Xico Graziano
DEU EM O ESTADO DE S. PAULO
O que é um latifúndio? No passado, a resposta vinha fácil. Hoje, a pergunta exige esforço para ser respondida, remetendo ao núcleo do problema agrário no Brasil. Semântica da boa.
A historiografia consagrou o latifúndio como mal maior de nossa formação social. O termo se origina no latim - lato fundis -, significando os grandes domínios da aristocracia na Roma antiga. O conceito se vincula à ideia da imensidão e da opressão no campo.
Na época colonial, o latifúndio surgiu por aqui disfarçado nas capitanias hereditárias. Grandes porções do território se dividiram entre os fidalgos do rei encarregados de colonizar as terras longínquas. No ciclo açucareiro do Nordeste, séculos atrás, a grande exploração comandava a economia. Historiadores também a chamaram de plantation, a vasta propriedade monocultora.
O latifúndio sempre caracterizou o domínio da oligarquia agrária, terra do coronel. No triste período escravista, os conflitos entre a casa grande e a senzala expunham as mazelas da desigual sociedade. Mais tarde, na economia cafeeira que abriu São Paulo, com o trabalho sendo liberto, o latifúndio manteve sua forte presença até a grande crise de 1929-1930. Quando Getúlio Vargas assumiu o poder, a oligarquia começou a se desmantelar. Surgia, com a ajuda da imigração, a classe média no campo.
Derrotar o tradicional sistema latifundiário e vencer o imperialismo norte-americano configurou o estridente grito nacionalista que, nos anos 1960, mobilizou a esquerda latino-americana. Todos se uniram contra o atraso rural. Na receita do desenvolvimento, eliminar o latifúndio virou mantra.
A unanimidade política se provou no Estatuto da Terra, promulgado pelo regime militar em novembro de 1964. Nem a turma da direita, que chutou a democracia no golpe, se opôs à desapropriação do latifúndio, um obstáculo ao progresso.
A nova lei deu nome aos bois. Os latifúndios passaram a ser divididos em dois grupos: "por dimensão" e "por exploração". No primeiro caso, 600 módulos de terra eram o limite de sua extensão, área situada entre 20 mil e 50 mil hectares, dependendo da região. Maior que isso, poderia ser desapropriado para reforma agrária. Terra dividida.
Já os latifúndios "por exploração" precisavam, independentemente de seu tamanho, provar que eram produtivos. Daí surgiram os índices de produtividade que o Incra utiliza, até hoje, para caracterizar a função social da propriedade rural. Se estiver ociosa, com baixa produção, pau nela. Vai para o assentamento dos sem-terra. Muito bem.
Dois cadastramentos gerais foram realizados naquela época. As estatísticas eram devastadoras, configurando forte concentração da estrutura agrária. Em 1984, atualizados, os dados serviram para fundamentar o plano de reforma agrária da Nova República. Eles mostravam que os latifúndios se apropriavam de 90% do território. Um escândalo.
O cadastro indicava existirem 305 latifúndios "por dimensão", que, somados, detinham área maior do que a explorada, na outra ponta, por milhões de pequenos agricultores. Ninguém poderia concordar com isso. Reforma agrária já.
Se a ditadura não aplicou, na prática, o Estatuto da Terra, a democracia, restabelecida, o faria. Assim, há 25 anos, se iniciava a fase moderna da reforma agrária brasileira. Seus resultados, sofríveis, frustraram as expectativas, transformando a prometida redenção da miséria rural numa polêmica interminável. Por quê?
Duas explicações importam aqui. Primeiro, destrinchando as estatísticas oficiais, verificou-se que, entre os latifúndios "por exploração", 700 mil detinham área menor que 100 hectares de terra. Quer dizer, eram "pequenos" latifúndios. Um contrassenso incompreensível. Segundo, entre os grandões, apenas um ou outro acabou efetivamente desapropriado na reforma agrária, por uma razão elementar: dificilmente eles eram encontrados nas vistorias de campo. Representavam enormes terras griladas, cadastradas no Incra, porém fictícias. Latifúndios "fantasmas".
