sábado, 18 de junho de 2011

Opinião – Rubens Figueiredo

"Depois dos documentos secretos e da licitação secreta, só falta agora inventarmos no Brasil a democracia secreta."

Rubens Figueiredo, cientista político, sobre as iniciativas do governo para manter trancados indefinidamente papéis históricos e para impedir que venham a público orçamentos de obras da Copa-2014 e da Olimpíada-2016. Folha de S. Paulo, 17/6/2011

Manchetes de alguns dos principais jornais do Brasil

O GLOBO

O balanço, aos 80 anos, do sociólogo-presidente
STF terá novas regras para evitar golpe de mensaleiros
Dilma assume recuo em sigilo oficial
Outra s obras podem ter regime especial
FMI reduz projeção de crescimento do Brasil para 2011

FOLHA DE S. PAULO

Governo agora promete divulgar despesas da Copa
Investidores deixam papéis da Petrobras em 2º plano
Brasil arrecada muito imposto, mas devolve pouco bem-estar
Itamaraty e Defesa temem vazamento de dados nucleares

O ESTADO DE S. PAULO

Governo quer que regra de licitação da Copa seja definitiva
Pelo Corinthians, Kassab libera R$ 50 mi
Dilma diz ter mudado de ideia sobre sigilo de documentos
Planalto veta aumento do investimento da Petrobras
FMI revê alta do PIB
EUA desistem de disputa com Brasil

ESTADO DE MINAS

Você reclama... mas você poderia participar
Dilma defende sigilo de obras
STJ autoriza reajuste por mudança de faixa etária

CORREIO BRAZILIENSE

Lei seca flagra 36 motoristas por dia
Comissão da Verdade para atenuar críticas
Lula

ZERO HORA (RS)

TJ estuda só criar comarca em cidade que aceite presídio

JORNAL DO COMMERCIO (PE)

Marcha da maconha por todo o Brasil

STF terá novas regras para evitar golpe de mensaleiros

Ministros querem impedir que renúncia de réus leve à impunidade

Ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) já se preparam para evitar que manobras de réus no processo do mensalão atrasem ainda mais o julgamento dos envolvidos no maior escândalo de corrupção do governo Lula e levem à prescrição de alguns crimes. Um dos mais fortes temores do ministro relator, Joaquim Barbosa, é que, depois de reunir 600 depoimentos de testemunhas e produzir 45 mil páginas, tudo seja posto a perder com uma possível renúncia dos deputados João Paulo Cunha (PT-SP) e Valdemar Costa Neto (PR-SP). Eles são hoje os únicos entre os 38 réus que ainda têm direito foro especial - e, por causa deles, o caso é mantido no STF. Na hipótese de renúncia, ainda que às vésperas do julgamento marcado para 2012, o processo teria de ser transferido para a primeira instância do Judiciário e totalmente refeito. Seis ministros ouvidos pelo GLOBO se mostraram dispostos a mudar a norma atual para evitar um possível golpe como a renúncia, impedindo que todo o trabalho volte à estaca zero e que o escândalo acabe impune.

Ação contra golpe de mensaleiros

Ministros do STF se mobilizam para impedir manobra pela impunidade

Carolina Brígido

Brasília - Um dos principais temores que rondam o ministro Joaquim Barbosa, relator do processo do mensalão, está sendo resolvido nos bastidores do Supremo Tribunal Federal (STF). Pelo menos seis ministros estariam dispostos a mudar o entendimento da Corte para evitar que, em caso de renúncia de réus com foro privilegiado, o caso deixe de ir a julgamento.

O processo foi aberto há quatro anos para apurar o esquema de pagamento de propina a deputados da base do governo Lula. Depois de ouvidos os depoimentos de mais de 600 testemunhas e produzidas centenas de documentos, tudo pode ser posto a perder se, na véspera da decisão final, os deputados João Paulo Cunha (PT-SP) e Valdemar Costa Neto (PR-SP) renunciarem. Eles são os únicos entre os 38 réus que ainda têm direito a foro especial e, por isso, o caso é mantido no STF. Em caso de renúncia, a regra é clara: o processo seria transferido para a primeira instância do Judiciário, com a possibilidade de ser totalmente refeito. A chance de prescrição dos crimes antes do julgamento seria grande.

Julgamento somente em 2012

Seis ministros ouvidos pelo GLOBO argumentaram que não se pode perder todo o trabalho em virtude de uma manobra dos réus. Portanto, mesmo que os dois parlamentares renunciem ao mandato às vésperas do julgamento, o grupo deverá ser julgado pelo plenário do Supremo. O relator calcula que o julgamento seja marcado para fevereiro ou março de 2012. Na quinta-feira, o processo tinha 213 volumes e 484 apensos. Só na parte dos volumes, há um total de 45 mil páginas. A discussão sobre o que ocorre com o processo quando o réu com foro privilegiado renuncia ao mandato tomou conta do STF em outubro de 2007. Na véspera do julgamento, o então deputado Ronaldo Cunha Lima (PSDB-PB) renunciou. Barbosa, que também era o relator, ficou irritado. Alertou que a manobra poderia ser usada pelos réus do mensalão. Na época, ele recebeu apoio de três colegas: Carlos Ayres Britto, Cármen Lúcia e Cezar Peluso.

— No presente caso, a renúncia do réu ao seu mandato, no momento que incluída em pauta a ação penal, após todos estes anos de tramitação, tem a finalidade clara — e ao mesmo tempo espúria — de evitar o julgamento por esta Corte, que tem competência constitucional para julgar mandatários políticos — disse Barbosa no julgamento de 2007.

— Estabelecer tal precedente (a mudança de foro com a renúncia) nos levaria a praticar atos inúteis, quando esta Corte tem, a seu cargo, problemas gravíssimos que não encontram soluções rápidas e tão céleres quanto todos desejamos — ponderou Peluso.

Mas os outros sete ministros entenderam que o caso deveria ser transferido para vara criminal na Paraíba — o que aconteceu. Como o crime prescreveria naquele ano, Cunha Lima ficou impune. Ele respondia por tentativa de homicídio contra o adversário político Tarcísio Buriti desde 1995.

— A competência desta Corte se limita ao julgamento daqueles que sejam titulares de mandato. É uma competência estrita que não admite alargamentos. E, via de consequência, não sendo viável, não sendo possível reinstalar o acusado na condição de deputado federal, cargo do qual se apartou voluntária e irrevogavelmente, entendo que não subsiste a competência desta Casa — disse no voto a ministra Ellen Gracie, que presidia o tribunal.

Hoje, o plenário do STF é outro. Dois dos ministros que participaram do julgamento não estão mais na Corte. Além disso, ministros que votaram pela transferência do foro mudaram de ideia — especialmente levando em consideração o risco de impunidade. O caso só será discutido em plenário se houver renúncia por parte de João Paulo Cunha ou Valdemar Costa Neto. Como a questão pode ser examinada no futuro, os ministros não quiseram tornar públicas suas opiniões.

— Se houver renúncia no caso do mensalão, estarei disposto a rever minha posição — disse um dos ministros que votou de forma diversa em 2007. Quando um processo muda de foro, muitas vezes as instruções são refeitas — especialmente os depoimentos. Com isso, é provável haver a prescrição dos crimes antes do julgamento. No caso do mensalão, a prescrição será definida a partir da sentença a ser dada pelos ministros em 2012. Isso porque, segundo o Código Penal, se for arbitrado a pena mínima, a prescrição tem tempo menor e, se for dada a pena máxima, possui prazo maior. Além dos deputados, são réus o ex-ministro-chefe da Casa Civil José Dirceu e o publicitário Marcos Valério, entre outros.

FONTE: O GLOBO

Governo quer que regra de licitação da Copa seja definitiva

Planalto pretende extinguir Lei de Licitações se o Regime Diferenciado de Contratações for bem-sucedido

As regras para apressar licitações e contratações de serviços e obras serão aplicadas na organização da Copa de 2014 e da Olimpíada de 2016, mas a intenção do governo é que, caso a experiência seja bem-sucedida, o Regime Diferenciado de Contratações (RDC) passe de provisório a definitivo. Após os eventos esportivos, o Planalto pretende extinguir a Lei das Licitações, informa Rui Nogueira. O ministro do Esporte, Orlando Silva, afirmou que o RDC faz parte da proposta de "aperfeiçoamento das regras de compras governamentais com mais competitividade". Em Ribeirão Preto, a presidente Dilma Rousseff disse que o regime especial foi discutido com órgãos reguladores.

Governo usa Copa para modificar licitações

Regra que flexibiliza a contratação de obras, que serviria apenas para Mundial e Olimpíada, pode se tornar definitiva

Rui Nogueira O pacote de regras para o governo licitar mais rapidamente serviços e obras é para ser usado na organização da Copa de 2014 e na Olimpíada de 2016, mas a intenção do Planalto é que, se a experiência for bem sucedida, o chamado Regime Diferenciado de Contratações (RDC) passe de provisório a definitivo. Depois dos eventos esportivos, o governo pretende efetivar essas regras, enterrando de vez a Lei das Licitações (8.666) que vigora desde 1993.

O ministro do Esporte, Orlando Silva, deixou claro ontem que o RDC faz parte de uma proposta geral de "modernização da Lei de Licitações, de aperfeiçoamento das regras de compras governamentais com mais competitividade (entre fornecedores) e redução de preços".

