quinta-feira, 25 de setembro de 2025

O que a mídia pensa | Editoriais / Opiniões

Trump traz esperança à Ucrânia

Por O Globo

É incerto até que ponto ele honrará suas declarações, mas a reviravolta, se mantida, será auspiciosa

Em mais uma reviravolta notável e surpreendente, o presidente americano, Donald Trump, afirmou que a Ucrânia poderá reconquistar todo o território perdido para as tropas russas — ou “até mais”. Depois de encontro com o ucraniano Volodymyr Zelensky, em Nova York para a Assembleia Geral da ONU, Trump escreveu numa rede social: “Considero que a Ucrânia, com o apoio da União Europeia, tem condições de lutar e recuperar todo o seu território em sua forma original”. Até então, ele vinha insistindo que Zelensky “não tinha cartas” para vencer e sugeria implicitamente que cedesse território para pôr fim ao conflito iniciado pelos russos em fevereiro de 2022. Como tudo o que vem de Trump, ainda é incerto o teor prático da mudança na posição americana em relação à Ucrânia (ele falou em fornecer armas para a Otan, a aliança militar ocidental, “fazer o que quiser”). Se mantida, porém, será uma mudança auspiciosa. Repetidas vezes, o russo Vladimir Putin demonstrou não ter interesse na paz.

Diplomatas europeus ainda tentam entender a reviravolta. Ao que parece, a paciência de Trump se esgotou. Apregoando manter boa relação com Putin, ele prometeu acabar com a guerra em 24 horas na campanha à Presidência. Depois de eleito, o prazo mudou para cem dias. Passados 208 desde a posse, em 15 de agosto, estendeu o tapete vermelho a Putin em reunião de cúpula no Alasca. A promessa de um futuro encontro com a presença de Zelensky não deu em nada. Enquanto isso, os ataques russos não deram trégua. E não só na Ucrânia.

A benevolência incentivou Putin a testar a determinação da Otan. Há duas semanas, cerca de duas dezenas de drones russos invadiram o espaço aéreo da Polônia. Três dias depois, outro incidente foi registrado na Romênia. Na semana passada, três jatos russos MiG-31 sobrevoaram a Estônia por 12 minutos. Por fim, nesta segunda-feira, drones forçaram o fechamento do aeroporto de Copenhague por várias horas. “Não podemos descartar que tenham sido os russos”, disse a primeira-ministra dinamarquesa, Mette Frederiksen. Questionado se as forças da Otan deveriam derrubar aeronaves russas que invadirem seu espaço aéreo, Trump foi taxativo: “Sim”.

Aparentemente, a mudança é uma tentativa de pressionar a Rússia, até então tratada com deferência exagerada, a fazer concessões. Num cenário em que Trump amplie o apoio militar à Ucrânia, Putin será forçado a reavaliar o custo de suas agressões. A Turquia foi firme em 2015, quando derrubou um caça russo, e não houve mais incidentes graves. Mas, Trump sendo Trump, o ceticismo é a postura mais recomendada. Há uma dose de oportunismo em suas declarações. Ele deu a impressão de que adotará uma postura coadjuvante, empurrando a fatura para a Otan. “Desejo o melhor para ambos os países”, afirmou.

Horas depois das declarações que marcaram a reviravolta, o secretário de Estado, Marco Rubio, tentou corrigi-las. Voltou a dizer que a Casa Branca não acredita ser possível acabar com a guerra com força militar. O próprio Trump foi reticente sobre a participação de forças americanas na guerra. Os próximos dias dirão se sua inflexão foi mesmo para valer — e se a Europa pode ter esperança de, enfim, com apoio americano, acabar com o maior conflito em seu território desde a Segunda Guerra.

É vital fechar fábricas clandestinas de armas para o crime organizado

Por O Globo

Com aperto contra contrabando e desvio de armamento legal, cresceu a aposta das facções na produção local

Em agosto, a Polícia Federal apreendeu num galpão industrial de Santa Bárbara D’Oeste, interior de São Paulo, dez máquinas de última geração usadas para fabricar ilegalmente fuzis AR-15 — havia 40 deles no local. Um dia depois, o Grupo de Atuação de Combate ao Crime Organizado (Gaeco) descobriu uma fábrica de munição caseira com mais de cem armas em São Roque, também no interior paulista. Não bastassem o tráfico de armas que circulam sem embaraço pelas fronteiras e o desvio de armas compradas legalmente, tem crescido o fornecimento doméstico do crime organizado por meio de usinas camufladas que produzem armamento “fantasma”.

