terça-feira, 14 de outubro de 2025

Uma prisioneira política, por Fernando Gabeira

O Globo

A maneira como se processa, julga e determina a prisão é, na verdade, um palco onde os holofotes estão nos vencedores

Há pouco mais de dois meses, falei dela numa entrevista ao canal MyNews. Falei de modo geral: uma presa política em condições precárias, em Três Corações, Minas Gerais. Fui criticado por me interessar por alguém de direita. Houve quem dissesse que inventei o caso. Hoje, serei um pouco mais específico.

Ela se chama Alexandra Aparecida da Silva, tem 43 anos, é ré primária, bons antecedentes. Usava uma tornozeleira eletrônica em sua pequena cidade de Fama, às margens do Lago de Furnas. De repente, foi levada para a prisão, onde sofre muito. Tem um nódulo na mama, esperando biópsia, um cisto no punho e sangramento retal. Não se trata de anistia, muito menos de dosagem de pena. Ainda não foi julgada.

É conhecida por Leca. Depois de presa pela primeira vez em Brasília, seu casamento foi para o espaço. Vivia precariamente, cuidando de nove cachorros. Estava na capital apenas no dia 9 de janeiro de 2023. Seu ônibus quebrou e se atrasou. Não participou de invasão aos prédios públicos. Mas suas redes sociais eram claras: adepta de Bolsonaro, bandeiras do Brasil, ilusão de estar salvando o país — essas coisas.

Quando deixou a prisão de Brasília e voltou para sua pequena cidade, Leca precisava trabalhar. Tinha de se apresentar todas as semanas à Justiça, na cidade vizinha Paraguaçu. Não havia muito como se mexer: seu dinheiro não dava para frequentar o restaurante da Rita, no máximo algumas idas à farmácia do Vantuil.

Leca teve a chance de se livrar do processo. Era um acordo em que tinha de admitir sua culpa. Preferiu não assinar nada, era mais verdadeiro. Nas suas saídas para o trabalho, alguém a fotografou. Denunciada, foi para a cadeia. A pequena cidade cuida dos seus cachorros e se cotiza para pagar o advogado.

Ninguém a vê como perigo à democracia. Pelo contrário, alguns começam a duvidar se a democracia não é o perigo. Nem todos sabem que o Brasil mudou muito com o fim da ditadura. Entramos em presídios, implodimos o da Ilha Grande, visitamos inúmeros hospícios. Era um movimento de esquerda, é verdade. Mas isso não se define por esquerda e direita. Transcende essa divisão. O escritor Henry David Thoreau costumava dizer que, para conhecer um país, é preciso visitar suas cadeias.

No meu entender, está em jogo em todo esse trabalho punitivo a própria imagem da democracia. A maneira como se processa, julga e determina a prisão é, na verdade, um palco onde os holofotes estão nos vencedores. Representam algo de fato distinto ou são apenas a continuidade de uma insensibilidade histórica?

Não acuso o Supremo, apenas tenho dito que assumir a responsabilidade de milhares de processos significa também ter algum controle sobre o dia a dia das prisões. O modesto pai de Leca foi visitá-la em Três Corações. A penitenciária impediu sua entrada, dizendo que não se vestia adequadamente. O homem saiu para comprar uma calça e camiseta, lançando mão de suas economias. Quando voltou ao presídio, disseram:

— Acabou o horário de visitas.

O mundo está cheio dessas micromaldades. Não consigo ignorá-las. Por isso peço a Alexandre de Moraes que considere processar Leca em liberdade. Ela precisa cuidar da saúde, dos seus nove cachorros, e a pequena cidade de Fama respirará aliviada com sua volta.

Nenhum comentário: