarem em 15% ao ano. O ministro vinha evitando críticas mais
duras à política monetária, mas a inflexão, neste momento, é até compreensível.
Se uma economia mais fraca prejudica a arrecadação, ela sepulta os planos de um
governo que tentará a reeleição.
A investida também se deu no Congresso. Ao
participar de audiência pública na Comissão de Agricultura da Câmara, Haddad
fez mais do que defender a medida provisória que taxa títulos isentos, como as
Letras de Crédito do Agronegócio (LCAs) e as Letras de Crédito Imobiliário
(LCIs), e aumenta a tributação sobre as bets. Disse que a rejeição da proposta
poderá afetar o Plano Safra no ano que vem, afirmou que as operações da Receita
Federal estão chegando aos “verdadeiros ladrões da Pátria” e classificou de “vagabundagem”
o fato de o ex-presidente Jair Bolsonaro não ter corrigido a tabela do Imposto
de Renda da Pessoa Física (IRPF) durante seu governo.
No fundo, o ministro bem sabe que o arcabouço
não foi capaz de controlar as despesas, o que só reforçou sua busca obsessiva
por novas receitas e lhe rendeu o apelido pejorativo de “Taxad”. Mas, por ora,
Haddad quer mesmo é terceirizar responsabilidades para chegar até o fim de 2026
sem ter de assumir o ônus político de alterar as metas fiscais.
Já está claro que, para isso, o governo não
hesitará em recorrer a manobras como o pagamento de dividendos pelas estatais,
o uso de fundos para financiar políticas públicas e a obtenção de recursos
extraordinários por meio de leilões de petróleo e gás. Culpar governos anteriores,
instar o Banco Central a reduzir as taxas de juros e jogar duro com o Congresso
são parte desse teatro no qual discussões sobre a qualidade e a eficiência do
gasto ficam sempre para depois.
Uma grande oportunidade
Por O Estado de S. Paulo
Trump abre fresta para negociar. Lula tem de
esquecer que é candidato e aproveitar a chance
Em um de seus típicos momentos de arroubo, o
presidente dos EUA, Donald Trump, afirmou ter tido “química excelente” com Lula
da Silva, com quem esteve por menos de um minuto nos bastidores da
Assembleia-Geral da ONU. Os 39 segundos desse encontro não fortuito – se
quisesse, Trump poderia tê-lo evitado – foram o suficientes para comportar um
abraço e, mais importante, abrir uma fresta para a retomada das relações de
alto nível entre os dois países – estremecidas desde que Trump resolveu impor
duríssimas tarifas e sanções ao Brasil para forçar o País a deixar livre o
ex-presidente Jair Bolsonaro.
Não nos iludamos: é apenas uma fresta, que
pode se fechar a qualquer momento em razão da absoluta imprevisibilidade do
presidente americano. No entanto, se a declaração de Trump for para valer, é
uma grande oportunidade para uma reaproximação depois de meses de estranhamento
e agressões, situação praticamente inédita na história das relações entre
Brasil e EUA.
E Lula deve aproveitar essa chance, mesmo que
haja o risco, não desprezível, de que Trump o destrate, como fez com tantos
outros chefes de Estado. Lula, neste momento, deve entender que questões
pessoais são menos relevantes do que a possibilidade de mostrar a Trump que as
premissas que nortearam sua decisão de castigar o Brasil são equivocadas.
Como se sabe, Trump justificou o tarifaço
contra o Brasil sob o argumento de que o País tem superávit comercial com os
EUA. Na verdade, é o exato oposto, há anos. Além disso, o presidente americano
exigiu, na prática, que o governo brasileiro interferisse para que o Supremo
Tribunal Federal livrasse Bolsonaro da cadeia, o que obviamente é impossível.
Há muitas explicações racionais para o
aparente recuo de Trump, a começar pela provável pressão de empresários
americanos afetados pelo tarifaço a produtos brasileiros. Em se tratando de
Trump, contudo, buscar respostas racionais costuma ser perda de tempo.