Essas linhas de fabricação clandestina têm se destacado no abastecimento dos arsenais do crime, segundo artigo dos pesquisadores Bruno Langeani e Natália Pollachi, do Instituto Sou da Paz, publicado em revista científica da London School of Economics. Eles verificaram que, entre 2019 e 2023, a quantidade de metralhadoras e submetralhadoras apreendidas aumentou 17,8% (de 790 para 931), e a de fuzis 44,8% (de 1.139 para 1.650). O mais preocupante é que 39% dos fuzis não tinham indicação de fabricante. Eram fantasmas — evidência do funcionamento das fábricas ilegais de armas. É, de acordo com os pesquisadores, um percentual muito alto, mesmo levando em conta as dificuldades da polícia para identificar as armas corretamente.

Não é de hoje que o crime organizado busca fontes próximas de abastecimento para seus arsenais. O próprio crescimento da criminalidade incentiva o surgimento dessas fábricas. Estudos forenses já mostravam a prevalência de armas de fabricação “privada” nas apreensões. Um deles revelou que 48% das submetralhadoras apreendidas em São Paulo em 2011 e 2012 eram armas artesanais, sem componentes industriais.

Livre de regulações, o mercado americano de armamentos é a principal fonte de partes e peças montadas nas linhas de produção clandestinas. O Paraguai costuma ser escala nas rotas de contrabando, tanto das armas originais quanto das montadas, por vezes com peças de fabricantes conhecidos. Os pesquisadores citam um caso ocorrido entre Pedro Juan Caballero, no Paraguai, e Ponta Porã, no Brasil, cidades divididas apenas por uma avenida. Segundo o relato, a polícia parou o carro de uma família e notou que as portas do veículo pareciam pesadas demais. Dentro delas estavam sete pistolas Glock e quatro fuzis fantasmas, fornecidos por linhas de montagem que funcionam ao longo da fronteira.

Há inúmeras evidências de como a criminalidade passou a obter acesso a armas legais em virtude da política armamentista equivocada vigente durante o governo Bolsonaro (2019-2022). Agora, com a revogação do afrouxamento nas regras pelo atual governo, ganhou impulso a produção clandestina. Na repressão ao crime organizado, uma das prioridades deve ser cortar tais linhas de suprimento. As facções criminosas não podem se tornar autossuficientes no acesso ao principal recurso que usam para matar.

Mais apoio ao ainda improvável Estado palestino

Por Folha de S. Paulo

Movimento encabeçado por França e Arábia Saudita ganha adesões entre países de peso na diplomacia

A iniciativa cobra do Hamas que entregue os reféns e deponha armas, mas tem poucas chances sem os EUA e com Netanyahu agarrado ao poder

Em poucos dos últimos dias, ao menos dez países ocidentais —incluindo França e Reino Unido, dois pesos-pesados da diplomacia global— passaram a reconhecer o Estado palestino. A posição anterior dessas nações era a de só fazê-lo depois que Israel e a Autoridade Nacional Palestina formalizassem um acordo de paz definitivo.

O movimento, que deixa o governo do premiê israelense Binyamin Netanyahu ainda mais isolado, faz parte de uma iniciativa franco-saudita para pôr fim à guerra em Gaza, com adesão de vários países árabes e islâmicos.

A proposta em pauta, que vem sendo costurada pelo presidente da França, Emmanuel Macron, e pelo príncipe saudita Mohammed bin Salman, tem diversas virtudes e um problema grave.

Pelo lado positivo, ela oferece um horizonte de longo prazo. Não haverá paz na região enquanto não existir um Estado palestino capaz de viver lado a lado com Israel. Igualmente importante, a iniciativa cobra do Hamas que entregue imediatamente todos os reféns e deponha suas armas.

De acordo com o plano, depois de estabelecido um cessar-fogo, uma força sob mandato da ONU, composta principalmente por países árabes, ocuparia Gaza, ajudaria na reconstrução e supervisionaria a formação de um governo palestino sem o Hamas.

Há aí uma importante mudança de atitude, já que algumas das nações árabes e islâmicas que agora subscrevem a iniciativa forneciam, até o ataque de 7 de outubro de 2023, apoio político e financeiro ao grupo terrorista.

Já a grande falha da proposta é que ela não corresponde à realidade do terreno, o que a torna em alguma medida quixotesca. Não existe, nem na Faixa de Gaza nem na Cisjordânia, um Estado a reconhecer. Gaza são ruínas, e a ANP não controla a maior parte da Cisjordânia, sob ocupação israelense.

Reconhecer o que não existe lembra um tanto o que ocorreu na Venezuela em 2019. Meio mundo reconheceu Juan Guaidó como legítimo presidente interino, mas isso nunca passou de uma ficção —já que quem detinha o comando sobre as instituições era (e ainda é) o ditador Nicolás Maduro.

