segunda-feira, 19 de agosto de 2019

Marcus André Melo* || Anomia boba

- Folha de S. Paulo

Estaria o Brasil se argentinizando?

“Há quatro tipos de países: os desenvolvidos, os subdesenvolvidos, o Japão e a Argentina”, afirmou Simon Kusznets (1901-1985), ganhador do prêmio Nobel de economia de 1971. O excepcionalismo da Argentina é lendário entre cientistas sociais, e o enigma é decadência do país.

Para alguns analistas, a chave são as instituições. A explicação clássica foi apresentada pelo jurista e teórico social Carlos Nino em seu notável “Un País al Margen de la Ley” (1992). Seu diagnóstico é brutal: a institucionalidade escassa do país deve-se a uma patologia que denominou “anomia boba”, e define como “inobservância normativa generalizada”. Essa modalidade de anomia é tola por ser ineficiente: todos estariam em situação melhor se observassem as leis.

A Argentina de Nino é um gigantesco dilema do prisioneiro. Após a ascensão dos liberais radicais em 1916, o país parecia seguir a trajetória de países como Austrália ou Nova Zelândia, mas saiu dos trilhos com o golpe do general Uriburu em 1930. A “década infame” que se seguiu caracterizou-se por fraude eleitoral massiva, que desmoralizou a democracia representativa e levou à ascensão do iliberalismo peronista. “Atentados à consciência de juridicidade” (Nino, p. 64) passam a ser perpetrados em série: Suprema Corte destituída, Constituição reformada sem que se cumprissem os requisitos para emendamento etc.

A estrutura do conflito a partir de então foi analisada por Guillermo O’Donnel (1936-2011), o maior cientista político argentino, em clássico de 1973, como um “juego imposible”.

Seus contendores são os militares, o justicialismo (peronismo) e os partidos de oposição. O quadro analítico também é o da teoria dos jogos. O cálculo dos demais atores é que, se os peronistas ganharem as eleições, não respeitarão a institucionalidade democrática. E que, se a oposição tiver sucesso, os peronistas não deixarão governar.

Esses atores esperam também que os militares atuem como árbitro e intervenham temporariamente no jogo se um dos dois cenários se materialize. Essa estrutura de incentivos —na qual ninguém podia ganhar— alimentava a polarização, fazia com que a democracia se convertesse em um jogo impossível. E desaparecesse.

A transição por colapso ocorrida após a Guerra das Malvinas e a saída dos militares da cena política alteraram o jogo, mas o país permanece ingovernável e muito polarizado.

Intensa polarização marca a linguagem política argentina desde os anos 40, quando surgem as expressões gorilas e cabecitas negras / gordura, cujos correlatos entre nós —coxinhas e mortadelas— só apareceram recentemente.

O que essa argentinização da nossa linguagem política prenuncia?

*Marcus André Melo, Professor da Universidade Federal de Pernambuco e ex-professor visitante do MIT e da Universidade Yale (EUA).

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