O equívoco desnorteou os agraristas. Estava em curso um processo de modernização agropecuária que, hoje, caracteriza o capitalismo no campo. Nos últimos 30 anos, o latifúndio transformou-se em grande empresa rural, mantendo-se grande, mas tornando-se produtivo. Integrado com a agroindústria, ao lado de fortes cooperativas, constitui o complexo chamado agronegócio.
Após a Constituição de 1988, mudou a lei agrária. Desapareceram as antigas denominações do latifúndio, substituídas pela nova caracterização econômica da grande propriedade: produtiva ou improdutiva. Até hoje, entretanto, o conceito histórico, tão marcante, permanece sendo utilizado. E, infelizmente, deformado.
João Pedro Stédile, ideólogo do MST, caracteriza atualmente o latifúndio como a propriedade rural que, embora cultivando café, soja, cana, eucalipto, ou utilizada na pecuária, ocupe área superior a mil hectares. Ponto. Não interessa se utiliza tecnologia, paga bem aos empregados ou conserva o solo. Importa apenas o tamanho, aliás, bem abaixo dos antigos latifúndios "por dimensão".
Ora, o modelo agrícola do País, ainda concentrador, pode ser criticado. Mas o latifúndio sempre caracterizou relações atrasadas de produção, mau uso da terra, servilismo. Confundir a empresa capitalista no campo com a propriedade oligárquica entorpece o raciocínio. Latifúndio produtivo soa ilógico.
Curiosa a mente das pessoas. Há quem, não percebendo que o mundo mudou, repete o mesmo chavão a vida toda. Tromba com a realidade. Outros, mais inteligentes, sabem das mudanças. Mas, para manter o discurso atrasado, escondem-se na mentira dos conceitos. Deturpam a realidade.
Xico Graziano, agrônomo, é secretário do Meio Ambiente do Estado de São Paulo.
DEU EM O ESTADO DE S. PAULO
O que é um latifúndio? No passado, a resposta vinha fácil. Hoje, a pergunta exige esforço para ser respondida, remetendo ao núcleo do problema agrário no Brasil. Semântica da boa.
A historiografia consagrou o latifúndio como mal maior de nossa formação social. O termo se origina no latim - lato fundis -, significando os grandes domínios da aristocracia na Roma antiga. O conceito se vincula à ideia da imensidão e da opressão no campo.
Na época colonial, o latifúndio surgiu por aqui disfarçado nas capitanias hereditárias. Grandes porções do território se dividiram entre os fidalgos do rei encarregados de colonizar as terras longínquas. No ciclo açucareiro do Nordeste, séculos atrás, a grande exploração comandava a economia. Historiadores também a chamaram de plantation, a vasta propriedade monocultora.
O latifúndio sempre caracterizou o domínio da oligarquia agrária, terra do coronel. No triste período escravista, os conflitos entre a casa grande e a senzala expunham as mazelas da desigual sociedade. Mais tarde, na economia cafeeira que abriu São Paulo, com o trabalho sendo liberto, o latifúndio manteve sua forte presença até a grande crise de 1929-1930. Quando Getúlio Vargas assumiu o poder, a oligarquia começou a se desmantelar. Surgia, com a ajuda da imigração, a classe média no campo.
Derrotar o tradicional sistema latifundiário e vencer o imperialismo norte-americano configurou o estridente grito nacionalista que, nos anos 1960, mobilizou a esquerda latino-americana. Todos se uniram contra o atraso rural. Na receita do desenvolvimento, eliminar o latifúndio virou mantra.
A unanimidade política se provou no Estatuto da Terra, promulgado pelo regime militar em novembro de 1964. Nem a turma da direita, que chutou a democracia no golpe, se opôs à desapropriação do latifúndio, um obstáculo ao progresso.