No mais, qualquer iniciativa de paz para a região que não conte com a participação de Israel e dos EUA é algo com mínimas chances de sucesso. Mas baixa probabilidade é diferente de nenhuma.

É aí que a inconstância de Donald Trump pode revelar-se um trunfo. Hoje, o americano parece apoiar o projeto da extrema direita israelense de ocupar Gaza, deslocando palestinos do território. Mas, em se tratando do republicano, a possibilidade de mudar de ideia nunca é desprezível.

Nesse caso, Netanyahu teria mais motivos para interromper a carnificina e aceitar uma negociação abrangente. Além da pressão internacional, Israel enfrenta crescente insatisfação interna.

Em qualquer hipótese, a proposta franco-saudita tem o mérito de manter viva, ainda que somente no mundo da diplomacia, a solução de dois Estados.

Guerra cultural em cartaz

Por Folha de S. Paulo

Prefeito de São Paulo usa disputa ideológica para rescindir contrato com gestora do Theatro Municipal

Caso mostra efeitos danosos da polarização em políticas públicas e a necessidade de contratos bem calibrados nas parcerias com o Estado

O embate ideológico polarizado é nefasto quando orienta políticas públicas, que deveriam seguir critérios técnicos. No campo das artes, a crise no Theatro Municipal de São Paulo é o exemplo mais recente desse efeito perverso.

Na quinta (19), o prefeito Ricardo Nunes (MDBpediu a rescisão do contrato com a organização social (OS) Sustenidos, gestora do teatro desde junho de 2021.

A Fundação Theatro Municipal, que monitora a atuação da Sustenidos, havia solicitado, no dia 12, que a OS demitisse um funcionário por ele ter compartilhado postagem no Instagram que questionava a comoção em relação à morte do ativista conservador americano Charlie Kirk, no dia 10, porque Kirk seria nazista.

O motivo alegado para o cancelamento do contrato foi o não cumprimento desse pedido. A Sustenidos, em nota, repudiou o conteúdo da postagem, feita em conta pessoal, sem vinculação com o teatro ou a OS, mas declarou que a decisão não poderia se dar de forma açodada, sob risco de infringir normas trabalhistas.

O funcionário foi afastado de suas funções e um procedimento foi aberto no comitê de ética da entidade para avaliar o caso, conforme recomendou um parecer de seus advogados.

A crítica à postagem foi amplificada por políticos conservadores como o deputado federal Nikolas Ferreira (PL-MG), e 28 vereadores à direita enviaram ofício ao prefeito pedindo a rescisão.

Nunes usou um caso duvidoso, que levanta questões sobre a liberdade de expressão e a autonomia das organizações sociais, para suspender o contrato.

A suspensão poderia ter ocorrido em 2023, quando o Tribunal de Contas do Município (TCM), após constatar metas de produção não cumpridas e falhas em economicidade, determinou a abertura de edital para a contratação de nova OS. Na segunda-feira (22), um edital para esse fim foi aberto para consulta pública.

A atuação da Sustenidos também vem sendo criticada por excesso de politização nas montagens operísticas, não só por vereadores à direita, mas também por artistas, fãs de arte lírica e especialistas no gênero. A entidade enfrentou, ainda, crises com setores importantes do teatro —como o coro, a orquestra sinfônica e o balé— devido a problemas de gestão e trabalhistas.

Do imbróglio, tiram-se os efeitos danosos da ideologia, seja de qual espectro político for, na administração pública e a necessidade de contratos bem calibrados, com monitoramento contínuo, nas parcerias do Estado com organizações de direito privado.

Brasil só tem a ganhar com abertura a diálogo com Trump

Por Valor Econômico

Apesar das motivações políticas de Trump, a apresentação pelo Brasil de argumentação e propostas técnicas detalhadas e fundamentadas pode produzir algum resultado positivo

Brasil e Índia foram os dois únicos países punidos com tarifas de 50% pelos Estados Unidos por motivos explicitamente políticos. O caso brasileiro é inédito: é a primeira vez que um presidente americano aplica sanções comerciais afirmando, entre outros motivos, que não gostou das penas aplicadas pela Justiça ao candidato derrotado nas eleições, por tentar um golpe de Estado. Donald Trump então vetou qualquer negociação com autoridades brasileiras, enquanto buscava acordos com a maioria dos demais países. Na Assembleia-Geral da ONU, porém, Trump abriu o primeiro espaço, ao cruzar com o presidente Lula, que encerrara seu discurso de abertura do evento, e combinar uma conversa. “Só negocio com quem eu gosto”, afirmou, citando a “química” após o brevíssimo encontro com Lula.