O RDC tramita na Câmara e teve o texto básico aprovado na noite de quarta-feira. Emendas e destaques devem ser aprovados em duas semanas.

No Senado. A revisão da Lei das Licitações foi proposta pelo ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva no início do segundo mandato, em janeiro de 2007, simultaneamente ao lançamento do Programa de Aceleração do Crescimento, conhecido como PAC 1.

O projeto de lei enviado ao Congresso tramita há quatro anos e meio na Casa e, neste momento, ainda está em fase de audiências públicas nas comissões do Senado. Deve ser alterado e, por isso, obrigado a voltar à análise dos deputados - o que significa que não será aprovado até o final deste ano.

"No mínimo", admitiu o ministro ao Estado, após a entrevista coletiva, "o governo quer, depois da aprovação do RDC e do uso na Copa do Mundo e nos Jogos Olímpicos, que esse processo (de licitações) seja usado como inspiração para os parlamentares aperfeiçoarem ainda mais as mudanças na Lei de Licitações que estão em discussão no Senado".

Transplante. Na prática, diante da demora na tramitação do projeto que está no Congresso, o Planalto aproveitou a Copa e a Olimpíada para atropelar o processo e, por meio de uma emenda à Medida Provisória 527, incluir o RDC nas votações de MPs que já estão no plenário da Câmara - as MPs têm preferência nas votações. Da Câmara, o RDC segue para o Senado e, em seguida, para sanção da presidente.

O governo fez um verdadeiro transplante: as propostas que havia feito, em janeiro de 2007, no projeto que muda a Lei das Licitações, foram incluídas agora na emenda do RDC que está para ser aprovado na Câmara.

Orlando Silva disse que o RDC foi preparado com base em experiências nos EUA, no Canadá, em países da União Europeia, Argentina e até em práticas de empresas privadas. A lei em vigor no País, afirmou, é de uma época em que não havia internet. Por isso, é considerada desatualizada. Agora, o governo federal pretende usar com mais frequência o pregão eletrônico.

"Debatemos com técnicos do Tribunal de Contas da União (TCU) a elaboração da proposta", disse Orlando Silva. O ministro do tribunal, Valmir Campelo, confirma e apoia o RDC.

Dilma defende modelo

A presidente disse que o regime especial foi discutido entre governo e órgãos reguladores e é aplicado na União Europeia. Dilma afirmou que orçamentos serão públicos assim que finalizados.

FONTE: O ESTADO DE S. PAULO

Charge: Dilma e o PT

Humberto/Jornal do Commercio (PE)

Entrevista especial :: FHC

Oito anos depois de deixar a Presidência, FH diz que o país mudou muito, e para melhor, mas ainda falta

Helena Celestino, Luiz Antônio Novaes, Silvia Amorim e Silvia Fonseca

RIO - "Arrependimento? Se for ficar na política, acho que poderia ter sido mais suave, teria me desgastado menos e conseguido mais". A crítica de Fernando Henrique Cardoso ao seu jeito presidente de ser combina com o bom humor e a língua afiada que mantém até hoje ao chegar aos 80 anos de idade. Completamente adaptado à vida da planície depois dos oito anos no Palácio do Planalto, o ex-presidente está de bem com a vida. É generoso ao falar de aliados e opositores -, mesmo se ainda se ressente de como foi tratado por Lula - mas não perde a oportunidade de rir dele mesmo e dos personagens do mundinho político brasileiro. Distante do dia a dia partidário, criou uma rotina prazeirosa, povoada por viagens, livros, amigos e filhos. Mora sozinho num amplo apartamento em Higienópolis - o bairro paulistano que ajudou a tornar conhecido como reduto dos tucanos - e é com gosto que passa as manhãs em casa, escrevendo dois novos livros - um de reflexões sobre o mundo contemporâneo e outro revisitando a obra dos pioneiros do pensamento sociológico e político brasileiro, como Joaquim Nabuco, Gilberto Freire e Florestan Fernandes.

- Nunca consegui trabalhar fora de casa - conta, revelando o vício do intelectual que detesta escrever de terno e gravata. - Já escrevi de pijama e até de calção, mas no Alvorada não dava para pisar naqueles tapetes de pé molhado - brinca.

O estilo sociólogo chique predomina na decoração do apartamento. É refinado, mas despojado e com marcas de uso. Pelas paredes e estantes, objetos de arte e quadros, muitos deles recebidos de presente na época de presidente. À vista, livros de arte, álbuns com fotos ao lado de Ho-Chi-Min numa viagem ao Vietnã, um tucano enquadrado e uma bússula pintada a óleo perto de uma grande mesa de madeira na sala de jantar. Em lugar de destaque, dois Mirós, uma foto de Dona Ruth e, na parede ao lado, uma imagem da casa onde nasceu, agora quase toda tomada pelas raízes de uma árvore, na Rua Bambina, em Botafogo, no Rio. Tem dois escritórios em casa, mas só guarda nas estantes uns 500 livros. A maior parte de sua biblioteca de 20 mil volumes está no Instituto Fernando Henrique, onde à tarde trabalha.

- Agora, quando eu quero um livro, tenho de pedir à bibliotecária. Fica um vai e vem... Quando estou escrevendo, vou procurar o texto que quero, o livro não está... Mas, na vida atual, morando em vários países, não dá para ter grandes bibliotecas em casa, desapeguei desde que a polícia (na ditadura) levou meus livros lá da casa do meu pai - diz, contando que agora viaja só com um iPad. Em sua nova rotina doméstica, mais de oito anos depois, ele não desdenha, mas não sente saudades da vida nos palácios de Brasília, onde não conseguia abrir uma porta e nadava observado por seguranças.

- Palácio é lugar de intriga. Se tiver imaginação, você acha que é rei. Mas, se tiver senso de realidade, percebe que mora mesmo é numa repartição pública - diz com humor.

Uma repartição pública com perigosas armadilhas, como a dos documentos oficiais protegidos por sigilo eterno que deixou para seus sucessores. Assinado no último dia do seu mandato, em 31 de dezembro de 2001, o projeto chegou à sua mesa numa pilha de papéis.

- Não recebi pressão nem do Itamaraty, nem dos militares. Mas alguém botou isso lá, sem ter passado pela Casa Civil.

Neste sábado, vai festejar o aniversário só com a família, mas o festival de comemorações promete durar. Neste domingo, a Osesp fará um concerto em sua homenagem. Semana passada, jantou na Sala São Paulo com 500 amigos, daqueles cultivados pela vida, nenhum deles encontrado na lista de Facebook. Em agosto, pretende fazer uma festa no Rio, mas a agenda por agora está cheia.

Nesses 80 anos de vida, em que momentos ou em que papéis o senhor se sentiu mais confortável?

FERNANDO HENRIQUE: Para ser franco, eu me sinto à vontade em muito papéis. Eu não desgostei do exercício da Presidência. Nunca me queixei de doença, cansaço, embora às vezes estivesse cansado. Eu não achava mau, assim como me adaptei imediatamente a outro estilo de vida (ao deixar a Presidência). Fui dar aula de novo. Aula é um modo de dizer porque em Brown (University), onde eu era professor-at-large, mas recebia alunos, dava seminários. Eu me adaptei. Depois, passei a ter funções em organizações internacionais, fui presidente do Clube de Madrid. Hoje participo do grupo do (Nelson) Mandela, que é muito ativo, negociações pelo mundo afora, uma porção de coisas. E participo de vários conselhos e fundações...

Mas no Palácio era possível conciliar os papéis de presidente e intelectual?

FH: Com dificuldade. Nunca deixei de ter um certo olhar distante, que é o do intelectual, o que é uma desvantagem na vida política.

Por que é desvantagem?

FH: Porque você se refreia, tem um olhar crítico, então não faz uma porção de coisas que os políticos têm que fazer. Você tem mais autocrítica, mais freios. Mas isso tem uma vantagem, que me ajudou muito, que foi não entrar no olho do furacão. Quando, por exemplo, atacam muito pela imprensa, ou a própria imprensa ou os políticos, percebo que estão atacando um personagem, não eu como pessoa. Sei me distanciar.

Como presidente, qual a principal lição que o senhor tirou para o pensamento do sociólogo, para a sua percepção da realidade brasileira?

FH: Você fica com uma visão muito mais rica e vê que as coisas são muito mais difíceis e complicadas. Os interesses são muito mais emaranhados, é muito mais difícil obter uma convergência para alguma coisa, e você não tem soluções simplistas para os grandes problemas. Se tivesse, estariam resolvidos. Você passa a ser mais tolerante, não no sentido de permissivo, mas entende mais o outro. Vê como são as pessoas. Acho que, em parte, a liderança presidencial tem de ser intuitiva, veja o Lula, mas, quando você tem um pouco mais de capacidade de análise, fica vendo por que as pessoas estão fazendo isso ou aquilo. Ao mesmo tempo que desculpa umas, condena outras.

Mas isso faz ficar mais pessimista ou otimista a respeito do mundo?