A nova lei deu nome aos bois. Os latifúndios passaram a ser divididos em dois grupos: "por dimensão" e "por exploração". No primeiro caso, 600 módulos de terra eram o limite de sua extensão, área situada entre 20 mil e 50 mil hectares, dependendo da região. Maior que isso, poderia ser desapropriado para reforma agrária. Terra dividida.
Já os latifúndios "por exploração" precisavam, independentemente de seu tamanho, provar que eram produtivos. Daí surgiram os índices de produtividade que o Incra utiliza, até hoje, para caracterizar a função social da propriedade rural. Se estiver ociosa, com baixa produção, pau nela. Vai para o assentamento dos sem-terra. Muito bem.
Dois cadastramentos gerais foram realizados naquela época. As estatísticas eram devastadoras, configurando forte concentração da estrutura agrária. Em 1984, atualizados, os dados serviram para fundamentar o plano de reforma agrária da Nova República. Eles mostravam que os latifúndios se apropriavam de 90% do território. Um escândalo.
O cadastro indicava existirem 305 latifúndios "por dimensão", que, somados, detinham área maior do que a explorada, na outra ponta, por milhões de pequenos agricultores. Ninguém poderia concordar com isso. Reforma agrária já.
Se a ditadura não aplicou, na prática, o Estatuto da Terra, a democracia, restabelecida, o faria. Assim, há 25 anos, se iniciava a fase moderna da reforma agrária brasileira. Seus resultados, sofríveis, frustraram as expectativas, transformando a prometida redenção da miséria rural numa polêmica interminável. Por quê?
Duas explicações importam aqui. Primeiro, destrinchando as estatísticas oficiais, verificou-se que, entre os latifúndios "por exploração", 700 mil detinham área menor que 100 hectares de terra. Quer dizer, eram "pequenos" latifúndios. Um contrassenso incompreensível. Segundo, entre os grandões, apenas um ou outro acabou efetivamente desapropriado na reforma agrária, por uma razão elementar: dificilmente eles eram encontrados nas vistorias de campo. Representavam enormes terras griladas, cadastradas no Incra, porém fictícias. Latifúndios "fantasmas".
O equívoco desnorteou os agraristas. Estava em curso um processo de modernização agropecuária que, hoje, caracteriza o capitalismo no campo. Nos últimos 30 anos, o latifúndio transformou-se em grande empresa rural, mantendo-se grande, mas tornando-se produtivo. Integrado com a agroindústria, ao lado de fortes cooperativas, constitui o complexo chamado agronegócio.
Após a Constituição de 1988, mudou a lei agrária. Desapareceram as antigas denominações do latifúndio, substituídas pela nova caracterização econômica da grande propriedade: produtiva ou improdutiva. Até hoje, entretanto, o conceito histórico, tão marcante, permanece sendo utilizado. E, infelizmente, deformado.
João Pedro Stédile, ideólogo do MST, caracteriza atualmente o latifúndio como a propriedade rural que, embora cultivando café, soja, cana, eucalipto, ou utilizada na pecuária, ocupe área superior a mil hectares. Ponto. Não interessa se utiliza tecnologia, paga bem aos empregados ou conserva o solo. Importa apenas o tamanho, aliás, bem abaixo dos antigos latifúndios "por dimensão".
Ora, o modelo agrícola do País, ainda concentrador, pode ser criticado. Mas o latifúndio sempre caracterizou relações atrasadas de produção, mau uso da terra, servilismo. Confundir a empresa capitalista no campo com a propriedade oligárquica entorpece o raciocínio. Latifúndio produtivo soa ilógico.
Curiosa a mente das pessoas. Há quem, não percebendo que o mundo mudou, repete o mesmo chavão a vida toda. Tromba com a realidade. Outros, mais inteligentes, sabem das mudanças. Mas, para manter o discurso atrasado, escondem-se na mentira dos conceitos. Deturpam a realidade.
Xico Graziano, agrônomo, é secretário do Meio Ambiente do Estado de São Paulo.
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