- O Estado de S.Paulo
Há vários satélites artificiais cruzando o céu e outros países têm acesso ao que acontece
O presidente Jair Bolsonaro prestou um desserviço ao País ao desqualificar o trabalho científico do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) e do seu diretor, Ricardo Galvão, acusando-o de “fazer campanha contra o País” e de que estaria “a serviço de alguma ONG”.
Antes de mais nada, é preciso lembrar que existe uma grande variedade de organizações não governamentais (ONGs), tanto no País como no exterior, algumas delas voltadas para a advocacia de causas ambientais, mas outras realizam estudos técnico-científicos que ajudam muito na análise e compreensão dos problemas. A ideia de que todas elas tenham uma agenda hostil ao País é uma simplificação grosseira e inadequada, como também é incorreta a ideia de que sejam todas organizações de “esquerda”.
As críticas de algumas delas ao que acontece na Amazônia não são nenhuma novidade. Há mais de 50 anos inúmeras dessas organizações, nacionais e internacionais, alertam o governo brasileiro sobre os sérios problemas causados pelo desmatamento ilegal e predatório que é feito naquela região. Contudo, no passado, muitas críticas e denúncias eram baseadas em observações in loco, de caráter jornalístico e usualmente muito exageradas.
A Região Amazônica é tão vasta que só medições do desmatamento por satélite poderiam dar uma ideia realista do que estava acontecendo, e isso foi feito antes de 1990 por satélites americanos. O Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa), na época, tinha acesso às imagens obtidas pelos satélites, mas durante o governo militar era proibida a análise e divulgação dos dados.
Responsável pelo setor de Ciência e Tecnologia do governo federal em 1991, expliquei ao presidente da República que o modo mais efetivo de enfrentar as frequentes críticas à forma como o governo enfrentava o problema, publicadas na imprensa, era analisar os dados armazenados no Inpe sobre o desmatamento e publicá-los. Isso foi feito e a política de transparência, adotada pelo governo, o que esvaziou a campanha que ocupava as páginas dos jornais.
A política de transparência adotada foi particularmente importante na época porque estava em preparação a grande conferência internacional sobre meio ambiente e desenvolvimento, a Rio-92. Nessa ocasião fomos várias vezes à sede da Organização das Nações Unidas (ONU), em Nova York – com o apoio do Itamaraty –, para esclarecer representantes de governos e ONGs internacionais sobre a realidade do que estava ocorrendo na Amazônia. O resultado final contribuiu para o sucesso da Conferência do Rio, na qual foram assinadas a Convenção do Clima e a Convenção da Biodiversidade e as ONGs tiveram participação expressiva.
Um efeito colateral da publicação dos dados do Inpe foi ajudar muito as medidas tomadas pelo Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) e pela Polícia Federal, que levaram efetivamente a uma redução significativa do desmatamento ilegal até 1994.
Ao longo dos anos as técnicas de coleta e análise de informação pelo Inpe foram aperfeiçoadas – e podem ainda ser melhoradas –, mas os dados publicados regularmente são hoje uma referência utilizada por todos os cientistas que trabalham nessa área.
Por essas razões, desqualificar os dados coletados pelo Inpe ou criar embaraços à sua publicação não protege o governo, mas o torna alvo de novos ataques. Não há nada que escalões burocráticos em Brasília, no Ibama, no Ministério da Agricultura ou no Ministério de Ciência e Tecnologia possam fazer para melhorá-los.
O argumento usado pelo presidente da República de que publicar dados que indiquem um aumento do desmatamento na Amazônia poderia prejudicar os negócios internacionais do Brasil é simplesmente ingênuo. Há vários satélites artificiais cruzando o céu na Região Amazônica e outros países (e até organizações comerciais) têm acesso ao que acontece na região no que se refere ao desmatamento. No caso dos Estados Unidos, esse monitoramento já era feito antes de o Brasil começar a fazê-lo, em 1990. Não é possível, nessa área, ocultar a realidade. Liberar os dados, mas aguardando ocasião mais propicia para fazê-lo, só provocaria suspeitas de manipulação.
O que é preciso entender é que promover o desenvolvimento na Amazônia é de interesse primordial dos próprios brasileiros e pressões internacionais não são necessárias para que tomemos as providências corretas para fazê-lo, como já ocorreu no passado. Uma das formas de fazê-lo é evitar o desmatamento ilegal, porém isso só é efetivo quando toda a sociedade se engaja no tema. É o que mostra a experiência bem-sucedida da queda do desmatamento desde 2004 até recentemente. A redução do desmatamento não se deu apenas pela adoção de mais fiscalização, mas como resultado da conscientização do setor agropecuário de que suas atividades não exigem expansão territorial ilegal, mas melhorias das tecnologias usadas. Desmatar para a retirada de madeira e soltar gado nas áreas desmatadas, que era o velho paradigma usado no País, levou-nos a desmatar 200 milhões de hectares para 200 milhões de cabeças de gado (uma cabeça de gado por hectare). Esse é um método primitivo e caro de criar gado, quando outros países criam 20 ou 30 cabeças por hectare.
O apoio da sociedade só se consegue, todavia, com transparência completa. E nisso a contribuição do Inpe é essencial, bem como o apoio das próprias ONGs, devidamente esclarecidas. Desqualificar o trabalho do Inpe e o seu diretor não resolve e prejudica o próprio esforço do governo para promover um desenvolvimento que seja sustentável.
O Inpe é, no caso, apenas o mensageiro, e não a mensagem. A mensagem é o desmatamento ilegal e predatório.
*Professor emérito e ex-Reitor da USP, foi ministro da Ciência e Tecnologia e do Meio Ambiente (governo Collor)
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