FH: Mais realista. Não digo pessimista porque dá para avançar. Meus colegas acadêmicos puro-sangue sempre ficavam um pouco horrorizados de ver como é que eu lidava com o que, para eles, é uma gente despreparada. Eu dizia que eles não eram preparados para umas coisas, mas muito bem preparados para o que eles fazem. E eu já tinha a experiência do Senado. Minha transformação de papéis foi aos poucos, porque fui senador por muito tempo. É verdade que era diferente; quando fui para o Senado, no tempo do governo Figueiredo, o poder do Congresso era pequeno, e a pressão sobre ele era menor. Mas depois veio a fase da Constituinte, que foi uma grande escola. Foi um momento muito rico da nossa História, e nunca estudado. Fui um dos relatores das regras para fazer a Constituição, eu e (Nelson) Jobim. Abrimos espaço para emendas populares, a quantidade de pessoas que se manifestou foi brutal. Então, você vê um país sonhando, às vezes delirando, às vezes com pesadelo... Fui forçado a participar dos processos de negociação. Era muito interessante o que estava acontecendo. E aí você vê como é intrincado mexer numa sociedade como a brasileira.

Qual a mais forte ilusão de sociólogo que a Presidência destruiu? O senhor entendia menos como agiam os políticos ou os empresários, o mercado?

FH: Os políticos eu entendia, mas a inexperiência maior era com o mercado. Não era fácil entender como funcionava o mercado financeiro. Naquela época, eram crises sobre crises. Muitas vezes a situação objetiva não era tão ruim, e a bolsa caía... Nunca houve pressão no sentido de que alguém vem aqui para pressionar. Isso não existe. Mas especulação (financeira)...

E as divergências dentro do governo?

FH: Também havia, mas você tem que mediar essas divergências e, quando necessário, tomar partido.

Foi um dos momentos mais difíceis do seu governo (a crise cambial de 99)?

FH: Sem dúvida. Foi a mais difícil de todas. Mas veja como há pouca compreensão de como é o processo real. A uma certa altura, o Köhler (Horst), que era o diretor-geral do FMI, veio ao Brasil, eu estava no Rio, e nos encontramos no BNDES. Saiu na imprensa que ele veio aqui para me dar instruções. Na realidade, ele veio aqui para me agradecer, porque para a eleição dele - o Schröder (Gerhard), que era o chanceler da Alemanha, tinha me pedido para apoiar o Caio Koch-Weser, um brasileiro, e eu concordei. Acontece que o Caio não foi aceito pelos americanos. Então, o Schröder me ligou de novo e pediu para eu ajudar com uns votinhos na América Latina para o Köhler. Havia um outro que era muito bom, o Stanley Fischer, que tinha ajudado no Plano Real, deu uns palpites. Mas, enfim, Köhler veio para agradecer, não havia pressão do FMI. Não é assim que as coisas acontecem. Mas o mais difícil, pessoalmente, vou dizer: é demitir um ministro que é seu amigo e que não fez nada de errado, mas a situação o obriga.

O senhor se refere a...

FH: Ao Clóvis Carvalho e ao Celso Lafer. É difícil.

O senhor acha que a presidente Dilma já conheceu esse lado amargo logo de início?

FH: Sim, não sei se na mesma proporção que eu, porque o Clóvis e o Celso eram meus amigos. Eles são hoje do conselho do meu instituto. Demiti o Xico Graziano, que está comigo também. No caso do Clóvis, o motivo foi um discurso que foi parar na imprensa como se fosse um choque com o que defendia o Malan. Você não pode permitir choque público com o ministro da Fazenda. Não era a intenção dele, mas intenção é uma coisa...

O senhor então discorda do que disse o ex-presidente Lula, que a opinião pública morreu?

FH: Eu discordo. Se tivesse morrido, não teria acontecido tudo o que acontece, inclusive agora.

E como o senhor vê o papel da opinião pública?

FH: O que é a opinião pública aqui? Antigamente era quem lia a imprensa. Basicamente era isso. Agora é quem vê a televisão e a internet. E isso faz pressão. Não morreu, não, é o contrário.

O senhor identifica um novo momento na sociedade, nesse aspecto?

FH: Ah, não tenho dúvida. E crescentemente vai ser assim, você vai ter uma influência cada vez maior da sociedade conectada, que se manifesta cada vez mais. É curioso porque essa conexão pode produzir "derrubamentos", derruba alguém, mas não constrói, porque não tem como fazer a coisa funcionar. É para rupturas. Veja o que aconteceu agora no mundo árabe. Dá o contágio, pega, e se movimenta. Agora, isso não dispensa a ação institucional. O problema hoje é que você tem uma sociedade que está se conectando crescentemente, e o lado institucional não sabe se relacionar com isso. Dá a impressão de que algumas instituições envelheceram, não percebem que têm que mudar e não sabem para que lado vão.

Por exemplo?

FH: Qualquer pesquisa de opinião põe o Congresso em último lugar. É sintoma de que a instituição não está sendo aceita pela sociedade tal como é. E a sociedade não toma conhecimento do Congresso. Sofre as consequências de algumas decisões, mas não se preocupa; no dia a dia, se preocupa com outras coisas. Pode ver: quais são os temas debatidos na internet e quais os debatidos no Congresso? São dois mundos. Acho que esse é o sintoma de um problema grave na sociedade atual. Como o Congresso é indispensável e os partidos também, é um problema. Porque não vai ter jeito sem partido e sem Congresso.

Não se pode dizer que é porque o Congresso brasileiro é muito ruim?

FH: Não, porque é um fenômeno que acontece no mundo inteiro.

O que falta para o Brasil chegar a ser um país de primeiro mundo? Quando o senhor saiu, admitiu que não tinha conseguido resolver a questão da segurança, e disse que o presidente que resolvesse isso...

FERNANDO HENRIQUE: O que falta? Não é renda, porque ela está encaminhada. As empresas brasileiras, privadas e públicas, avançaram. É uma coisa importante: a empresa pública brasileira, em função do que eu fiz, virou empresa, deixou de ser repartição pública, então ela tem capacidade. A Petrobras, por exemplo, não foi só quebrar o monopólio; nós mudamos como é que opera, para competir. Não estávamos preparando para privatizar, mas para funcionar como empresa privada, sem influência do setor político. Bom, então as empresas avançaram, a mídia avançou, parte da universidade avançou. O que não avançou? O acesso à Justiça. Toda a questão de segurança está melhorando, mas muito lentamente. Você não tem ainda cidadania. Tem acesso à educação, mas a qualidade deixa a desejar. Tem acesso à saúde, mas o problema também é de qualidade. Saímos da fase de escassez para uma fase do tem mas não serve, tem mas não funciona. Em vários aspectos. Talvez a coisa seja educação mesmo. Porque ter PIB alto é bom, mas a Dinamarca tem um PIB menor que o nosso...

O que deveria ser feito para melhorar a educação? O atual ministro da Educação diz que não pode ter um choque, que é um processo lento...

FH: É verdade. Eu não acho que o ministro atual seja um mau ministro. Paulo Renato foi um bom ministro. Portanto, a educação teve bons ministros. Deixe-me ser um pouco mais amplo. Acho que estamos um tanto sem estratégia no Brasil, no geral. Não estou falando só do governo. Tenho horror a essa ideia de que falta um projeto nacional, porque isso é uma visão totalitária, a famosa utopia totalitária. Acho que não é isso. Numa sociedade democrática você tem de ter uma convergência de objetivos. Não é alguém que, com uma alavanca de governo ou partido, faz. Essa é a grande diferença entre o PT e o PSDB. O PT acredita que o partido toma conta do Estado, e que o Estado muda a sociedade. Ele não acreditava nisso no passado. Ele nasceu da sociedade, mas esqueceu disso. No fundo, é mais autoritário. Mas precisa ter uma estratégia que seja convergente. O que todos queremos? Queremos passar de uma sociedade rica e desigual para uma só mais igualitária ou queremos mais que isso? Cuba e Coreia são igualitárias. Igualdade é um valor, mas não é absoluto. Precisamos querer mais do que isso, uma sociedade com valores de participação, democracia, liberdade, respeito ao indivíduo, de Justiça. Então, acho que não temos uma visão compartilhada do futuro. Aqui se tomam grandes decisões sem o país saber. As decisões sobre petróleo, ninguém discutiu. Sobre ter mais usinas nucleares, ninguém discutiu. Falta a sociedade se engajar nessa questão. Na educação é a mesma coisa. Vamos fazer o trem-bala! Por quê? Pode ser que seja necessário, mas não foi discutido. Voltamos a um período militar, em que você não transformava em debate público as decisões de Estado. Se não tem isso, somado a uma sociedade que não confia nas instituições, como ter uma convergência de todos? Não tem. Fica cada um por si e Deus por todos. E sabe quem manda? É o mercado, o que comanda mais hoje é o mercado, não o Estado. Eu sou contra isso. Numa sociedade democrática, não pode ser o mercado que comanda, tem que ser a sociedade.

Mas no seu tempo de presidente, quais foram os grandes temas? E acha que a sociedade se engajou e discutiu?

FH: Reforma agrária, previdência social, estabilização. Como é que fizemos a estabilização? Não foi impondo. Dissemos quais eram os passos, o tema... O Congresso discutia. Nos últimos anos, o Congresso perdeu ressonância na sociedade porque carimba medida provisória.

Mas será que a sociedade também não perdeu o ímpeto?

