Valor Econômico
Como o Brasil vai se reaproximar dos EUA sem colocar em xeque a defesa da soberania do continente
A expectativa de um encontro entre os
presidentes Luiz Inácio Lula da Silva e Donald Trump na Malásia teve como
preâmbulo a intensificação dos ataques americanos a embarcações venezuelanas e
a elevação do tom contra o presidente colombiano, Gustavo Petro.
Empresários envolvidos na reversão das
medidas contra o Brasil aguardam este encontro como o ponto de partida para as
negociações de segundo e terceiro escalão dos dois governos e esta aposta pode
se confirmar. A dúvida é até quando será possível avançar nesse sentido, com a
reversão do tarifaço, da aplicação da Lei Magnitsky e da cassação de vistos,
frente à ameaça de intervenções armadas no continente.
Parece claro o desafio posto à liderança brasileira ainda que, no Palácio do Planalto, a visão, pelo menos para o consumo externo, é de que o discurso para a região, pontuado por imigração, narcotráfico e contenção da China, já estava dado e antecede a distensão com o Brasil. Se o rumo da conversa for aquele desejado pelo Brasil, Lula, que tem se colocado contra uma solução militar no continente desde o discurso da abertura da Assembleia Geral da ONU, não precisaria escalar para uma postura de confronto. Esta distensão bilateral permitiria ao país ser ouvido para que a turbulência provocada pelos EUA no continente seja mitigada.
Como o fentanil, pavor americano, faz da
região apenas seu entreposto, visto que sua origem seriam laboratórios
clandestinos na Ásia, numa vingança histórica da guerra do ópio, veementemente
negada pelos governos da região, a derrubada de Maduro seria apenas o caminho
mais curto para instalar o narcotráfico de uma vez por todas no Palácio
Miraflores. No traçado da diplomacia presidencial, Lula será capaz de convencer
Trump de que uma intervenção militar arriscaria a colocar a Venezuela no mesmo
rumo do Iraque, Afeganistão e Líbia pós-ataques americanos.
A ideia é convencer Trump de que o Brasil é
um aliado no tema. Chamado a colaborar, o Brasil se colocaria como o principal
interessado em buscar saídas dada a extensa zona de fronteira com os outros
oito países amazônicos, que torna o país ainda mais vulnerável não apenas ao
narcotráfico mas também aos fluxos migratórios que, como uma caixa de
marimbondos desbaratada, se espalhariam. A saída a ser proposta é intensificar
a colaboração de décadas da agência antidrogas americana com as polícias dos
nove países da região que, desde junho, são treinadas e trocam informações num
centro de cooperação em Manaus.
Este é o plano. Mas tem também a realidade.
As dificuldades do Brasil com a Venezuela são patentes. Depois do equivocado
tapete vermelho para Maduro no início do governo, o Brasil tentou atuar como
observador eleitoral no país e, depois da fraude flagrante, corrigiu a rota.
Não reconheceu o resultado nem o governo, apesar de manter uma embaixada aberta
em Caracas. A hostilidade de Maduro em relação ao Brasil é crescente.
A relação com Gustavo Petro é melhor, mas lá
o problema é outro. O comportamento errático do presidente colombiano, que nos
primeiros dias de Trump no poder, chegou a se recusar a receber aviões de
deportados colombianos, foi ameaçado de sobretaxa e acabou voltando atrás, se
repete em outras ações de governo e dificulta uma articulação conjunta com o
Brasil. Enfrenta uma extrema-direita trumpista que, se chegar ao poder, é a
primeira a aderir a planos de intervenção militar na Venezuela.
Professora de relações internacionais da
Uerj, Monica Hirst, é cética em relação aos planos do Brasil. Vê como obstáculo
à ideia de redobrada cooperação a partir do centro de Manaus, a dificuldade de
se controlarem os vínculos de setores das polícias de fronteira dos países
amazônicos com gangues do narcotráfico. Por outro lado, vê os EUA tratando o
tema, cada vez mais, como afeito aos militares e não à polícia. E atribui o
pedido de demissão do almirante Alvin Holsey, que chefiava o Comando Sul das
Forças Armadas dos EUA, como sinal de que a ofensiva não é uma cosmética
eleitoral.
A militarização do tema coloca o tema numa
raia própria. As Forças Armadas brasileiras mantêm uma rota de mais aproximação
com as americanas desde o início da participação do Brasil no Comando Sul, em
2019. Em artigo com o professor da UNB e ex-diretor-geral da Abin Marco Cepik
sobre as relações Brasil-EUA, Monica diz que mais da metade dos militares
brasileiros enviados ao exterior estão nos Estados Unidos. Na condição de
aliado preferencial extra-Otan, decidida pelo governo Jair Bolsonaro, os
militares brasileiros estreitaram os acordos de cooperação com os EUA.
Um sinal de que o governo brasileiro resiste
à militarização do combate ao narcotráfico e prefere tratá-lo como um tema
policial é a participação do país na ofensiva multinacional aprovada pelo
Conselho de Segurança da ONU no fim de setembro. O Brasil já deu início à
capacitação de forças especiais da polícia haitiana mas, desta vez, o trabalho
está sendo conduzido pela Polícia Federal, e não pelo Exército. O governo
brasileiro decidiu ainda que não enviará tropas ao Haiti. Recusa-se a repetir a
missão que, a partir do primeiro governo Lula, a pedido dos EUA, colocou
militares brasileiros à frente da segurança daquele país e plantou a semente do
golpismo bolsonarista.
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