Trump gosta de ter a iniciativa e mais uma vez fez isso nos corredores da ONU, mesmo depois que o presidente brasileiro, em um discurso diplomático, porém duro, reservou justas críticas ao unilateralismo americano, que caminha para destruir as organizações multilaterais construídas pelos EUA após a II Guerra, e a ingerência inaceitável em assuntos domésticos, caso da interferência a favor do ex-presidente Jair Bolsonaro, considerado por Trump um perseguido político.

A “química” pressentida por Trump pode durar alguns dias ou servir de base a uma relação menos instável, embora potencialmente conflituosa. O Brasil foge aos motivos básicos alegados pelos EUA para taxar o país, e muito menos em 50%, diferentemente dos demais. Ele é um entre pouco mais de uma dezena de nações com as quais os EUA têm superávit comercial, e sua tarifa efetiva sobre importações americanas é pouco superior a 3%, contra tarifa média geral de 13%. É um país fechado, mas menos protecionista em relação aos EUA, com os quais mantém relações há 200 anos.

As conversas diretas, que serão feitas à distância, têm pontos de atenção. Poderão ser improdutivas e breves se os EUA insistirem nas exigências políticas de benefícios a Bolsonaro. Imprevisível, Trump pode querer repetir episódios como os que patrocinou com o presidente da Ucrânia, Volodymyr Zelensky, ou da África do Sul, Cyril Ramaphosa, quando os constrangeu com reprimendas grosseiras. Com Lula se recusando a negociar nos termos de Trump, e colocando a barganha no terreno comercial, sem se preocupar com prazos impostos pelos EUA, o presidente americano terá menos chances de repetir os episódios com Zelensky e Ramaphosa.

Da mesma forma, o Brasil não irá a lugar nenhum se, em vez de apresentar propostas factíveis de parceria, aferrar-se a slogans ideológicos e declarações de princípios, que Trump despreza e não leva a sério. Até agora o governo brasileiro não divulgou quais poderiam ser os objetos de discussão produtiva com os EUA. Há possibilidades em torno dos minerais críticos e estratégicos, pouco explorados ainda pelo país e objeto de cobiça por Washington na disputa com a China, que frequentemente ameaça cortar seu fornecimento aos americanos. A taxação de 20% sobre o etanol americano, outra queixa explícita de Trump, pode ser amortecida. Por outro lado, o Brasil deveria insistir no fim das tarifas sobre café e carnes, dois itens que estão claramente provocando estragos nos orçamentos das famílias americanas e contribuindo com a alta da inflação no país.

Na lista das prioridades do processo do USTR contra o Brasil, que se desenrola, há também algo a fazer. Os EUA reclamam de tarifas injustas e preferenciais, algo em que um exame bem feito poderia encontrar pontos para um acordo. Corrigir as falhas apontadas pelos EUA na fiscalização anticorrupção é algo que interessa também ao Brasil, assim como combater o desmatamento ilegal, incrivelmente reclamado por um governo cuja agenda antiambiental é explícita. Também há um campo de possibilidades sobre o que os americanos consideram desrespeito à propriedade intelectual, embora suas queixas específicas não sejam conhecidas publicamente.

O governo Lula, porém, é contrário à abertura comercial, embora, se bem feita, ela beneficie o país. Isso limita bastante o espaço da negociação bilateral com os Estados Unidos. Já a regulação das big techs tornou-se um ponto inegociável pelos dois lados. Envolve soberania nacional, segundo Lula, enquanto para Trump qualquer restrição às empresas americanas é por princípio inegociável. No processo da USTR, comércio digital é o primeiro ponto, reclamando de censura política nas redes sociais, o que não é verdadeiro, e há queixas sobre o sistema de pagamento eletrônico, Pix, sobre o qual o Brasil pode apresentar abertura para aprimoramentos, mas não restrições.

Apesar das motivações políticas de Trump, a apresentação pelo Brasil de argumentação e propostas técnicas detalhadas e fundamentadas pode produzir algum resultado positivo na conversas entre os dois presidentes. É mais a hora de demonstrar competência diplomática que protestos políticos. O Brasil só tem a ganhar, e nada a perder, com a fresta aberta inesperadamente por Trump.