FH: É possível que sim, em decorrência da prosperidade. Isso não é culpa de ninguém. Estou aqui fazendo uma análise sociológica. Há uma desmobilização que vem junto da prosperidade. A prosperidade é boa, mas não é suficiente para se chegar ao primeiro mundo. Acho que estamos melhorando muito. Tenho 80 anos. Nasci em 1931. Pensa o que era o Brasil quando nasci.

O senhor nasceu com a revolução de 30.

FH: Junto com a revolução de 30, em que minha família toda estava metida. O que era aquele Brasil? Quanto havia de analfabetos? 70%, 75%. Hoje são 10%. Só havia uma estrada pavimentada, que ligava o Rio a Juiz de Fora. Quando vim para São Paulo, tudo o que vocês veem lá (apontando para a janela de seu apartamento, de onde se vê o bairro de Perdizes) era lama. Isso era o Brasil, não tinha estrada. Então mudou tudo no Brasil, mudou tudo, e para melhor.

Na sua biografia, o senhor disse que conheceu a pobreza por livros, que era uma consequência desse Brasil, onde a pobreza era uma coisa distante...

FH: Distante. Eu fiz pesquisa no início da minha carreira sobre negros. Andei muito em favelas, e você entrava na maior tranquilidade porque a diferença de classe era tão marcada que o pessoal não mexia. Estudei no Colégio Perdizes. Tinha a serraria do Maluf, que era do pai dele, nessa rua. Então, me lembro que tinha mais adiante a fábrica do Matarazzo. Na hora do almoço, ficavam os operários na calçada, comendo na marmita, e, se passasse alguém engravatado, eles abriam espaço... Então a sociedade do passado é inaceitável. A de hoje é mais igualitária, as pessoas reivindicam, olham cara a cara. Mudou para melhor.

Quais os grandes momentos de transformação no país nesses 80 anos? O primeiro choque, o senhor lembrou, foi dado por um Estado forte; não há uma contradição aí?

FH: Não, naquele momento não tinha alternativa. E até hoje o Estado é fundamental. Não gosto é da ideia de um projeto (imposto). Mas claro que foi, o Estado é fundamental, e até hoje. E, curiosamente, as grandes transformações econômicas do Getúlio, ele tentou não fazer pelo Estado. Volta Redonda, ele tentou fazer pela iniciativa privada, mas não tinha como ser. Quem fez a Embraer foi a Aeronáutica. E certamente haverá hoje muitas coisa que ou o Estado faz ou ninguém faz. A ideia de pensar que é só o mercado, não! O Estado tem um papel importante. Agora, o que não pode é ter autoritarismo.

Mas quais os momentos de grande transformação?

FH: Para mim, primeiro, a Segunda Guerra Mundial. Meu pai era militar, nós mudamos de novo para o Rio, Copacabana tinha blecaute, ensaios de bombardeios. Então, na época da guerra, o Brasil deu um salto porque fizeram a chamada substituição de importações forçada. Não podia importar, começou a se produzir aqui. Foi um boom da indústria têxtil e urbanizou mais. Mais tarde, Getúlio se beneficiou disso. Depois você tem um período bastante difícil que é o final do presidente JK. Ele fez o endividamento e fez a abertura também, não a abertura da economia, mas trouxe o capital estrangeiro para cá. Internacionalizou a produção daqui, não internacionalizou a economia brasileira, e fez Brasília, deu um certo otimismo. E, daí por diante, os anos 60 foram muito difíceis, veio o golpe e foi muito complicado. Em 70, houve crescimento econômico, mas os indicadores sociais não melhoraram tanto. Como houve uma explosão urbana, a administração pública entrou em colapso. Aumentou a desigualdade. Aí, quando chegou nos anos 80, isso ficou mais sensível, inflação, e não sei o quê... Nos anos mais recentes, para mim, o grande marco é a Constituinte, a Constituição, que assegura as liberdades, dá voz ao povo, permite organização, isso é consequência das Diretas já, das greves do passado. Daí por diante, não tem governo que não tenha que olhar para o povo, porque o povo taí, ele pode gritar, pode ir ao tribunal , ele reclama, não faz mais greve. No meu governo, acabou (greve).

Voltou a fazer agora...

FH: Agora um pouquinho, né, por causa da inflação. Então acho que a Constituição desenhou um futuro social-democrático para o Brasil, deu muita liberdade, inventou o SUS, permitiu reforma agrária, e com um problema: ela foi em 88 e o Muro de Berlim caiu em 89. Então ela manteve o corporativismo, com monopólios...

E isso não tem nada a ver com a social-democracia. Tem mais a ver com o PT?

FH: Nada a ver com a social-democracia, mas com o PT. A estrutura sindical getulista... O PT aderiu a isso. O PT na Constituinte era libertário, ele votou contra a estrutura sindical. Eu fui dos poucos que votei junto com o PT, para quebrar o fascismo que tem ainda hoje na CLT, para empresário e para trabalhador. Os dois se juntaram porque os dois se beneficiaram do dinheiro indevido, que é nosso, para manter essas burocracias enormes, sindicais, que não têm mais representatividade efetiva da base. Bom, de qualquer maneira, o segundo passo importante foi a abertura da economia no governo Collor, porque forçou o Brasil a entrar na competição. Fui ministro da Fazenda logo depois, e a pressão que eu sofria dos amigos de São Paulo era enorme para não continuar a abertura.

Foi por causa dessa pressão que o senhor não abriu tanto?

FH: Eu abri pouco, mas não foi por causa dessa pressão. Não dá para mudar tudo de uma vez. E ao mesmo tempo jogamos o BNDES para compensar porque várias indústrias foram abaladas. O BNDES teve papel essencial na reconstrução dessa estrutura, e continua tendo. Então o segundo passo foi esse. O terceiro foi a estabilização da moeda, com tudo o que isso significa. O quarto foi a reforma do Estado, que incluiu as privatizações, as agências reguladoras, transformar o Estado numa peça eficiente. Vou dar um exemplo: o SUS só havia no papel. Foi feito por nós. Hoje, bem ou mal, tem o SUS aí. Na Previdência ficamos canhotos porque fizemos só o fator previdenciário que o Congresso derrubou e o Lula vetou. Houve mais mudanças, menores. Criei o Ministério da Reforma Agrária, o Pronaf, revolucionamos a agricultura... E quinto passo: as políticas sociais, que começam no meu governo e explodem no governo do Lula. Essa é sequência das transformações mais recentes.

O que falta?

FH: Houve certos retrocessos na questão do Estado. Estão aí os aeroportos como prova pura disso. As estradas também não avançaram mais.

O Estado ficou mais forte.

FH: Mais forte para quê? Não está mexendo na infraestrutura. A economia ficou mais forte, e o Estado está fortalecendo uma economia forte, às vezes desnecessariamente, dando dinheiro para fusões, o que é discutível. Mas não houve uma expansão da infraestrutura. Porque ficou no Estado, e o Estado não tem os recursos, às vezes. Eu reitero: não sou privatista, não sou neoliberal, mas tem coisas que o Estado pode e coisas que não pode fazer. No caso dos aeroportos, é gritante que tinha que fazer concessão e não foi feito. Mesmo no caso da energia elétrica, o dinheiro que está indo para Belo Monte é público. Se quiser fazer o trem-bala, não tenho nada contra, mas bota dinheiro da iniciativa privada. Por que o meu, o seu, o nosso? As agências reguladoras perderam força, a Petrobras tem penetração política, então isso é retrocesso.

Mas e de bom?

FH: Primeiro, os programas sociais...

Pela análise do senhor, apesar dos retrocessos, não houve nada ainda que fizesse andar para trás, que comprometesse?

FH: Não. O PT vive dizendo: o PSDB não tem projeto. Como não tem projeto? Vocês (os petistas) estão cumprindo!

Mas o que o PT fez de bom?

FH: A expansão da política social. Eu não faria a politização dela, de (atuar como) novo pai dos pobres, não. Mas a expansão foi positiva. Na educação, acho que não paralisaram. Houve alguns tropeços, mas, no geral, historicamente, a linha está ascendendo, não está caindo.

O que pode atrapalhar essa linha ascendente?

FH: O que pode atrapalhar é o seguinte: A Previdência tem problemas, o sistema tributário também, o mercado de trabalho também... Não houve reforma nenhuma. Trocamos a reforma pelo bem-estar, e não houve um avanço grande de investimentos - agora está começando a ter. O crescimento está se dando mais pelo consumo do que pelo investimento. Isso vai até certo ponto e depois para. É o seguinte: o futuro vai depender de educação, tecnologia e inovação. O Brasil tem hoje uma situação privilegiada porque a China voltou a ter um papel central no mundo e ela precisa de comida e matéria-prima. E o Brasil tem espaço para continuar a plantar e tem boa mineração. Mas isso tem um preço: nossa indústria começa a dar sinais preocupantes, o número de empregos aumentou, mas os empregos são de baixa qualificação. País desenvolvido é país de emprego bom.

Mas está melhorando a qualidade do emprego.