O presidente americano já deu diversas
demonstrações de que não se move por ideologia, e sim pela possibilidade de
lucro. Sendo assim, não se prende a qualquer compromisso institucional ou
diplomático. E a história de seu segundo mandato mostra, até aqui, que Trump
fica muito feliz quando sai da mesa de negociação com a sensação de que quebrou
a banca – mesmo que seja apenas uma ilusão.
Logo, Lula fará bem se deixar o orgulho de
lado e demonstrar vontade genuína de oferecer algo aos EUA. Há espaço para
tratativas em áreas como minerais críticos e plataformas digitais. A questão,
contudo, é saber se Lula vai pensar no Brasil ou em sua campanha à reeleição.
A dúvida é pertinente, porque Lula, até aqui,
tem conseguido faturar politicamente com as agressões americanas ao Brasil,
inventando slogans sobre a “soberania” do Brasil e dizendo que seu governo está
“do lado do povo” – em contraste com os traidores da Pátria que estão nos EUA
empenhando-se em incitar o governo Trump a prejudicar o Brasil e com os
bolsonaristas que estenderam uma bandeira americana na Avenida Paulista no Dia
da Independência brasileira.
Nesse ponto, contudo, pode-se dizer que, enquanto Trump é totalmente imprevisível, Lula é um velho conhecido – que, se tiver de escolher entre ser estadista e ser candidato, dificilmente surpreenderá.
Por Correio Braziliense
Sem apresentar dados científicos que
comprovem que o paracetamol causa autismo, Trump impulsiona um movimento que há
quase 30 anos dificulta o enfrentamento ao transtorno e presta um desserviço ao
bem-estar coletivo
Prometendo a repórteres que faria um anúncio
"incrível" na área da saúde, o presidente dos Estados Unidos, Donald
Trump, declarou, nesta segunda-feira, que a ingestão de paracetamol durante a
gravidez causa autismo. Sem apresentar dados científicos que comprovem o
fenômeno de causalidade — até porque não existem —, o líder republicano
impulsiona um movimento que há quase 30 anos dificulta o enfrentamento ao
transtorno e presta um desserviço ao bem-estar coletivo. Merece, portanto, a
reação enfática de quem, de fato, entende do assunto, como aconteceu logo após
a declaração irresponsável.
Trump apresentou dados sobre o aumento
expressivo de pessoas com o transtorno do espectro autista (TEA), nas duas
últimas décadas, nos Estados Unidos para embasar a afirmação polêmica. Não há
dúvidas de que há mais casos oficializados lá e em outros países, incluindo o
Brasil. Mas esse novo recorte não se trata de uma "epidemia", como
define o republicano. Tem ocorrido, principalmente, por mudanças nos protocolos
de diagnóstico que consolidaram o entendimento de que a condição tem origem
multifatorial, como enfatizou a Organização Mundial da Saúde (OMS) em resposta
ao chefe da Casa Branca.
Essa nova forma de compreender o autismo,
aliás, tem como contribuição o esforço de cientistas que se debruçam sobre o
transtorno há décadas. E os resultados de pesquisas consolidadas — que seguem
padrões de validade, como a checagem por pares — descartam a relação de
causalidade tanto por paracetamol quanto por vacinas. No caso do medicamento,
há, é preciso reconhecer, estudos sugerindo uma associação estatística entre a
ingestão e o risco aumentado de TEA, mas pequena. Pesquisa feita a partir de
dados de 2,48 milhões de crianças na Suécia mostra uma diferença absoluta de
risco de 0,09% para autismo em crianças expostas e não expostas à substância
ainda no útero materno. O resultado do estudo foi publicado em 2024, na
renomada revista científica Jama.
Dessa forma, é absurdo orientar a suspensão
do uso do paracetamol como forma de prevenção do TEA, como Trump promete fazer.
Diante da ideia, o Serviço Nacional de Saúde do Reino Unido tratou de ressaltar
que a substância é a "primeira escolha" para gestantes, que precisam
ser orientadas por especialistas para a ingestão de qualquer medicamento.