O Senado não fez mais que a obrigação

Por O Estado de S. Paulo

Ao rejeitar a PEC da Blindagem, o Senado apenas enterrou o monstrengo fuzilado pela sociedade indignada – que deve permanecer alerta, pois o espectro do corporativismo criminoso segue vivo

A Câmara dos Deputados escreveu uma das páginas mais vergonhosas da história republicana ao aprovar a chamada “PEC da Blindagem” – ou da “Impunidade”, ou da “Bandidagem”, como queiram. Com ela, os deputados, a título de defender prerrogativas parlamentares, assinaram um pacto de autoproteção criminosa. Ontem, a Comissão de Constituição e Justiça do Senado rejeitou in totum, por 26 votos a 0, a aberração. Fez bem – mas não fez mais do que a obrigação.

A proposta exumava, em versão ainda mais obscena, o sistema de licença prévia do Congresso para processar parlamentares, mecanismo que vigorou entre 1988 e 2001 e que resultou em quase 300 pedidos de investigação barrados – contra apenas um autorizado. A impunidade de Hildebrando Pascoal, o “deputado da motosserra”, acusado de comandar homicídios brutais e de envolvimento com o narcotráfico, é o emblema desse período de vergonha. Foi justamente para pôr fim a essa era de impunidade que se aprovou a Emenda Constitucional n.º 35/2001. A Câmara, duas décadas depois, quis ressuscitar o cadáver político da licença prévia, pervertendo não só os mais elementares princípios republicanos, mas também o simples bom senso.

Não parava aí. A PEC previa que as decisões sobre prisão em flagrante e formação da culpa fossem tomadas em votação secreta pelo plenário – devolvendo ao submundo o que a Emenda Constitucional n.º 76/2013 havia trazido à luz da transparência. Estendia foro privilegiado a presidentes de partidos, cargo sem função estatal. E hipertrofiava a inviolabilidade parlamentar, tornando-a salvo-conduto absoluto contra qualquer responsabilização. Imunidade pervertida em impunidade, prerrogativa degenerada em privilégio.

Alguns deputados tentaram traficar a falácia de que se tratava de resgatar o “texto original” da Constituição. É um sofisma pernicioso. O dispositivo da licença prévia foi concebido em um contexto de transição democrática, para resguardar os mandatos depois de duas décadas de cassações arbitrárias promovidas pelo regime militar. Hoje, num regime democrático consolidado, o artifício não protege a democracia, mas os corruptos; não defende a liberdade de representação, mas facilita a infiltração do crime organizado no Parlamento. A pretexto de restaurar uma letra morta, a Câmara seviciou o espírito da Constituição.

A indecência foi aprovada com articulação consciente do Centrão e a cumplicidade covarde do presidente da Casa, Hugo Motta. Não houve engano, não houve distração: houve dolo legislativo. O súbito surto de “arrependimento” de alguns deputados, após a reação das ruas e das redes sociais, é oportunismo puro. “Ninguém votou sem saber”, como lembrou o senador Otto Alencar. As desculpas posteriores, de petistas a bolsonaristas, foram apenas exercícios performáticos de marketing de danos.

Coube à sociedade o papel de verdadeiro freio. O recado das multidões nas ruas foi contundente: os brasileiros não toleram um Congresso acima da lei. O Senado, sensível ao custo político das eleições majoritárias e pressionado pela opinião pública, agiu como barreira. Seja pela virtude de alguns ou por instinto de sobrevivência de todos, os senadores rasuraram uma das páginas mais vergonhosas da história do Congresso. Mas não há como apagá-la.

Que ela sirva de lição. A “PEC da Blindagem” não foi acidente, mas sintoma de um padrão corrosivo: o corporativismo voraz que converte o Legislativo em condomínio de interesses privados, blindado contra a Justiça e a sociedade. Esse mesmo espírito explica o uso predatório das emendas orçamentárias, a conivência com “devedores contumazes” ou vendetas contra o Banco Central. É a lógica de um poder capturado, divorciado da nação que deveria representar.

Arquivar a PEC foi o primeiro passo. O segundo é cobrar responsabilidades de quem a patrocinou e blindar – agora sim, de forma legítima – a Constituição contra novos truques regimentais que disfarçam privilégios como “prerrogativas”. A sociedade mostrou que não está anestesiada. A democracia só se sustenta quando a lei vale para todos. E igualdade perante a lei não se negocia.

Haddad entra na campanha

Por O Estado de S. Paulo

Com novo bloqueio de gastos e primeiros sinais de queda na arrecadação, ministro terceiriza responsabilidades, pressiona BC a reduzir juros e cobra Congresso a colaborar com contas públicas

O governo Lula da Silva bloqueou mais R$ 1,4 bilhão do Orçamento em setembro, elevando de R$ 10,7 bilhões para R$ 12,1 bilhões o total de gastos congelados no ano. Sem surpresas, os dispêndios com o Benefício de Prestação Continuada (BPC), pago a idosos vulneráveis e a pessoas com deficiência, foram o principal motivo a justificar a necessidade de um novo bloqueio, apesar das ações do Executivo e do Judiciário para conter o ritmo de concessões do benefício.