FH: Não, não está. A formalização uma coisa positiva no governo Lula. Mas a propaganda diz "milhões de empregos", quando não é emprego novo. Passa a contar porque foi formalizado, mas já existia. Com essa mudança do mundo, o Brasil não pode dispensar o crescimento industrial. É normal que o serviço cresça bastante, em todas as economias. Mas qual serviço? De qualquer maneira, volta ao tripé: educação, tecnologia, inovação. Por quê? Vamos ter de competir. Temos que escolher: vamos ser bons no quê? Não podemos continuar com a visão autárquica que vem do passado de querer ser bom em tudo. Tem que escolher e fazer as apostas. Creio que o BNDES tem um pouco dessa visão. Estou falando de escolher em que setores um país tem que investir. Pega um país, a Coreia, que esteve muito atrás do Brasil e hoje está à frente. Tem de ter um certo ingrediente de pragmatismo na nossa formação, que não temos. Eu não sou pessimista quanto a nada disso, só estou assinalando que é por aí que temos que caminhar. E acho que essa coisa do governo Lula de que "eu sou tudo, o bom" e o outro é mau, isso atrapalha a convergência nacional.

O senhor está dizendo que o populismo, não só no Brasil mas em qualquer lugar, é um desastre para a convergência?

FH: É um desastre, não permite esse tipo de convergência, e fica então muito mais propaganda do que consenso nacional. E depois que o líder sai, cadê a propaganda?

O senhor considerou as privatizações um dos grandes avanços. Mas que coisa estranha acontece que, em toda eleição, ela vira um espantalho?

FH: Faltou luta do PSDB, faltou reafirmar com força que aquilo foi positivo. E é tão fácil! Nós não nos orgulhamos de a Embraer vender aviões no mundo todo? Temos quantidade de celular que cresce exponencialmente, e todo mundo gosta. A Vale é a segunda maior empresa de minério do mundo, nos orgulhamos disso, mas ao mesmo tempo...

Foi erro na comunicação?

FH: Sim, mas não só. A esquerda brasileira, e eu também, foi criada com a ideia de que se não é estatal não é bom. Uma parte importante do pensamento político brasileiro é assim, e no PSDB também.

Do que o senhor se arrepende nestes 80 anos?

FERNANDO HENRIQUE: Ah, aí você vai passar a tarde toda aqui (risos).

Do que mais se orgulha?

FH: Vou dizer uma coisa que pode parecer clichê. É da minha família. Eu tenho um apoio tão forte, tinha da Ruth e tenho dos meus filhos. Em todos os eventos da minha vida, o que não é fácil, é inacreditável. Meus filhos me ligam incessantemente e vêm aqui, se preocupam. O que me dá possibilidade de viver com independência e vigor é que tenho apoio brutal da minha família e dos amigos de muito tempo. Isso é necessário.

E o arrependimento?

FH: O arrependimento? Olha, se for na política... O resto eu não posso nem falar, porque tenho tantos... (Mas na política) é aquilo que eu disse, é conveniente ter a noção de que não dá para mudar tudo de repente. Acho que forcei demais para mudar a Previdência, e isso me custou muito caro. Não precisava tentar tanto. Nós queríamos endireitar o Brasil todo e de uma vez. Não é assim. Eu podia ter sido mais suave, me desgastaria menos e talvez tivesse conseguido mais.

Como era a rotina na Presidência?

FH: A coisa mais atormentadora é quando chega nove da noite, entra o chefe da Casa Civil com uma pilha de documentos para assinar...

E depois não se pode dizer que assinou sem ler, né?

FH: Mas não lê, né? Porque o que acontece é o seguinte: tudo passa por vários crivos, os dois principais são o advogado-geral da União e o chefe da Casa Civil. Passou pelo ministro, passou pela Casa Civil, pela AGU e depois pela Presidência. O chefe da Casa Civil, quando passa, ele te informa do que se trata. Se for uma coisa mais delicada, você discute. Nesta discussão que está aí hoje (sobre a manutenção do sigilo eterno para documentos de Estado)... Foi no dia 31 de dezembro de 2002, último dia do governo. Porque tem dois canais, ou vem pela Casa Militar ou vem pela Casa Civil. Bem, quando veio esse negócio, eu disse (depois): não é possível que eu tenha assinado isso. Aí chamei o Pedro Parente: vê se é possível que eu tenha assinado isso. Reconstituiu, não passou pela Casa Civil. Foi pela Casa Militar. Sem a assinatura do general Cardoso. Mas eu não sabia. E uma coisa me chama a atenção: nunca nem o Itamaraty nem as Forças Armadas falaram nesse assunto comigo, nunca pressionaram.

Então o senhor assinou sem ver? E quando soube?

FH: Quando saiu no jornal, um ano depois. Como eu assinei um negócio proibindo eternamente? Mas Lula nunca desclassificou. E surpreende que o Collor e o Sarney tenham se posicionado (para manter o sigilo eterno), então deve haver algum problema...

É porque está chegando perto do governo deles.

FH: Mas será?

Não faz mais sentido, mas dizem que a razão é a Guerra do Paraguai e que o Brasil não ficaria muito bem na fita...

FH: Houve outra vez em que assinei também, com parecer e tudo aprovado, uma coisa que deixou a Ruth furiosa, porque restringia o atendimento a aborto. Quando apareceu, você imagina lá em casa! Mas nesse caso tinha pareceres... passou por um canal do Ministério da Saúde. Aí, depois, pedi ao Congresso que rejeitasse, ele rejeitou.

Provavelmente era um período próximo de eleições...

FH: É possível. Então pode acontecer. Mas, que eu me lembro, foram esses dois casos. Agora é eletrônico, né?, mas eu me lembro de que o Hargreaves ia para a casa do Itamar, com pilhas e pilhas, e ele ficava desesperado também. É muito cansativo esse negócio de ser presidente, não sei por que o pessoal quer tanto... (risos)

Por que o senhor quis tanto?

FH: Pois é, por engano. (ri)

Duas vezes, presidente?

FH: Eu sou meio tonto...

O senhor reclamava muito da solidão do poder.

FH: Isso sim. Isso é insanável. Porque não é a solidão de pessoas. É que não adianta ter um monte de gente em volta, e você não pode partilhar. Porque, em geral, quando vem uma discussão para a mesa do presidente, é porque as pessoas não se entenderam antes, tem ministro brigando. Não vem coisa boa para o presidente. Só vem bola dividida. E a função da Casa Civil é arredondar a bola. Mas, quando eles não conseguem, vem para você, e aí você tem que decidir.

O senhor falava que o Palácio é um lugar de muita intriga...

FH: Palácio é um lugar de muita intriga. Eu fui funcionário das Nações Unidas - antes eu era professor -, e lá é uma burocracia pesada, a base de organização daquilo é inglesa, e tudo é hierarquizado, inclusive o número de janelas a que você tem direito na sua sala. Mais janelas, mais poder. Eu nunca fui muito desse tipo de coisa.

E no palácio...

FH: Eu mal conheço o Palácio da Alvorada. Eu conheço a sala onde eu andava, mas o presidente não vai às áreas de trabalho. O presidente anda com um séquito, e não dá. Quando o Lula se elegeu, eu falei com o Gushiken, que foi lá, que esse negócio de palácio é complicado, toma cuidado. Porque, se puser muito ministro no palácio, vai dar briga. Não é o ministro que briga, são as equipes. Quanto menos ministro no palácio, melhor.

O senhor já disse que no Palácio não pode haver dois fortes.

FH: Não pode. Tem que ter um único, porque se não vira briga burocrática, vira uma coisa...

E agora com três mulheres?

FH: Mulher talvez se entenda melhor. Em matéria de gênero, eu não entro. (risos)

Como é conciliar essa solidão povoada com o poder supremo que a função confere? O presidente se sente um pouco rei?

FH: Se você se deixar levar pela sua imaginação, vira rei. Se tiver um senso realista, vê que aquilo é transitório. Porque você mora numa repartição pública, por mais bonito... O Alvorada é lindo, a parte superior dele é isolada, e, no meu tempo, só morávamos eu e a Ruth. Eu nunca tive ajudante de ordem morando lá, ninguém. Só os garçons podiam entrar sem avisar. Mas você desce ali, e é uma repartição pública. Moram lá, entre guardas e funcionários do serviço, de 100 a 150 pessoas. Você vai passear no jardim, olha para trás, tem duas pessoas atrás de você. Então, você não está na sua casa, por mais que seja agradável. Você vai nadar, tem alguém te olhando para não morrer afogado. Ou para te afogar (risos). Agora, eu sempre procurei não mudar meu estilo pessoal de viver. Eu e a Ruth. Então, quando vínhamos para São Paulo, íamos para o nosso apartamento aqui. Sempre estive com os mesmos amigos, e aí não tem jeito. Você não vai ser rei. Você é um igual. Tem algumas restrições que são grandes, você não guia automóvel...

Não abre portas...

FH: Bom, isso eu sempre corria para abrir, mas sempre chegava alguém antes. Por que, quando terminou o governo, eu e Ruth fomos correndo para a Europa? Eu andei de metrô, fiquei num apartamento da dona Maria Sodré. Era bom, mas pequenino. De propósito, para cair na real.

O senhor não teme ser vítima de um conservadorismo moral com essa sua campanha a favor da descriminalização da maconha?

FH: Em qualquer outro país, eu temeria. A nossa sociedade é bastante aberta.

O que o levou a se interessar por esse tema?

