terça-feira, 21 de outubro de 2025

Lula ante a ofensiva de Trump no continente, por Maria Cristina Fernandes

Valor Econômico

Como o Brasil vai se reaproximar dos EUA sem colocar em xeque a defesa da soberania do continente

A expectativa de um encontro entre os presidentes Luiz Inácio Lula da Silva e Donald Trump na Malásia teve como preâmbulo a intensificação dos ataques americanos a embarcações venezuelanas e a elevação do tom contra o presidente colombiano, Gustavo Petro.

Empresários envolvidos na reversão das medidas contra o Brasil aguardam este encontro como o ponto de partida para as negociações de segundo e terceiro escalão dos dois governos e esta aposta pode se confirmar. A dúvida é até quando será possível avançar nesse sentido, com a reversão do tarifaço, da aplicação da Lei Magnitsky e da cassação de vistos, frente à ameaça de intervenções armadas no continente.

Parece claro o desafio posto à liderança brasileira ainda que, no Palácio do Planalto, a visão, pelo menos para o consumo externo, é de que o discurso para a região, pontuado por imigração, narcotráfico e contenção da China, já estava dado e antecede a distensão com o Brasil. Se o rumo da conversa for aquele desejado pelo Brasil, Lula, que tem se colocado contra uma solução militar no continente desde o discurso da abertura da Assembleia Geral da ONU, não precisaria escalar para uma postura de confronto. Esta distensão bilateral permitiria ao país ser ouvido para que a turbulência provocada pelos EUA no continente seja mitigada.

Como o fentanil, pavor americano, faz da região apenas seu entreposto, visto que sua origem seriam laboratórios clandestinos na Ásia, numa vingança histórica da guerra do ópio, veementemente negada pelos governos da região, a derrubada de Maduro seria apenas o caminho mais curto para instalar o narcotráfico de uma vez por todas no Palácio Miraflores. No traçado da diplomacia presidencial, Lula será capaz de convencer Trump de que uma intervenção militar arriscaria a colocar a Venezuela no mesmo rumo do Iraque, Afeganistão e Líbia pós-ataques americanos.

A ideia é convencer Trump de que o Brasil é um aliado no tema. Chamado a colaborar, o Brasil se colocaria como o principal interessado em buscar saídas dada a extensa zona de fronteira com os outros oito países amazônicos, que torna o país ainda mais vulnerável não apenas ao narcotráfico mas também aos fluxos migratórios que, como uma caixa de marimbondos desbaratada, se espalhariam. A saída a ser proposta é intensificar a colaboração de décadas da agência antidrogas americana com as polícias dos nove países da região que, desde junho, são treinadas e trocam informações num centro de cooperação em Manaus.

Este é o plano. Mas tem também a realidade. As dificuldades do Brasil com a Venezuela são patentes. Depois do equivocado tapete vermelho para Maduro no início do governo, o Brasil tentou atuar como observador eleitoral no país e, depois da fraude flagrante, corrigiu a rota. Não reconheceu o resultado nem o governo, apesar de manter uma embaixada aberta em Caracas. A hostilidade de Maduro em relação ao Brasil é crescente.

A relação com Gustavo Petro é melhor, mas lá o problema é outro. O comportamento errático do presidente colombiano, que nos primeiros dias de Trump no poder, chegou a se recusar a receber aviões de deportados colombianos, foi ameaçado de sobretaxa e acabou voltando atrás, se repete em outras ações de governo e dificulta uma articulação conjunta com o Brasil. Enfrenta uma extrema-direita trumpista que, se chegar ao poder, é a primeira a aderir a planos de intervenção militar na Venezuela.

Professora de relações internacionais da Uerj, Monica Hirst, é cética em relação aos planos do Brasil. Vê como obstáculo à ideia de redobrada cooperação a partir do centro de Manaus, a dificuldade de se controlarem os vínculos de setores das polícias de fronteira dos países amazônicos com gangues do narcotráfico. Por outro lado, vê os EUA tratando o tema, cada vez mais, como afeito aos militares e não à polícia. E atribui o pedido de demissão do almirante Alvin Holsey, que chefiava o Comando Sul das Forças Armadas dos EUA, como sinal de que a ofensiva não é uma cosmética eleitoral.

A militarização do tema coloca o tema numa raia própria. As Forças Armadas brasileiras mantêm uma rota de mais aproximação com as americanas desde o início da participação do Brasil no Comando Sul, em 2019. Em artigo com o professor da UNB e ex-diretor-geral da Abin Marco Cepik sobre as relações Brasil-EUA, Monica diz que mais da metade dos militares brasileiros enviados ao exterior estão nos Estados Unidos. Na condição de aliado preferencial extra-Otan, decidida pelo governo Jair Bolsonaro, os militares brasileiros estreitaram os acordos de cooperação com os EUA.

Um sinal de que o governo brasileiro resiste à militarização do combate ao narcotráfico e prefere tratá-lo como um tema policial é a participação do país na ofensiva multinacional aprovada pelo Conselho de Segurança da ONU no fim de setembro. O Brasil já deu início à capacitação de forças especiais da polícia haitiana mas, desta vez, o trabalho está sendo conduzido pela Polícia Federal, e não pelo Exército. O governo brasileiro decidiu ainda que não enviará tropas ao Haiti. Recusa-se a repetir a missão que, a partir do primeiro governo Lula, a pedido dos EUA, colocou militares brasileiros à frente da segurança daquele país e plantou a semente do golpismo bolsonarista.

 

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