Lançar dúvidas sobre analgésicos só leva a práticas que comprometem o bem-estar
de grávidas, com desdobramentos para essas mulheres e para os bebês que podem
ultrapassar o período da gestação. Basta lembrar da associação, essa
cientificamente comprovada, entre dor e sofrimento psíquico.
Trump parece não se preocupar com a saúde pública. Avança em sentido contrário, acompanhado do seu secretário de Saúde, Robert F. Kennedy Jr., um conhecido disseminador de informações negacionistas, incluindo as que associam o autismo à vacinação. Não à toa, a declaração desta segunda foi acompanhada pela defesa por mudanças no calendário de imunização infantil. Isso em um momento em que os Estados Unidos enfrentam a volta de doenças conhecidamente evitadas por vacinas, como o sarampo. Desacreditar a ciência é um mergulho fatal no obscurantismo, como mostrou a pandemia da covid-19. Líderes sensatos reconhecem, e ecoam, a lição duramente aprendida.
Por O Povo (CE)
A Semace atribui a responsabilidade à Seuma —
e o Ibama, por sua vez, só ficou sabendo da supressão vegetal depois que o mal
já estava feito
Para iniciar a construção de um centro
logístico, foram devastados 32 hectares de floresta no entorno do aeroporto
Pinto Martins, administrado pela Fraport Brasil.
A denúncia foi feita pelo vereador Gabriel
Aguiar (Psol) ao Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais
Renováveis (Ibama), lembrando que na área existem trechos da mata
atlântica.
O superintendente do Ibama no Ceará, Deodato
Ramalho, em entrevista ao O POVO, manifestou "muita surpresa".
Segundo ele, a Aerotrópolis Empreendimentos, responsável pela obra,
suprimiu a vegetação sem esperar a avaliação dos documentos
apresentados ao Ibama.
Por sua vez, a Aerotrópolis dispõe de
autorização de supressão vegetal, emitida pela Superintendência Estadual do
Meio Ambiente (Semace), que seria sustentada por um certificado da
Secretaria Municipal do Urbanismo e Meio Ambiente de Fortaleza (Seuma),
atestando a adequação do projeto ao Plano Diretor da cidade.
Em síntese, a Semace isenta-se do desmatamento,
atribuindo a responsabilidade à Seuma — e o Ibama, por sua vez, só ficou
sabendo do problema depois que o mal já estava feito.
Mas quem autorizou o desmatamento? Está
dentro da legalidade?
O titular da Seuma, João Gabriel Rocha,
admite pelo menos uma possível irregularidade. Em entrevista ontem à rádio O
POVO CBN, ele disse que irá investigar se a Aerotrópolis realizou
corretamente o manejo da fauna que vivia no local.
É difícil entender por que alguns órgãos
públicos se mexem para tomar providências somente depois que alguma
irregularidade se torna pública. Será que cabe às entidades que cuidam do meio
ambiente somente o trabalho de examinar a papelada? Autorizada uma obra,
confia-se que tudo será feito segundo as normas, sem fiscalização?
São tristemente comuns a destruição do que
resta de natureza no ambiente urbano, muitas vezes irregularmente ou
sem cuidado algum com a fauna local.
Foi assim em 2011, quando foram arrancadas
árvores que cobriam uma quadra na avenida Santos Dumont para dar lugar a
um empreendimento imobiliário. O corte da vegetação provocou uma
debandada de soins e aves que habitavam o local, sem que houvesse preocupação
com os animais.
Quanto à Fraport, não é a primeira vez que a
concessionária do aeroporto se envolve em polêmicas ambientais. Em 2024, os
organizadores do carnaval fora de época em Fortaleza anunciaram parceria com a
Fraport para construir a Cidade Fortal em um terreno de 20 hectares no
sítio do aeroporto, em local diferente do que está agora em questão.
Para fazer as obras, também seria necessário
desmatar um grande trecho do espaço. Na época, foi também o vereador Gabriel
Aguiar que se manifestou contra o empreendimento. O movimento para deixar as
árvores em pé tornou-se tão forte que fez os organizadores da micareta recuarem,
voltando a festa para o seu local de origem.
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