Impacto do tarifaço no Brasil pode não ser tão dramático
O Globo
Qualquer programa de ajuda
do governo precisa ter foco e, sobretudo, ser temporário
Não era apenas bravata. O
Brasil foi alvejado por Donald
Trump com a maior punição em seu tarifaço, uma sobretaxa de 50%
nas exportações aos Estados
Unidos (se até o fim do mês a Índia não ceder à pressão para que
pare de comprar petróleo russo, será o único país sujeito a taxação igual). A
fúria tarifária de Trump, vale lembrar, tem escala planetária. Como tarifas
subiram para praticamente todos os parceiros comerciais americanos, o resultado
será um rearranjo da economia global. Para reduzir os danos aos exportadores
brasileiros, o governo federal terá de analisar caso a caso suas demandas.
O Tesouro não tem recursos
sobrando, e o Executivo não deveria aumentar ainda mais o endividamento para
socorrer todos os que passarem por dificuldade. Qualquer programa de ajuda deve
ter foco e, sobretudo, ser temporário — afinal, sabe-se lá quanto tempo durarão
as tarifas. Para vários segmentos, o sobressalto agudo poderá ser passageiro. O
deslocamento das mercadorias para o mercado interno é sempre uma saída, e há
dezenas de compradores externos além dos Estados Unidos.
Exportadores de café estão
entre os que sem dúvida conseguirão encontrar novos mercados. Há escassez nos
estoques mundiais, e a demanda se mantém inalterada. O setor tem tudo o que é
preciso para buscar alternativas: tradição exportadora, contatos em vários
países e mão de obra especializada em comércio internacional. Esse também é o
caso da indústria de carnes. Com atuação marcante de grandes grupos
empresariais, ela na certa tem mais capacidade de enfrentar as adversidades.
Em setores como a indústria têxtil, de calçados, frutas ou pescados, a situação é outra. Há grande participação de pequenas e médias empresas, mais suscetíveis a problemas como falta de capital de giro. As próximas semanas e meses serão desafiadores, em especial para empresas que trabalham com produtos perecíveis. Mesmo para essas, porém, o governo não deve antecipar linhas de socorro, sob o risco de desestimular a procura por novos mercados. Com o rearranjo no comércio global, é provável que oportunidades surjam.
Publicado na quinta-feira,
um estudo da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) concluiu que os
prejuízos para o Brasil não serão tão dramáticos. O saldo estará sujeito a duas
dinâmicas. Uma é o impacto das tarifas impostas aos produtos brasileiros. A
outra envolve os efeitos das tarifas aplicadas aos demais países e, sobretudo,
a resposta chinesa. Mantida a tarifa de 30% sobre os chineses para entrar nos
Estados Unidos e de 10% sobre mercadorias americanas na China, alguns produtos
brasileiros, como a soja, poderão se beneficiar. O encarecimento do grão
americano abrirá espaço ao aumento das vendas do Brasil.
É verdade que outros setores
não deverão ter a mesma sorte. É o caso, segundo o estudo, de metais ferrosos,
produtos químicos ou madeira. “Outros segmentos fortemente afetados incluem
máquinas e equipamentos, calçados e artefatos de couro, têxteis, vestuário,
produtos farmacêuticos e artigos de borracha e plástico”, afirma a análise.
Tais prognósticos devem servir para o governo se manter mais atento à pressão
inevitável que surgirá de vários segmentos da economia. Para liberar a ajuda,
será preciso identificar se as previsões se confirmarão e, acima de tudo,
priorizar o socorro. Distribuir dinheiro sem critério sempre é um erro. Não é
diferente desta vez.
Aumento de mortes por câncer
no Brasil impõe novo desafio ao SUS
O Globo
Doenças cardíacas ainda
matam mais, mas elas estão em queda, enquanto as oncológicas têm crescido
Doenças do coração ainda são
as que mais matam no Brasil e no mundo. Com o passar dos anos, porém, o avanço
relativo no controle de doenças cardíacas tem feito o câncer ganhar importância
como causa de mortes. No Brasil, foram registradas, em 2024, 238.477 mortes por
câncer e 365.772 por doenças cardíacas. Mas, entre 1989 e 2020, as mortes por
males cardiovasculares caíram de 305 para 141 por 100 mil habitantes, ou 53,7%,
enquanto as provocadas por câncer cresceram 5,8%, de 86 para 91, segundo dados
da Organização Mundial da Saúde (OMS).
Em 836 cidades, ou 15% dos
5.570 municípios brasileiros, o câncer matou no ano passado tanto quanto
doenças do coração, revelou
levantamento feito pelo GLOBO a partir de dados do Sistema de
Informação sobre Mortalidade (SIM), do Ministério
da Saúde. Em 606 dessas cidades, ou 10,8%, as doenças oncológicas
lideram as estatísticas de óbitos. “Até 2035, devemos ter essa transição numa
parte significativa do país, começando pelos grandes centros urbanos” , diz
Carlos Gil, presidente do Instituto Oncoclínicas e ex-presidente da Sociedade
Brasileira de Oncologia Clínica. “A tendência reflete algo que já acontece em
muitos países de alta renda.”