O avanço das despesas, como até as pedras sabem, é o maior problema das contas públicas. Por isso, o que surpreendeu, na divulgação do relatório bimestral do Orçamento, foi o discurso da equipe econômica, que assumiu um tom bem mais político do que o que vinha sendo adotado na área fiscal. Ao contrário do que se presumia, durante a entrevista coletiva, o secretário-executivo do Ministério da Fazenda, Dario Durigan, expressou mais preocupação com o comportamento das receitas do que com o dos gastos.

Ao todo, a arrecadação projetada para o ano recuou R$ 1,9 bilhão, puxada pelas receitas com impostos e contribuições, que, pelas projeções, ficarão R$ 12 bilhões abaixo do que se esperava. Para Durigan, isso se deve à desaceleração da atividade econômica, consequência de uma política monetária “bastante restritiva”, cuja “dose do remédio” preocupa o governo como um todo.

No dia seguinte, a Receita Federal divulgou que a arrecadação teve uma queda real de 1,5% em agosto ante o mesmo mês do ano anterior, a primeira nesse tipo de comparação desde novembro de 2023, ainda que a arrecadação no acumulado do ano tenha registrado um aumento real de 3,73% em relação ao mesmo período do ano passado.

O dado de agosto não parece ser um ponto fora da curva. O chefe do Centro de Estudos Tributários e Aduaneiros da Receita, Claudemir Malaquias, disse que a desaceleração da atividade econômica já pode ser observada em indicadores como produção industrial, consumo e vendas no varejo, ainda que, ao menos por enquanto, não tenha afetado nem os serviços nem a massa salarial.

Embora incipientes, esses sinais bastaram para que o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, embarcasse de vez na estratégia política do governo. Após a divulgação da ata do Comitê de Política Monetária (Copom) do Banco Central (BC), Haddad disse não haver justificativa para os juros estarem em 15% ao ano. O ministro vinha evitando críticas mais duras à política monetária, mas a inflexão, neste momento, é até compreensível. Se uma economia mais fraca prejudica a arrecadação, ela sepulta os planos de um governo que tentará a reeleição.

A investida também se deu no Congresso. Ao participar de audiência pública na Comissão de Agricultura da Câmara, Haddad fez mais do que defender a medida provisória que taxa títulos isentos, como as Letras de Crédito do Agronegócio (LCAs) e as Letras de Crédito Imobiliário (LCIs), e aumenta a tributação sobre as bets. Disse que a rejeição da proposta poderá afetar o Plano Safra no ano que vem, afirmou que as operações da Receita Federal estão chegando aos “verdadeiros ladrões da Pátria” e classificou de “vagabundagem” o fato de o ex-presidente Jair Bolsonaro não ter corrigido a tabela do Imposto de Renda da Pessoa Física (IRPF) durante seu governo.

No fundo, o ministro bem sabe que o arcabouço não foi capaz de controlar as despesas, o que só reforçou sua busca obsessiva por novas receitas e lhe rendeu o apelido pejorativo de “Taxad”. Mas, por ora, Haddad quer mesmo é terceirizar responsabilidades para chegar até o fim de 2026 sem ter de assumir o ônus político de alterar as metas fiscais.

Já está claro que, para isso, o governo não hesitará em recorrer a manobras como o pagamento de dividendos pelas estatais, o uso de fundos para financiar políticas públicas e a obtenção de recursos extraordinários por meio de leilões de petróleo e gás. Culpar governos anteriores, instar o Banco Central a reduzir as taxas de juros e jogar duro com o Congresso são parte desse teatro no qual discussões sobre a qualidade e a eficiência do gasto ficam sempre para depois.

Uma grande oportunidade

Por O Estado de S. Paulo

Trump abre fresta para negociar. Lula tem de esquecer que é candidato e aproveitar a chance

Em um de seus típicos momentos de arroubo, o presidente dos EUA, Donald Trump, afirmou ter tido “química excelente” com Lula da Silva, com quem esteve por menos de um minuto nos bastidores da Assembleia-Geral da ONU. Os 39 segundos desse encontro não fortuito – se quisesse, Trump poderia tê-lo evitado – foram o suficientes para comportar um abraço e, mais importante, abrir uma fresta para a retomada das relações de alto nível entre os dois países – estremecidas desde que Trump resolveu impor duríssimas tarifas e sanções ao Brasil para forçar o País a deixar livre o ex-presidente Jair Bolsonaro.

