Valor Econômico
Temos milhares de pessoas registradas no
Brasil com nomes ou sobrenomes difíceis de pronunciar e sem nenhuma
significação em nossa língua. E os cartórios reagem arbitrariamente
Há umas duas semanas, ocorreu em Belo
Horizonte um problema com a recusa do registro de nascimento de uma menina, no
cartório instalado na maternidade, do nome escolhido pelos pais para a filha:
Tumi Mboup.
A mãe é formada em história, e o pai é
sociólogo. Dois intelectuais, portanto, que certamente sabem o que estão
fazendo. Ambos são negros. O cartorário alegou que o nome exporia a criança ao
ridículo. Um segundo cartório e a própria Justiça confirmaram a interpretação.
Uma enxurrada de insultos preconceituosos contra os pais, por parte dos leitores de sites, acusava-os de serem responsáveis pela recusa por terem escolhido um nome não brasileiro e de motivação racial.
O registro de nascimento da menina acabou
sendo feito num cartório do Rio de Janeiro. Tumi quer dizer “lealdade”, um nome
poético. Mboup é o sobrenome de um físico senegalês, Cheikh Anta Diop, já
falecido, que também se dedicou a uma tese antropológica, de grande
originalidade, sobre a identidade cultural compartilhada entre os povos
africanos.
Temos milhares de pessoas registradas no
Brasil com nomes ou sobrenomes difíceis de pronunciar e sem nenhuma
significação em nossa língua. Até mesmo nomes esdrúxulos e descabidos. Uma
amiga estava na sala de espera de um consultório dentário, em São Paulo, quando
a dentista chamou a próxima cliente, uma menina: Madeinusa. Isto é “made in
USA”, que o pai vira na embalagem de um produto feito nos Estados Unidos e
achara-o bonito e original.
Nem nomes de celebridades escapam do
esdrúxulo. O escritor português José Saramago, filho de uma família pobre,
recebeu o sobrenome imposto pelo cartório nos tempos iniciais do regime
republicano, quando se tornou obrigatório o registro civil de nascimentos em
Portugal. Saramago é a pronúncia vulgar de “sal amargo”, um purgante.
Na mesma linha das aberrações, encontrei no
Cemitério do Araçá, o sobrenome “Quattrocchio” (sic!), ou seja, “Quatro olho”.
Coisa de um cartorário na Itália que quis ironizar um pobre que passara a ter
sobrenome.
No final dos anos 1970, o apresentador de
televisão Flávio Cavalcanti entrevistou três irmãs pré-adolescentes que se
chamavam Fotocópia, Xerox e Autenticada. Nos três casos, nascida uma filha, a
mãe alertava o marido que era preciso registrá-la. Ele mandava que ela mesma o
fizesse. Qual nome? Ela perguntava. Escolha você. No cartório, sem um nome
escolhido, quando perguntada pelo escrivão, dizia o nome que estava escrito no
cartaz da parede.
No Brasil escravista, escravos não tinham
sobrenome. Na falta de um, quando fugiam eram identificados pela feiura, por
defeitos físicos, como cicatrizes ou marcas da chibata, ou “defeitos de
caráter”, como o alcoolismo ou saber tocar viola caipira.
Pelo menos seis presidentes do Brasil tiveram
sobrenomes particularmente estranhos: Geisel, Roussef, Temer, Bolsonaro
(“Bolzonaro”, neste caso, “punçador”). Ou Sarney, cujo pai trabalhara numa
empresa de eletricidade, que tinha um diretor inglês a que todos chamavam de
“sir Ney”. Quando José Ribamar resolveu que seria escritor, alguém lhe sugeriu
que precisava de um nome literário. Ninguém leria livro de um José Ribamar,
nome comuníssimo no Maranhão. Escolheu, então, o nome cuja pronúncia o pai
admirava, de antigo colega de trabalho: Sarney.
Luiz Inácio, como é mais ou menos próprio do
mundo operário, era conhecido pelo apelido, uma variante afetiva do nome: Lula.
Ao entrar na política, teve que mudar em juízo o próprio nome,
acrescentando-lhe o apelido. Corria o risco de não se eleger se se apresentasse
ao eleitorado como “Luiz Inácio”.
Nem o indiscutivelmente tupi e pátrio “Maíra”
se salvou de interpretações sem fundamento. Popularizado pelo estudo
antropológico de Darcy Ribeiro, “Uirá vai ao encontro de Maíra”, entenderam os
pais e os cartórios que Maíra é nome feminino que indica suavidade e doçura,
quando é exatamente o contrário. Ou seja, ouviram falar, mas não leram o livro.
Uirá e a mulher, índios urubu-kaapor,
inconsoláveis com a morte de um filho, deixaram a aldeia e seguiram o curso a
jusante dos rios, pois sabiam que Maíra vem do mar. Quase foram linchados ao
longo do caminho, porque estavam nus. Maíra é um ente masculino que vem para
castigar os índios. Queriam interpelá-lo para saber o que haviam feito para
sofrer tamanha perda.
No mesmo país em que os cartórios do registro
civil são severos na estigmatização de nomes, a Justiça Eleitoral aceita que
candidatos se registrem com nome de urna, geralmente ridículo, como Tiririca,
uma erva daninha, ou Delegado Caveira, deputados federais. Caveira é personagem
da Marvel Comics e delegado é função pública. O cartório recusaria registrar um
Tiririca ou um Caveira como gente.
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