- Valor Econômico
Mesmo que se consiga simplificar os impostos, ainda teremos carga fiscal muito superior à dos países emergentes
Para a minha geração, que viveu com intensidade os trabalhos da Constituinte depois da redemocratização do Brasil em 1984, a reforma da Previdência é a primeira grande alteração no quadro de proteção social por ela criada e que vigorou quase imutável até hoje. Para os mais jovens entenderem a importância desta mudança, falta o conhecimento do clima de euforia que cercou os trabalhos dos constituintes antes de sua promulgação.
O país vivia então uma espécie de "porre" democrático com o sucesso incrível que foi a volta da democracia, depois de mais de 20 anos, a partir de um movimento popular pacífico e dentro das regras constitucionais estabelecidas pela força das armas pela própria ditadura militar.
Imaginava-se ser possível criar com a força representativa dos constituintes eleitos pelo povo uma sociedade igualitária ou pelo menos mais justa, ao fim dos trabalhos. Esta verdadeira Utopia que seria construída sob o comando de um Estado que estendesse aos mais pobres e necessitados um amplo e generoso cobertor de proteção social, dominava os discursos inflamados da grande maioria dos constituintes em Brasília.
Eu vivia um dia a dia mais realista, como diretor do Banco Central em Brasília, na tentativa de controlar a inflação que já superava, à época, os 7% ao mês. Mas, mesmo assim, a euforia também podia ser sentida naquele prédio esquisito que havia sido construído pelos burocratas da ditadura. Prédio estranho visualmente, e que não podia ser ocupado totalmente porque descobriu-se depois de sua construção não ter em sua estrutura a resistência necessária para tal.
Mas tive a sorte de receber como hóspede na residência oficial a que tinha direito - outra herança da época militar - o constituinte José Serra, meu amigo de longa data. Em nossas conversas noturnas - Serra só dormia depois das 4 horas da manhã - ouvi dele as primeiras restrições ao projeto constitucional ainda em construção. Como economista, com visão fiscal bastante conservadora, estava assustado com a abrangência dos chamados direitos sociais pétreos do cidadão e que estariam garantidos pela nova Constituição. "Luiz Carlos", ele me dizia, "ninguém está fazendo as contas sobre como e onde vamos encontrar os recursos necessários para pagar tudo isto".
Lembro aqui ao leitor do Valor que a carga fiscal à época era de pouco mais do que 24% do PIB, o que permitia que tivéssemos uma estrutura de impostos simples, praticamente igual à da maioria das economias emergentes como a nossa. Mas Serra era uma voz minoritária - junto com poucos outros constituintes - e a vitória da euforia foi acachapante. Sobrou a este pequeno grupo de realistas fiscais uma cláusula, arrancada a muito custo, de revisão da Constituição, quatro anos depois - e com um quórum simples - para aprovar alterações que o tempo mostrasse necessárias. Mas a revisão chegou em um momento de crise política com o impeachment do presidente Collor e as cláusulas sociais remanesceram intocadas.
As previsões mais pessimistas feitas pelo constituinte José Serra só começaram a se tornar realidade após o sucesso do Plano Real, com a redução da arrecadação do chamado imposto inflacionário e a estabilidade da moeda que se seguiu. Outra razão para que nós brasileiros só acordássemos mais tarde para os problemas fiscais criados pela euforia democrática da Constituinte de 1988 foi a demora natural na aprovação de leis infraconstitucionais e pela defasagem no tempo das decisões judiciais sobre a implementação das novas responsabilidades sociais do estado brasileiro. Entre 1991 e 2017, a carga fiscal brasileira progressivamente passou dos antigos 24 % para 32% do PIB, mostrando de forma clara o verdadeiro impacto da Constituição de 1988 sobre os gastos sociais do governo.
Mais recentemente, a deterioração das contas da previdência social veio apenas somar-se a esta realidade e colocar uma nova pressão sobre a carga de impostos necessários para estabilizar a dívida pública federal. E, portanto, continuaremos a depender de uma arrecadação de impostos e tributos da ordem de 34% para estabilizar a situação fiscal de hoje. E não será através de uma reforma dos impostos que chegaremos - como é a expectativa da maioria da população hoje - a uma carga fiscal menor. Além disto, a reforma fiscal que começa a ser analisada pelo Congresso tem uma dificuldade adicional para sua aprovação representada pelos conflitos de interesse muito mais difusos - e de difícil conciliação na sociedade - do que foi o caso da reforma da Previdência.
Mesmo que se consiga um sucesso relativo na simplificação e racionalização de nossos impostos, ainda teremos uma carga fiscal muito superior à dos países emergentes e próxima dos países desenvolvidos e social-democratas da Europa. Ou seja, seremos ainda um ponto fora da curva e, por esta razão, vamos continuar a ter um limite estrutural ao nosso crescimento potencial no futuro.
Podemos nos preparar para fortes decepções com o texto final.
*Luiz Carlos Mendonça de Barros, engenheiro e economista, é presidente do Conselho da Foton Brasil. Foi presidente do BNDES e ministro das Comunicações.
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