Não nos iludamos: é apenas uma fresta, que pode se fechar a qualquer momento em razão da absoluta imprevisibilidade do presidente americano. No entanto, se a declaração de Trump for para valer, é uma grande oportunidade para uma reaproximação depois de meses de estranhamento e agressões, situação praticamente inédita na história das relações entre Brasil e EUA.

E Lula deve aproveitar essa chance, mesmo que haja o risco, não desprezível, de que Trump o destrate, como fez com tantos outros chefes de Estado. Lula, neste momento, deve entender que questões pessoais são menos relevantes do que a possibilidade de mostrar a Trump que as premissas que nortearam sua decisão de castigar o Brasil são equivocadas.

Como se sabe, Trump justificou o tarifaço contra o Brasil sob o argumento de que o País tem superávit comercial com os EUA. Na verdade, é o exato oposto, há anos. Além disso, o presidente americano exigiu, na prática, que o governo brasileiro interferisse para que o Supremo Tribunal Federal livrasse Bolsonaro da cadeia, o que obviamente é impossível.

Há muitas explicações racionais para o aparente recuo de Trump, a começar pela provável pressão de empresários americanos afetados pelo tarifaço a produtos brasileiros. Em se tratando de Trump, contudo, buscar respostas racionais costuma ser perda de tempo.

O presidente americano já deu diversas demonstrações de que não se move por ideologia, e sim pela possibilidade de lucro. Sendo assim, não se prende a qualquer compromisso institucional ou diplomático. E a história de seu segundo mandato mostra, até aqui, que Trump fica muito feliz quando sai da mesa de negociação com a sensação de que quebrou a banca – mesmo que seja apenas uma ilusão.

Logo, Lula fará bem se deixar o orgulho de lado e demonstrar vontade genuína de oferecer algo aos EUA. Há espaço para tratativas em áreas como minerais críticos e plataformas digitais. A questão, contudo, é saber se Lula vai pensar no Brasil ou em sua campanha à reeleição.

A dúvida é pertinente, porque Lula, até aqui, tem conseguido faturar politicamente com as agressões americanas ao Brasil, inventando slogans sobre a “soberania” do Brasil e dizendo que seu governo está “do lado do povo” – em contraste com os traidores da Pátria que estão nos EUA empenhando-se em incitar o governo Trump a prejudicar o Brasil e com os bolsonaristas que estenderam uma bandeira americana na Avenida Paulista no Dia da Independência brasileira.

Nesse ponto, contudo, pode-se dizer que, enquanto Trump é totalmente imprevisível, Lula é um velho conhecido – que, se tiver de escolher entre ser estadista e ser candidato, dificilmente surpreenderá.

 Associar analgésico ao autismo é desserviço à saúde pública

Por Correio Braziliense

Sem apresentar dados científicos que comprovem que o paracetamol causa autismo, Trump impulsiona um movimento que há quase 30 anos dificulta o enfrentamento ao transtorno e presta um desserviço ao bem-estar coletivo

Prometendo a repórteres que faria um anúncio "incrível" na área da saúde, o presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, declarou, nesta segunda-feira, que a ingestão de paracetamol durante a gravidez causa autismo. Sem apresentar dados científicos que comprovem o fenômeno de causalidade — até porque não existem —, o líder republicano impulsiona um movimento que há quase 30 anos dificulta o enfrentamento ao transtorno e presta um desserviço ao bem-estar coletivo. Merece, portanto, a reação enfática de quem, de fato, entende do assunto, como aconteceu logo após a declaração irresponsável.

Trump apresentou dados sobre o aumento expressivo de pessoas com o transtorno do espectro autista (TEA), nas duas últimas décadas, nos Estados Unidos para embasar a afirmação polêmica. Não há dúvidas de que há mais casos oficializados lá e em outros países, incluindo o Brasil. Mas esse novo recorte não se trata de uma "epidemia", como define o republicano. Tem ocorrido, principalmente, por mudanças nos protocolos de diagnóstico que consolidaram o entendimento de que a condição tem origem multifatorial, como enfatizou a Organização Mundial da Saúde (OMS) em resposta ao chefe da Casa Branca.

Essa nova forma de compreender o autismo, aliás, tem como contribuição o esforço de cientistas que se debruçam sobre o transtorno há décadas. E os resultados de pesquisas consolidadas — que seguem padrões de validade, como a checagem por pares — descartam a relação de causalidade tanto por paracetamol quanto por vacinas. No caso do medicamento, há, é preciso reconhecer, estudos sugerindo uma associação estatística entre a ingestão e o risco aumentado de TEA, mas pequena. Pesquisa feita a partir de dados de 2,48 milhões de crianças na Suécia mostra uma diferença absoluta de risco de 0,09% para autismo em crianças expostas e não expostas à substância ainda no útero materno. O resultado do estudo foi publicado em 2024, na renomada revista científica Jama.

