Em memória de Ney Latorraca, que atuou na novela “Vamp” (no “colorido” ano de 1991).
Depois de ser aclamado, particularmente entre
os jovens, pelos filmes “Pantera Negra” e “Pantera Negra: Wakanda para sempre”,
Ryan Coogler surpreende a muitos com um filme que resgata um pouco da matriz do
pensamento social norte-americano que fundamentou o movimento negro. Sugerimos
uma inspiração a partir de W. E. B. Du Bois (1868 – 1963) que nos legou o
livro As almas do povo negro (1903), onde as “sedimentações do passado”
podem revelar o significado do que é ser negro.
Assombrações em plena recessão da economia
norte-americana, estamos no Delta do Mississipi em pleno ano de 1932. A
segregação racial norte-americana, que muito marcou as observações de Gilberto
Freyre quando lá esteve, tinha ainda o peso de um mundo que estava há poucos
meses da ascensão de Hitler ao poder na Alemanha, em 30 de janeiro de 1933¹.
O filme tem essa padronização de terror que emergia na realidade; portanto, o branco dos latifúndios de algodão contrastava com os braços negros que colhiam em troca de “moedas de mentirinha” (cada proprietário negociava a produção colhida dos meeiros com moedas de sua fazenda, o que lhes deixavam ainda mais sob a dependência). Esses eram os verdadeiros vampiros, que moldaram seus herdeiros ressentidos após os anos das conquistas dos Direitos Civis.
O filme “Pecadores” supera todas as
expectativas anunciadas, sobretudo pela força de suas referências, que dialogam
com o gênero de terror e ação. Assim como “Um Drink no Inferno” (1996)
transcende a crítica aos Yuppies através dos vampiros, agora uma
horda de vampiros se forma em torno da tentativa de fundação de um lugar de
festas dedicado ao Blues, realizando o encontro de duas culturas estigmatizadas
pelo racismo norte-americano: os negros que foram predominantemente
escravizados no Sul dos EUA, e os trabalhadores irlandeses, por sua vocação
religiosa católica.
Há uma cena no filme em que o Pai Nosso é
rezado e problematizado nos limites da interpretação do pensamento pós-moderno
decolonial. Sugerimos um ajuste de caminhos do Diretor (que já foi apresentado
como “Pai” do que chamam de “Afro-futurismo) nas frases do chefe dos vampiros:
uma nova frase em que talvez se ouvisse “Pai, afaste de mim esse cálice de
comunitarismo populista”.
Tudo ocorre em vinte e quatro horas, num
roteiro que nos instiga a pensar na postura de dois irmãos gêmeos que poderiam
ter simplesmente vivido com sua grana ganha em Chicago. Porém, eles retornam as
origens para celebrar e compartilhar a alegria de uma “alma negra”. Assim,
(…) “Por que Deus me fez um proscrito em
minha própria casa?”. As sombras da prisão se fechavam sobre todos nós: paredes
estreitas e rígidas para os mais claros, mas implacavelmente apertadas, altas e
impossíveis de escalar para os filhos da noite, a quem só resta se deixar
arrastar sombriamente pela resignação, ou bater em vão com as mãos espalmadas
nas pedras, ou de forma obstinada, mas quase sem esperança, observar o céu azul
lá no alto. (Du Bois, As almas do povo negro, p. 21)
Vivemos tempos aterrorizantes, pois em muitos
momentos as instituições democráticas se encontram sob o teste de forças
estranhas que emergem de profundezas alheias, muitas vezes, à racionalidade. Os
pesos dos mortos assombram a Democracia nessa linha tênue entre a luz do
amanhecer da participação democrática e os caminhos sombrios da negação da ação
política. Nos caminhos de Du Bois, indiquemos que “Pecadores” estaria a expor
que:
(…) Nós, os mais escuros, não estamos de mãos
vazias por completo nem mesmo agora: não existem expoentes mais verdadeiros do
espírito humano em estado puro da Declaração de Independência do que os negros
norte-americanos; não existe música mais norte-americana do que as doces
melodias selvagens dos escravos negros; os contos de fadas e o folclore
norte-americanos são indígenas e africanos; e, apesar dos pesares, nós, os
homens negros, parecemos ser o único oásis de fé e reverência em um deserto
arenoso de dólares e ardilezas. Os Estados Unidos ficariam mais pobres se
trocassem sua cruel e indigesta obtusidade pela ingênua porém determinada
humildade dos negros? Ou seu sarcasmo bruto e cruel por um senso de humor amoroso
e jovial? Ou sua música vulgar pela expressão da alma das Canções de
Lamento? (Du Bois, As almas do povo negro, pp. 28-29)
Assim, os analistas de conjuntura precisam
ver a luz do Sol dessa realidade, ao contrário de algumas retroalimentações de
percepções circunscritas ao tema da polarização. O populismo reacionário, que
dialoga com muitos jovens, pode atrair como os cânticos vampirescos em noites
sombrias. Portanto, a coesão é fundamental, assim como nunca convidar essas
forças amaldiçoadas para que adentrem nosso lar soberano.
“Pecadores” rechaça uma alternativa em que a
liberdade seria estar sob a eternidade como maldição. A alma do negro é leveza
da cena de uma mãe a amamentar. O importante está na cultura de uma memória e
também saber honrar um “acordo” em tempos cada vez mais desafiadores. Afinal,
após a Guerra Civil americana:
(…) O espírito crescente de benevolência e reconciliação entre o Norte e o Sul depois do assustador embate de uma geração atrás deve ser visto como fonte de regozijo para todos, e em especial para aqueles cujo tratamento injusto foi a causa da guerra; mas, se essa reconciliação precisar ser marcada pela escravidão ao mercantilismo e pelo suicídio cívico desses mesmos homens negros, mantidos de forma permanente pelas leis em uma posição de inferioridade, então esses homens negros, caso sejam mesmo homens, são obrigados por patriotismo e lealdade a resistir a essa praga através de todos os métodos civilizados disponíveis, mesmo que sua resistência signifique divergências com o sr. Booker T. Washington. Não temos o direito de ficar imóveis e calados enquanto são plantadas as sementes para uma colheita inevitavelmente desastrosa para nossos filhos, sejam eles negros ou brancos. (Du Bois, As almas do povo negro, p. 79)
*Vagner Gomes é doutorando no PPGCP-UNIRIO.
¹ – Deixemos aqui um breve registro que no ano da crise econômica mundial do capitalismo (1929), o repórter policial Oscar Melo vasculhou o tema das assombrações no Recife Velho que permitiu a Gilberto Freyre escrever Assombrações do Recife Velho (1955) que poderia inspirar um seriado com episódios de suspense e terror.
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