quarta-feira, 24 de setembro de 2025

Depois de perder o monopólio das ruas, bolsonarismo perdeu também o da interlocução. Por Maria Cristina Fernandes

Valor Econômico

O interesse demonstrado pelo presidente Donald Trump por um encontro com seu colega brasileiro, Luiz Inácio Lula da Silva, na Assembleia Geral da ONU, em Nova York, é o 4º revés seguido para o bolsonarismo

Depois de perder o monopólio das ruas, o bolsonarismo agora perdeu também o monopólio da interlocução com Donald Trump. O interesse demonstrado pelo presidente americano por um encontro com seu colega brasileiro, sobre quem disse ter rolado uma “química excelente” nos poucos segundos em que se cruzaram ― "Ele parece um cara legal, eu gostei dele e ele gostou de mim" ―, é o quarto revés seguido para o bolsonarismo.

O primeiro foram as manifestações de domingo (21), que mostraram a impopularidade do combo anistia/PEC da Blindagem e o potencial do presidente Lula, ainda que esteja no poder, captar o voto antissistema que moveu o bolsonarismo. No mesmo dia dos discursos dos dois presidentes na Assembleia Geral da ONU, o Conselho de Ética da Câmara abriu um processo contra o deputado Eduardo Bolsonaro (PL-SP) por agir contra o Brasil.

O presidente da Câmara, Hugo Motta (Republicanos-PB), também rejeitou sua indicação para líder da minoria pelo fato de o deputado não estar em território nacional e não ter comunicado à Câmara sobre sua saída do país. Esvai-se, então, a possibilidade de o deputado se salvar das faltas acumuladas na Casa.

E, finalmente, o quarto revés veio na Assembleia Geral das Nações Unidas, num aceno de Trump que surpreendeu a diplomacia brasileira e desnorteou o bolsonarismo. O filho do ex-presidente classificou o aceno do presidente americano de um gesto de “genialidade como negociador”.

Seu parceiro nas ações contra o Brasil, o jornalista Paulo Figueiredo, foi adiante. Disse que Lula “termina o dia em uma posição política infinitamente pior do que começou”. Depois de o chanceler Mauro Vieira informar que o encontro seria remoto, o jornalista afirmou que o presidente brasileiro havia dado uma “arregada”.

A cautela do Itamaraty em relação a um encontro presencial minimiza a possibilidade de Lula explorar um ativo de sua diplomacia presidencial, a empatia e, de fato, cobra um preço político.

Por outro lado, ao marcar o encontro para a semana seguinte, o governo tentou evitar que Lula se mostrasse desesperado para negociar, condição que tem fragilizado interlocutores de Trump como Volodymyr Zelensky (Ucrânia) ou Cyril Ramaphosa (África do Sul) que foram ao Salão Oval da Casa Branca para ouvir desaforos do presidente americano.

Encontro com pauta difícil

Cotejados, os discursos de ambos na abertura da Assembleia Geral das Nações Unidas evidenciam a difícil tarefa de elaborar a pauta de uma conversa entre ambos. Enquanto Lula disse que as Nações Unidas representam a “expressão mais elevada de aspiração pela paz e pela prosperidade”, Trump afirmou que a ONU não apenas não resolve os problemas que deveria, como cria alguns para os EUA resolverem, como o “assalto às fronteiras do mundo ocidental”.

O presidente brasileiro disse que democracia soberania são inegociáveis, enquanto Trump afirmou que as tarifas sobre o Brasil são a resposta à interferência sobre “direitos e liberdades com censura, repressão e corrupção judicial”.

Enquanto Lula diz que “bombas e armas nucleares” não vão proteger o mundo da crise climática, Trump afirma que esta é a maior “vigarice” já criada sobre o futuro do planeta. O presidente brasileiro diz que o uso da força letal fora da guerra é o mesmo que executar pessoas sem julgamento, o americano diz que vai explodir Nicolás Maduro e todos os terroristas que tentarem traficar drogas para dentro dos EUA.

A lista de dissonâncias é infinita, mas um encontro de Lula com Trump não deixa de ser uma chance de zerar o placar. O Brasil foi, sim, largamente injustiçado nesse jogo, seja pelas tarifas sobre um comércio superavitário para os EUA, seja pela nítida afronta à soberania nacional, mas Lula avisou antes do início da partida que o adversário era indesejado.

Durante a campanha de 2024, o presidente brasileiro manifestou publicamente seu apoio à adversária de Trump, Kamala Harris. A premonição sobre o que estava por vir com o trumpismo vale menos do que a ingerência na política interna de outro país, incomum na diplomacia brasileira. Eleito Trump, o país optou por voar abaixo do radar, sem maiores investimentos num encontro entre os dois presidentes. Lula foi abatido em pleno voo pelo bolsonarismo, que transformou a retaliação americana no seu mais forte instrumento de oposição. Não foi uma porta para convergência com Trump que se abriu, mas um escape contra a chantagem do bolsonarismo.


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