FH: Depois que deixei a Presidência, disse que iria me afastar da política partidária. Disse que iria me afastar e procurar atuar no campo da política de participação cívica. Nesse caminho, o Kofi Annan me colocou como assessor dele para fazer um relatório sobre como a sociedade civil poderia ter uma conexão com a ONU. Depois fiz outro relatório sobre a Unctad. Fiquei presidente do Clube de Madri e organizei uma reunião sobre terrorismo e democracia na Espanha. Depois me meti na questão da Aids. Estive com o Mandela na Noruega, na França, e foi a partir daí. A droga faz parte do mundo global. Li um livro de um amigo chamado Moisés Naím (escritor venezuelano) que mostra como houve a globalização do crime. Foi por aí que entrei nessa questão da droga. Não pela coisa local. Guerra às drogas só não resolve. Você tem que mudar de combater só a produção para reduzir o consumo e dar tratamento e educação.

Se um filho adolescente chegar para o senhor e admitir que fuma maconha, o que diz?

FH: Você sabe que isso faz mal. Eu não posso dizer que é pior que o cigarro porque não é. Mas vou dizer que ele é livre para fazer isso, mas questionarei onde ele foi obter a droga, por que ele foi no crime? É melhor regular do que fingir que não existe o problema, porque o seu filho fuma, e ele vai comprar do crime. Agora, se for cocaína, crack, tem que ir para o tratamento.

Isso chegaria ao ponto de se vender livremente a droga?

FH: Não. O álcool não deveria ser vendido abertamente. Não é na Europa, nos Estados Unidos, onde menor de 18 não compra. Maconha tem dois problemas gravíssimos. Um é a intensidade, e o outro é que, para obtê-la, você vai ao crime. Eu não sou favorável à legalização.

O PSDB reagiu com preocupação ao seu engajamento, dizendo que essa não é a posição do partido.

FH: Eu até entendo e acho que essa matéria não está no momento de ser politizada.

Mas o senhor não teme que numa próxima eleição isso vire munição contra o seu partido?

FH: O Tarso Genro era a favor, o Paulo Teixeira é a favor. Não sou a favor das drogas. Sou contra o uso de drogas. As pessoas não viram o filme, têm de ver.

O jogo político favorece a hipocrisia?

FH: É possível que sim. Como você aborda esses temas eleitoralmente? Eles vão ser abordados em forma de chantagem. Já fumou maconha ou não? É a favor do aborto ou contra? Acredita ou não em Deus? Eu nunca disse coisas contrárias ao que penso. Sabe como eu respondi à pergunta se eu acreditava em Deus? Disse que isso não era pergunta que se faça. Religião é questão de foro íntimo. Você tem que perguntar ao candidato a prefeito se ele respeita as religiões e não no que ele acredita. Foi a minha resposta, e disso interpretaram que eu disse que era ateu. Na campanha, qualquer que seja sua resposta, vai ser feito assim. Perguntar essas coisas faz mal à sociedade, porque eles (os candidatos) não vão poder responder, e é só para atrapalhar. Esse tema não deveria ir para a política.

O senhor acha que a mágoa do presidente Lula em relação ao senhor é por ter perdido duas vezes no primeiro turno?

FH: Não sei se ele tem mágoa. Quando estamos juntos, a relação é boa. O Lula tem essa língua solta, e eu também. Acho que o Lula ficou mesquinho, e ele não precisava renegar o que estava seguindo para ter a glória dele. Ele achou que, para ele crescer, tinha que me botar para baixo. Um cresce no ombro do outro e vai ficando mais alto.

Como o senhor vê a postura da presidente Dilma?

FH: Foi diferente. Eu até telefonei para ela para agradecer. Eu fiquei feliz com a carta dela, que me deixou bem satisfeito. Ela reconhece algumas coisas. Meu antecessor, Itamar, embora ele se queixe, não há uma referência minha a ele que não seja elogio. Sem o Itamar, não haveria o Plano Real. Eu acabei de falar do Collor, que fez a abertura. História é História, você não pode borrar a História. (...) Acho que é muito pretensioso você imaginar que os outros não fizeram nada. Se eu dissesse o que o Lula diz, eu seria execrado. O Lula não é (execrado) porque foi trabalhador, pobre, e isso dá a ele uma espécie de imunidade para dizer coisas que não são aceitáveis. Agora, acho que chega.

O senhor nunca voltou aos dois palácios?

FH: O Lula nunca me convidou para tomar um café. Tanto o Itamar quanto o Sarney foram ao Palácio. Fiz de propósito um gesto para o general Geisel, o convidei para almoçar. Fiz isso porque tinha sido o primeiro presidente punido pelo AI-5 e eu queria dizer que acabou aquela época. Não iria esquecer o que aconteceu, mas a época é nova. É uma coisa de civilidade. A Dilma me convidou para ir lá. O Lula me convidou para ir com ele ao enterro do Papa, e eu fui. Acho errado isso (de Lula nunca ter chamado para um café, uma conversa), tanto mais porque eu e o Lula tínhamos relação antiga. Vou dizer uma coisa: quando houve o mensalão e razões óbvias para o impeachment do Lula, eu disse que não achava uma boa. Justifiquei que eles iam colocar as ruas contra nós e, por outro lado, ficaria uma marca indelével muito ruim para o país.

Como o PSDB pode fazer essa aproximação com o povão?

FH: Como temos os governos de São Paulo e Minas? Porque temos o apoio do povão. Essa é uma outra imagem que o PT joga. A diferença não é povão no voto, mas o mecanismo organizado de controle de movimentos sociais, que é o que eles têm. O PT tem o controle dos movimentos sociais. Como todos os sindicatos mamam na mesma teta, que é o dinheiro público, está tudo acalmado.

O período de grande crescimento econômico não facilita essa identificação?

FH: Sem dúvida. A economia está por trás de tudo.

Ao sugerir que não houvesse impeachment de Lula, o senhor não agiu conforme aquele pensamento político brasileiro de ser conciliador sempre?

FH: Não. Eu acreditava que eles iam mobilizar a sociedade, e você não faz impeachment sem o povo. Aí vira golpe, e iam nos acusar de golpismo a vida inteira. Segundo, foi essa consideração mais histórica. Eu apoiei que o PSDB levasse o caso para o tribunal, porque aí poderia haver a nulidade da eleição. Mas seria uma coisa traumática. Não sei se seria bom para a consolidação da democracia.

FONTE: O GLOBO

Aos 80 anos, FHC tem legado revisto

Depois de uma década sob "desconstrução" de sua imagem imposta por Lula, ex-presidente tem obra reavaliada até por Dilma Rousseff

Alberto Bombig e Lucas de Abreu Maia

O ex-presidente Fernando Henrique Cardoso completa 80 anos hoje em meio a uma onda revisionista de seu legado político, administrativo e intelectual, motivada pela declaração da presidente Dilma Rousseff de que o tucano deu "contribuição decisiva" ao desenvolvimento do País.

Na última década, FHC teve sua gestão (1995-2002) sob fogo do PT, em especial do sucessor, Luiz Inácio Lula da Silva, que, empenhado em enfraquecer a oposição, decidiu "desconstruir" a imagem e o legado de FHC.

Com Lula fora do poder, cientistas políticos, sociólogos e historiadores ouvidos pelo Estado acreditam que FHC terá sua obra devidamente reconhecida e respaldada pela História.

"As críticas ao governo FHC são retórica. Os presidentes que o sucederam copiaram mais do que inovaram. Por exemplo, a presidente Dilma Rousseff, ao propor a privatização dos aeroportos do país, vai pôr em prática uma das lições de liberalismo econômico ensinadas por Fernando Henrique" diz Celso Roma, cientista político da USP.

"O Lula não encontrou nenhuma herança maldita. É um legado que só está sendo redescoberto agora, até mesmo com a carta de felicitações da presidente Dilma Rousseff", afirma o historiador Marco Antonio Villa.

Foi no exílio no Chile, em 1967, que FHC publicou seu livro mais famoso: Dependência e Desenvolvimento na América Latina. "Houve um momento em que o mundo inteiro debatia a teoria da dependência", diz o cientista político José Arthur Gianotti. "Um legado indiscutível."

"O Fernando sempre teve uma habilidade política muito grande, mesmo na academia. Eu me lembro de dizer: "Fernando, você é um homo politicus". Ele conseguia aglutinar e organizar os colegas", diz Leônico Martins Rodrigues, sociólogo da USP e amigo de FHC. Para José Augusto Guilhon de Albuquerque, a maior qualidade de FHC foi a capacidade de agregar pensamento acadêmico ao ativismo partidário: "Essa confluência fez com que ele trouxesse para a política a elite intelectual".

Os cientistas políticos veem no fortalecimento das instituições democráticas um legado que só agora está sendo revisitado. "Os primeiros cinco anos depois da Constituição de 1988 foram muito caóticos. Com o impeachment do ex-presidente (Fernando) Collor em 1992, a fragmentação dos partidos e a posse de Itamar Franco, que não era filiado a nenhuma sigla quando assumiu, parecia que o Brasil tinha fracassado novamente", afirma Jairo Nicolau, da Universidade Estadual do Rio de Janeiro.

"O FHC fez uma coisa extraordinária: não apenas deu a posse ao Lula, seu grande rival político, quanto criou uma estrutura para a transição, coisa que nunca tinha acontecido na história do Brasil", diz Rodrigues.

"FHC é responsável pela recuperação da dignidade da política na forma aberta e tolerante com que tratou aliados e adversários e pela demonstração, com o Plano Real, de que a vontade política, se bem embasada na realidade, pode sim transformar a sociedade para melhor", afirma José Álvaro Moysés, também da USP.