Dessa forma, é absurdo orientar a suspensão do uso do paracetamol como forma de prevenção do TEA, como Trump promete fazer. Diante da ideia, o Serviço Nacional de Saúde do Reino Unido tratou de ressaltar que a substância é a "primeira escolha" para gestantes, que precisam ser orientadas por especialistas para a ingestão de qualquer medicamento. Lançar dúvidas sobre analgésicos só leva a práticas que comprometem o bem-estar de grávidas, com desdobramentos para essas mulheres e para os bebês que podem ultrapassar o período da gestação. Basta lembrar da associação, essa cientificamente comprovada, entre dor e sofrimento psíquico.

Trump parece não se preocupar com a saúde pública. Avança em sentido contrário, acompanhado do seu secretário de Saúde, Robert F. Kennedy Jr., um conhecido disseminador de informações negacionistas, incluindo as que associam o autismo à vacinação. Não à toa, a declaração desta segunda foi acompanhada pela defesa por mudanças no calendário de imunização infantil. Isso em um momento em que os Estados Unidos enfrentam a volta de doenças conhecidamente evitadas por vacinas, como o sarampo. Desacreditar a ciência é um mergulho fatal no obscurantismo, como mostrou a pandemia da covid-19. Líderes sensatos reconhecem, e ecoam, a lição duramente aprendida.

 Quem responde pelo desmatamento?

Por O Povo (CE)

A Semace atribui a responsabilidade à Seuma — e o Ibama, por sua vez, só ficou sabendo da supressão vegetal depois que o mal já estava feito

Para iniciar a construção de um centro logístico, foram devastados 32 hectares de floresta no entorno do aeroporto Pinto Martins, administrado pela Fraport Brasil.

A denúncia foi feita pelo vereador Gabriel Aguiar (Psol) ao Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama), lembrando que na área existem trechos da mata atlântica.

O superintendente do Ibama no Ceará, Deodato Ramalho, em entrevista ao O POVO, manifestou "muita surpresa". Segundo ele, a Aerotrópolis Empreendimentos, responsável pela obra, suprimiu a vegetação sem esperar a avaliação dos documentos apresentados ao Ibama.

Por sua vez, a Aerotrópolis dispõe de autorização de supressão vegetal, emitida pela Superintendência Estadual do Meio Ambiente (Semace), que seria sustentada por um certificado da Secretaria Municipal do Urbanismo e Meio Ambiente de Fortaleza (Seuma), atestando a adequação do projeto ao Plano Diretor da cidade.

Em síntese, a Semace isenta-se do desmatamento, atribuindo a responsabilidade à Seuma — e o Ibama, por sua vez, só ficou sabendo do problema depois que o mal já estava feito.

Mas quem autorizou o desmatamento? Está dentro da legalidade?

O titular da Seuma, João Gabriel Rocha, admite pelo menos uma possível irregularidade. Em entrevista ontem à rádio O POVO CBN, ele disse que irá investigar se a Aerotrópolis realizou corretamente o manejo da fauna que vivia no local.

É difícil entender por que alguns órgãos públicos se mexem para tomar providências somente depois que alguma irregularidade se torna pública. Será que cabe às entidades que cuidam do meio ambiente somente o trabalho de examinar a papelada? Autorizada uma obra, confia-se que tudo será feito segundo as normas, sem fiscalização?

São tristemente comuns a destruição do que resta de natureza no ambiente urbano, muitas vezes irregularmente ou sem cuidado algum com a fauna local.

Foi assim em 2011, quando foram arrancadas árvores que cobriam uma quadra na avenida Santos Dumont para dar lugar a um empreendimento imobiliário. O corte da vegetação provocou uma debandada de soins e aves que habitavam o local, sem que houvesse preocupação com os animais.

Quanto à Fraport, não é a primeira vez que a concessionária do aeroporto se envolve em polêmicas ambientais. Em 2024, os organizadores do carnaval fora de época em Fortaleza anunciaram parceria com a Fraport para construir a Cidade Fortal em um terreno de 20 hectares no sítio do aeroporto, em local diferente do que está agora em questão.

Para fazer as obras, também seria necessário desmatar um grande trecho do espaço. Na época, foi também o vereador Gabriel Aguiar que se manifestou contra o empreendimento. O movimento para deixar as árvores em pé tornou-se tão forte que fez os organizadores da micareta recuarem, voltando a festa para o seu local de origem.

 

 


 

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