O mercado financeiro e as autoridades do governo, dos bancos centrais e de outras instituições internacionais têm mandado a mensagem de que a crise financeira acabou e de que há sinais de recuperação. De fato, países emergentes, principalmente os asiáticos, liderados pela China, dão sinais mais claros de recuperação. Alguns países desenvolvidos, como Alemanha, França e Japão, apresentaram surpreendentemente ligeira recuperação no segundo trimestre. Nos EUA, a notícia mais importante é que aparentemente o mercado imobiliário está se estabilizando. Assim, reina no mercado surpreendente sentimento de alívio, mas todos mantêm a cautela e perguntam se a recuperação tomará a forma de V, U, W ou WWW.
A recuperação pode estar iniciando e, no passado recente, a recessão típica apresentou uma recuperação rápida em forma de V. Foram recessões causadas, em regra, pela contração momentânea na demanda agregada, em função de aperto na política monetária, e a recuperação foi rápida e vigorosa, ocupando a capacidade ociosa criada pela própria recessão e a economia retomando a trajetória anterior. A revista "The Economist" considera que imaginar a recuperação em V na atual recessão seria fantasioso. A recuperação está sendo promovida por uma política monetária extremamente agressiva e por fortes estímulos fiscais e o consumo alimentado pelo crédito acabou, pois os consumidores têm que pagar a dívida que se revelou excessiva acumulada ao longo de anos, empresas faliram, parte do sistema financeiro desapareceu e o que resta precisa de conserto. Neste quadro, dificilmente teremos retomada dos investimentos . A revista alerta que no caso atual a recuperação tomará a forma de U com a base bastante achatada e longa.
De fato, esta recessão é diferente. E há muitas razões para isto. É uma recessão global desencadeada por crise financeira global que destruiu trilhões em ativos financeiros, afetando os balanços não só das instituições financeiras, como também das famílias e das empresas. Essa recessão exigirá esforços para sua recomposição e com isso podemos ter aquilo que se tornou conhecido como "balance-sheet recession". Por trás de qualquer crise financeira necessariamente há, de um lado, uma forte expansão do crédito, e de outro, demanda excessiva de ativos financeiros e formação de bolhas, baseadas no endividamento com alavancagem crescente. A crise promove a destruição de ativos, desalavancagem e forte contração no crédito. Ao mesmo tempo, a destruição de ativos e superendividamento obriga tanto os bancos e empresas como as famílias a reequilibrar os seus balanços - a redução dos seus passivos passa a ser prioridade absoluta para a sobrevivência. Os bancos e empresas têm que canalizar os seus lucros e as famílias, parte maior da renda para pagar as dívidas, subtraindo assim tanto o consumo como os investimentos. Assim, na crise financeira há tanto a contração da oferta de crédito como da demanda de crédito.
Não devemos esquecer de que enfrentamos um choque negativo na demanda agregada que poderá persistir por anos. Os EUA deixarão de ter o papel dinâmico na economia mundial como importador em última instância, exercido para atender o consumismo de suas famílias e sustentado pelo endividamento crescente. A taxa de poupança das famílias americanas, que estava próximo a zero, aumentou depois da crise para 6% a 7%, e o seu déficit em transações correntes já caiu de 6% do PIB para cerca de 3% do PIB, e assim deixará de ser uma das locomotivas do crescimento mundial. Além disso, para que os EUA possam reduzir o seu déficit em transações correntes, o resto do mundo, particularmente a China e países exportadores de petróleo, terão que reduzir o superávit em transações correntes. Em outras palavras, estes países terão que reduzir a sua poupança e seus consumidores terão de tomar a posição que os consumidores americanos ocupavam antes.
O consumo caiu não só nos EUA, mas também na Europa e Japão. Agora sustentada por estímulos fiscais, ainda assim a demanda das famílias por exportações de outros países, isto é, importações destes países, caíram, e nem há perspectiva de que comércio mundial volte a crescer como nos anos pré-crise. Isso significa que a demanda de exportações também sofreu choque negativo persistente. Com o consumo e as exportações caindo, a probabilidade de que a retomada do investimento venha alimentar a recuperação é nula.
Países que adotaram política fiscal agressiva terão sua dívida pública crescendo em ritmo acelerado. Esta política não é sustentável por longo prazo e será um forte ônus para o crescimento. Certamente o déficit público em países como os EUA deverá ser elevado ainda no ano que vem, mas em algum momento o ajuste será necessário. Qualquer que seja a forma do ajuste - seja por elevação de impostos, corte nos gastos ou inflação - afetará negativamente o crescimento. Na hipótese pouco provável que o déficit persista por longo período e a dívida continue crescendo, a taxa real de juros deverá elevar-se, ou mesmo que isto não aconteça, o governo disputará recursos com o setor privado, em ambos os casos restringindo o investimento privado.
Mais assustador do que a retomada lenta e prolongada é que as políticas monetárias extremamente agressivas dos bancos centrais, particularmente do Federal Reserve, estão gerando minibolhas que poderão desencadear novas crises financeiras. A rigor, o mundo foi inundado de dólares e outras moedas com o socorro aos bancos e empresas. Nos EUA a base monetária mais do que dobrou e, mesmo que parcela significativa esteja represada sob forma de aumento de reservas bancárias, as instituições financeiras têm acesso a crédito barato, com taxa de juros próxima a zero, sustentada pelo Fed. Como o Fed já demonstrou que não permitirá que grandes instituições entrem em falência, estas voltaram a especular e estão canalizando recursos para bolsa de valores, petróleo e outras commodities. Não faz sentido as bolsas valorizarem no ritmo que está ocorrendo, o preço do petróleo subitamente voltar a mais de US$ 70 o barril e as commodities recuperarem rapidamente os seus preços em plena recessão. Não será surpresa se estas minibolhas estourarem e aí as consequências serão novamente imprevisíveis. Portanto, a forma de recuperação da crise pode ser muito mais de um "W" ou "WW", do que U.
Yoshiaki Nakano, ex-secretário da Fazenda do governo Mário Covas (SP), professor e diretor da Escola de Economia de São Paulo da Fundação Getulio Vargas - FGV/EESP, escreve mensalmente às terças-feiras.
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