Jairo Nicolau resume: "FHC nos deixou dois legados: um país tem que ter moeda e tem que ter democracia".

FONTE: O ESTADO DE S. PAULO

Mentores do Plano Real falam sobre o legado de Fernando Henrique Cardoso

Bruno Góes

RIO - Hiperinflação, estoque de alimentos, remarcação de preços em supermercados. Antes do Plano Real, essas eram algumas das situações presenciadas pelo cidadão comum. Em março de 1990, a inflação chegara a 84%. Em 1993, um pouco antes da criação do Cruzeiro Real - a nona moeda corrente do país - a inflação atingira a marca de 30% ao mês. Posto em prática no governo Itamar Franco, o plano que estabilizou a economia foi organizado pelo então ministro da Fazenda, Fernando Henrique Cardoso, que neste sábado completa 80 anos. Dois dos economistas que o ajudaram nesta empreitada falaram ao GLOBO sobre o aniversariante e a conquista da estabilidade.

O economista Edmar Bacha, professor da PUC-Rio, um dos formuladores do Plano Real e amigo de Fernando Henrique desde a época em que o ex-presidente vivia no exílio, conta que ele teve papel decisivo na história do país.

" Mudou a cara do Brasil. O Real não teria acontecido sem ele. Ele foi a peça central, convocou e montou o grupo que formulou o plano "

- Mudou a cara do Brasil. O Real não teria acontecido sem ele. Ele foi a peça central, convocou e montou o grupo que formulou o plano. A liderança dele, também como político, foi essencial. Os historiadores tentam pensar o papel do indivíduo na história. É difícil imaginar se ele não estivesse ali, naquele momento. Poderíamos até pintar um quadro sombrio - disse ele, que também analisou o contexto da época: - Sabe-se lá o que aconteceria se o Fernando Henrique não estivesse ali, naquela hora. Nós estávamos ali e precisávamos de apoio da população. Mas as condições políticas eram muito ruins. Esse planos normalmente são feitos em primeiro mandato. O governo veio de um impeachment, com o Collor. Era uma situação "entre a cruz e a espada", podemos dizer assim, que deixava os economistas muito ansiosos.

Gustavo Franco também participou da equipe econômica que elaborou o Plano Real e foi presidente do Banco Central. Ele falou sobre a importância do legado dos dois mandatos de Fernando Henrique e da sua atuação no Ministério da Fazenda:

- O Plano Real teve importância central. A inflação era a síntese de muitas doenças e, embora o Plano Real seja uma senha de um empreendimento que se desdobra em muitos outros, ele é o fio condutor do esforço todo. No momento que ele se esgota, as agendas que se seguem são todas elas pautadas pelo que o Real começou. A estabilidade como o ordenador da economia, que por sua vez proporciona direta e indiretamente justiça social e melhora o padrão de vida do brasileiro - disse, para depois falar da conquista pessoal de FH: - O Plano Real tem importância central no governo Fernando Henrique e isso ninguém vai tirar dele, nunca.

" O Plano Real tem importância central no governo Fernando Henrique e isso ninguém vai tirar dele, nunca "

Franco acredita que nenhum passo dado pelo governo, à época, foi fácil. Quando perguntado se o fantasma da inflação rondava os economistas mesmo depois das primeiras medidas para o ajuste da economia, ele disse:

- Todo o processo foi cercado de riscos. Nada foi fácil. Portanto, foi graças à habilidade política, à liderança (de FH) e com sorte, circunstância e planejamento. Não foi nada fácil.

Para Edmar Bacha, o país será, daqui a 50 anos, divido entre antes e depois do Plano Real pelos historiadores. Gustavo Franco, por sua vez, afirma que houve um "renascimento da economia".

- É um legado extraordinário, que não se resume somente ao fim da hiperinflação. É preciso ter clareza que a hiperinflação refletia uma porção de caminhos errados que o país vinha trilhando há muitos anos. E terminar com a hiperinflação requereu reformar vastas áreas da administração pública e redefinir muita coisa no âmbito da economia. Em última instância, eu acho que o que ele começou ali é quase que um renascimento da economia do país, que agora, em boa medida, tem o seu dinamismo ali iniciado - disse Gustavo Franco.

A maneira de lidar de FH

Os dois traçam um perfil parecido da personalidade de FH, enaltecendo o bom humor e a "ironia fina" do ex-presidente.

- É uma pessoa de um trato magnífico. Deixa as pessoas à vontade e consegue desarmar os espíritos; tem uma ironia fina e um senso de realidade muito aguçado. Ele leva as coisas muito a sério, mas sem o 'rei na barriga'. E leva tudo com muita leveza - elogiou Edmar Bacha.

O ex-presidente também ficou marcado por muitas das pessoas que trabalharam com ele como uma figura que surpreende pelo carisma.

- Seja na substância, seja no humor, ele não cansa de impressionar as pessoas que trabalham com ele. Não importa quantos anos você conviva, sempre é uma surpresa agradável, da qual você nunca se cansa e para de se surpreender pelo lado do seu carisma, da sua inteligência. É uma pessoa muito especial, além de ser extremamente bem preparado e eticamente impecável no comportamento - diz Gustavo Franco.

FONTE: O GLOBO

Redesenho eleitoral :: Merval Pereira

Uma proposta de redesenho do mapa eleitoral brasileiro, a fim de reduzir a fragmentação partidária que tira a eficiência de nosso presidencialismo de coalizão, favorecendo a negociação fisiológica no Congresso, é o que propõe um trabalho conjunto do cientista político Octavio Amorim Neto, da Escola Brasileira de Administração Pública e de Empresas da Fundação Getulio Vargas do Rio, o geógrafo Bruno Cortez, do IBGE, e Samuel Pessôa, economista do Instituto Brasileiro de Economia (IBRE), da FGV-Rio.

Publicado na mais recente edição de "Opinião Pública", revista de ciência política da Unicamp, o trabalho, a partir de um diagnóstico do funcionamento do sistema político brasileiro, oferece uma proposta de reforma do sistema eleitoral da Câmara dos Deputados que, embora mantendo o sistema de representação proporcional com lista aberta, o altera em dois aspectos-chave: reduz o número de cadeiras disputadas nas circunscrições eleitorais, que são redesenhadas com esse objetivo, e estabelece uma regra proporcional de distribuição de cadeiras entre partidos coligados.

A operacionalização da reforma leva a um novo desenho do mapa eleitoral do país, com circunscrições eleitorais menores dentro dos 12 maiores estados da Federação.

Para a agregação dos municípios que formariam as novas circunscrições eleitorais, os autores optaram pela maximização da homogeneidade socioeconômica, com base na verificação de que é a combinação de alta heterogeneidade social com circunscrições eleitorais de grande magnitude que leva à alta fragmentação legislativa.

Esses estados redesenhados são justamente aqueles que têm 16 ou mais cadeiras na Câmara, permitindo que sejam recortados em circunscrições com magnitudes que variam entre 8 e 12, ao contrário de hoje, quando a variação é de 8 a 70.

Os autores não tocaram no princípio da representação proporcional, mas o reforçaram, convencidos de que, "apesar de todas as suas mazelas, o nosso sistema político tem um quantum de efetividade que justifica um reformismo moderado e prudente".

Além da proposta em si, que detalharemos na coluna de amanhã, o trabalho faz uma análise aprofundada do nosso "presidencialismo de coalizão", cunhado em artigo "clássico e seminal" de 1988 do cientista político Sérgio Abranches, que indica "certo sincretismo entre o presidencialismo e o parlamentarismo".

Seria um sistema em que a Presidência da República está sempre às voltas com a costura de maiorias parlamentares, numa interação cotidiana e íntima com deputados e senadores que lembra os regimes parlamentaristas.

As dificuldades aumentam ainda mais pelo fato de que muitos atores políticos têm poder de veto sobre as decisões a serem tomadas, com "caciques políticos" atuando nas duas casas do Congresso, como estamos vendo nos primeiros meses da administração Dilma Rousseff.

A grande dimensão das nossas circunscrições eleitorais, que são os próprios estados, cuja representação na Câmara de Deputados varia de 8 a 70 parlamentares, seria um dos problemas do nosso sistema político, além do voto proporcional e o voto nominal com lista aberta.

Esse desenho institucional, afirmam os autores, em interação com uma sociedade heterogênea, leva a uma elevada fragmentação legislativa.

Os autores classificam nosso sistema eleitoral de "permissivo", sem praticamente colocar barreira de entrada a pequenas legendas, que serão "tanto mais numerosas quanto mais heterogênea for a sociedade, seja em termos socioeconômicos ou culturais ou regionais ou étnicos ou linguísticos ou religiosos".

Com o sistema proporcional, dizem os autores, "a percentagem de votos obtida pelas pequenas legendas se transforma em uma percentagem bastante semelhante de cadeiras legislativas".

Um bom exemplo é São Paulo, que tem 70 cadeiras na Câmara, permitindo que qualquer partido com apenas 1,4% se faça representar no Congresso Nacional.

Outro cientista político, Jairo Nicolau, mostra que a fragmentação partidária também está associada à facilidade de criação de legendas, ao troca-troca partidário e às coligações eleitorais.

Esta fragmentação torna mais difícil para o presidente da República conseguir uma sólida maioria no Congresso, o que, além das dificuldades políticas, traz maiores gastos públicos, e o consequente aumento da carga tributária, com a necessidade do Executivo de angariar sustentação política, atender às demandas dos inúmeros grupos de pressão representados por políticos que sabem que uma fatia relativamente pequena do eleitorado, quando bem atendida, é suficiente para levá-los ou mantêlos no Legislativo. Daí existirem as bancadas ruralistas, da saúde, dos professores, e assim por diante.

Os estudos indicam ainda que quanto maior for a circunscrição eleitoral, maior será a competição intrapartidária, uma vez que o grande número de vagas oferecidas é um chamariz para que muitas candidaturas sejam postuladas.

Os custos de campanha aumentam, já que, envolvidos nesse tipo de competição de cada um contra todos, os candidatos sabem que o dinheiro pode ser o mais eficaz dos diferenciais.

"Altos custos de campanha e nível elevado de gastos públicos, por sua vez, são fatores que podem impulsionar a corrupção, que, desta forma, também está ligada à combinação de representação proporcional, listas abertas e grandes circunscrições", afirmam os autores.

Outra consequência das características do sistema eleitoral brasileiro é o número reduzido de representantes das áreas metropolitanas.

Embora sejam mercados com número abundante de eleitores, são muito fragmentados.

Por conta disso, é mais fácil para os candidatos terem base política nas regiões interioranas e buscarem alguns votos nos grandes centros do que construírem fortes bases políticas nas capitais e grandes cidades dos estados.

Mas os autores advertem que "todos esses problemas não sugerem que o sistema político brasileiro seja imprestável".

Cautelosos, preferem, em vez de uma "grande reforma que reconstrua todo o edifício a partir da estaca zero, medidas pontuais, cirúrgicas e refletidas".

(Amanhã, o redesenho)

FONTE: O GLOBO

Artes nacionais:: Fernando de Barros e Silva

Dilma Rousseff "lamentava" ontem que o Regime Diferenciado de Contratações (RDC) para obras da Copa e da Olimpíada tenha sido tão "mal interpretado". Puxa, que chato. Ela se referia, especificamente, ao ponto da medida aprovada pela Câmara que desobriga o governo de informar à sociedade quanto pretende gastar com cada obra ou serviço. Exatamente o que o procurador-geral da República havia qualificado na véspera como "escandalosamente absurdo".

Essa modalidade de orçamento sigiloso, segundo Dilma, é usada pela União Europeia para "evitar que o licitante, que está fazendo a oferta, utilize a prática de elevação de preços e de formação de cartel".

O que Dilma diz, com outras palavras, é que a Lei de Licitações, tal como existe hoje no país, favorece os conluios e a roubalheira. No escurinho, segundo a sua lógica, aumentaria a chance de serem todos mais honestos. E a do papagaio?

Se o RDC é tão republicano, por que a presidente não o incluiu em seu plano de governo? E por que não validá-lo para todas as obras públicas, além da Copa? Silêncio.

Assim como o Brasil não é a Suíça ou a Alemanha, o RDC nada tem de moralizador. Ele é o que parece ser: a privatização do interesse público, uma gambiarra legal que, na prática, institucionaliza a gangsterização dos negócios da Copa.

Essa já era uma bola cantada. Diante da falta de planejamento e do pânico do naufrágio iminente, Dilma apela à emergência: afrouxa as licitações e oferece uma espécie de cheque em branco aos aventureiros atrás do biombo. O país vai pagar pelo regime diferenciado da mãe do PAC. Mas tudo bem, a gente não vai saber quanto vai custar.

José Dirceu é o novo patrono da Fundação Nemirovsky, dona de importante acervo da arte brasileira moderna. Nunca imaginei que fosse olhar para os peitões caídos dos retratos de Tarsila do Amaral e lembrar do mensalão. Dirceu, o patrono da Fundação Mensalovsky.

FONTE: FOLHA DE S. PAULO

Politicagem e inoperância:: Valdo Cruz

Quando o Brasil foi escolhido sede da Copa de 2014 pela Fifa, tantas promessas foram feitas que imaginei: taí uma grande oportunidade para nosso país subir de patamar e mostrar que mudou.

Lá se vão mais de três anos e meio desde o anúncio e qual é a realidade? Obras atrasadas, promessas de transparência de gastos sob suspeita e a sensação de que será um corre-corre danado para garantir tudo pronto daqui a três anos.

Cenário perfeito para os espertos de plantão aproveitarem a confusão e tentarem ganhar tubos de dinheiro. Afinal, autoridades estão pedindo "liberalidades" na contratação de obras diante do "risco" de o país passar por um vexame.

O fato é que o Brasil, mais uma vez, mostra estar longe de ser um país com padrões do mundo desenvolvido. Primeiro, foi a politicagem que reinou na definição das cidades-sede da Copa de 2014.

A Fifa, que não é nenhuma boa referência no momento atual, se contentava com oito sedes. Mas o ex-presidente Lula queria mais, pois precisava contemplar aliados loucos para ter um joguinho da Copa na sua cidade.

A disputa política consumiu mais de um ano e meio até que fosse batido o martelo das doze sedes. Resultado: atraso na definição de obras e geração de alguns elefantes brancos. Para o Tribunal de Contas, pelo menos quatro cidades não têm público para justificar a construção de grandes estádios de futebol.

Segundo, o governo petista, de Lula e agora de Dilma, sabia desde 2007, quando o Brasil foi escolhido sede da Copa, que precisávamos expandir, por exemplo, a capacidade de nossos aeroportos.

Pois bem, o governo Lula foi postergando decisões e acabou terminando seu mandato sem definir nem o modelo dessas obras quanto menos seu andamento. Isso, sim, um verdadeiro vexame.

Em outras palavras, a politicagem e a inoperância nos conduziram ao cenário atual, de elevado risco de desvios no ar.

FONTE: FOLHA DE S. PAULO

Lá vem o Patto! :: Urbano Patto

Estamos vivendo nesse período político, e deverá prosseguir assim até o final de setembro devido à primeira data crítica do calendário eleitoral que é o prazo de filiação partidária para quem deseja ser candidato, o vertiginoso crescimento de notícias, conversas, articulações, boatos, puxadas de tapetes, reuniões secretas (mas nem tanto), mudanças “político-ideológicas” de direções e filiações partidárias (ou meras relações comerciais de compra e venda em inúmeros casos), cálculos de quocientes eleitorais para montagens de chapas, e por aí vai...

O que menos vemos nesse burburinho pré-eleitoral são idéias, propostas, avaliações concretas da vida das cidades e de suas administrações. Onde estão os gargalos e as dificuldades? quais as saídas? há alternativas?

Não é o caso somente cobrar que se derrame números ou metas, atingíveis ou não, ou a apresentação de qualidades pessoais de candidatos, que tem se tornado praxe a exemplo das campanhas na última eleição presidencial, mas de discutir mais a fundo a própria estrutura da administração pública e o seu descompasso com o estado da arte da ciência e da prática em administração e da gestão, com a dinâmica da vida econômica e da evolução tecnológica no mundo de hoje e do futuro.

Quem conhece por dentro a máquina administrativa das prefeituras municipais percebe rapidamente que ainda estão atreladas a uma visão cartorialista ultrapassada e compartimentada de gestão que se servissem de referência para serem aplicadas a qualquer empresa privada de médio porte a levaria inexoravelmente à falência.

Vê também que raramente há processos objetivos de avaliação de desempenho dos serviços, servidores e dirigentes que não sejam pesquisas de popularidade do primeiro mandatário e as próprias eleições a cada quatro anos nas quais, muitas vezes, vale mais a versão e a imagem que as ações, os fatos e os resultados.

Observa facilmente que os controles internos e externos se prendem principalmente em investigar muito mais processos e papéis do que a realidade, sendo que se as cag... , digo, “porcarias” feitas forem bem embrulhadas correm o sério risco de não serem percebidas e se percebidas não terem maiores consequências e ainda quando gerarem consequências nenhuma punição concreta seja aplicada em tempo hábil para que cause preocupação em quem queira fazer novas “porcarias”.

Portanto, não por mero diletantismo mas por responsabilidade, está na hora de se debater profundamente temas espinhosos na administração pública para reformá-la profundamente, tornando-a mais democrática, transparente e eficaz.

Cobrança feita, dívida empenhada, busca-se pagá-la. Seguem então algumas propostas para debate: adoção do orçamento impositivo; modificação das regras de estabilidade e remuneração do funcionalismo público atrelando-a ao cumprimento de metas e desempenho; contratação de dirigentes municipais, secretários e diretores, por capacidade profissional e contrato de gestão; dotar de iniciativa legislativa e orçamentária e poder real de fiscalização os conselhos setoriais dos municípios; disseminação de consultas diretas à população, referendos e plebiscitos; divulgação em tempo real via mídia e internet de seções de licitação; implantação de conselhos de usuários nos equipamentos públicos; obrigar que as agendas dos dirigentes municipais, prefeitos inclusos, sejam sempre públicas e divulgadas com antecedência.

Urbano Patto, Arquiteto Urbanista, Mestre em Gestão e Desenvolvimento Regional e membro do Conselho de Ética do Partido Popular Socialista - PPS - do Estado de São Paulo. Críticas e sugestões: urbanopatto@hotmail.com