Há uma relação estatística
entre nível de renda e perfil de óbitos. Um índice de doenças cardiovasculares
elaborado pela Biblioteca Nacional de Medicina do governo americano, ajustado
por idade e expresso em anos de vida perdidos por incapacidade para o trabalho,
chega a 7.500 por 100 mil habitantes na região central sub-saariana da África e
não passa dos 2.500 na Europa. O site de artigos científicos Science Direct
mostra que, de 1980 a 2021, a mortalidade global por doenças cardíacas caiu de
416,1 para 235,2 por 100 mil habitantes. Os dados sobre a mortalidade causada
pelo câncer não são tão auspiciosos.
Diante do aumento na
incidência de câncer — resultado de queda na subnotificação (decorrente da
maior atenção com a doença) e do próprio envelhecimento da população —, o
Congresso aprovou em 2012 a Lei 12.732, chamada Lei dos 60 dias. Ela estabelece
que o paciente oncológico não pode esperar mais de dois meses para ser atendido
no SUS. Mas não basta haver lei para resolver os problemas. “Há locais no
Brasil em que o paciente espera cem, 150 dias. Aquele tumor que era pequeno
fica grande, e as chances de cura diminuem”, diz Maria Paula Curado, médica e
pesquisadora do A.C. Camargo Cancer Center.
A mudança no perfil de mortalidade brasileiro não deixa dúvida. Se o câncer ganha importância como causa mortis, o governo tem obrigação de dar mais condições de que seja tratado a tempo. É tarefa urgente garantir que o SUS cumpra a lei. É o mínimo que a população exige.
Trump ensaia fragilizar
Ucrânia em cúpula com Putin
Folha de S. Paulo
- Após pressionar o russo, republicano
volta a falar em termos favoráveis ao Kremlin para acabar com a guerra
- Trump afirmou que deverá haver trocas
territoriais, mas Putin só oferece áreas invadidas que não fazem parte de
sua lista oficial de desejos
Na próxima sexta-feira (15),
a Guerra da Ucrânia chegará
a seu 1.269º dia com um legado de destruição física e política sem paralelo no
século 21.
Após vaivéns oriundos do fim
da Guerra Fria, o mundo voltou a uma era de conflitos duros gerada pela invasão
promovida por Vladimir
Putin contra seu vizinho.
Um novo capítulo da história
pode ser escrito, na sexta, com a primeira reunião de cúpula marcada entre o
longevo autocrata do Kremlin e o caótico chefe da Casa Branca, Donald Trump,
em seu segundo mandato.
O encontro é resultado do
conhecido processo de negociação trumpista. O americano primeiro reafirmou sua
admiração pelo russo, aproximou-se dele e suspendeu o apoio incondicional a
Kiev. Brigou com Volodimir
Zelenski e chegou a congelar o envio de armas aos ucranianos.
Só que o objetivo de obter
um cessar-fogo de Putin falhou. Reuniões entre os rivais serviram mais para
reafirmar exigências mutuamente excludentes.
Putin quer a totalidade dos
territórios que anexou sem manter controle sobre eles, a neutralidade militar
de Kiev e até eleições para tentar remover Zelenski do poder. Silenciar
canhões, só depois de os termos serem aceitos.
A Ucrânia, por sua vez, pede
o cessar-fogo para iniciar o diálogo e rejeita concessões que serão
inevitáveis. Exasperado com o impasse, Trump passou a pressionar Putin,
emitindo um ultimato ao congênere: a trégua ou novas punições econômicas.
Para ampliar a ameaça, o
republicano inseriu as medidas no
contexto de sua guerra tarifária global. Países compradores de petróleo e
derivados russos, como China, Índia e
Brasil, sofreriam sanções secundárias. Para dar exemplo, já aplicou sobretaxas
a Nova Déli pelo apoio a Moscou.
Na undécima hora, Putin
recebeu um enviado de Trump e, segundo relatos, teria aceitado um tipo de
trégua em troca de concessões territoriais imediatas.
O americano ficou satisfeito
e a
cúpula ocorrerá no simbólico Alasca —o estado americano é fruto de uma
negociação comercial em que Moscou o vendeu a Washington, em 1867. O prazo do
ultimato expirou na sexta (8), e ninguém mais falou nas sanções.
Ou seja, elas seguem no ar.
Pior para o Brasil, que
compra 60% do diesel que consome dos russos, e para seus parceiros do Brics.
Se a remota possibilidade de
uma pausa no morticínio é mais do que desejável, Kiev tem motivos de sobra para
se preocupar. Trump afirmou que qualquer acomodação terá de passar por
"algumas trocas territoriais", mas tudo o que Putin tem para oferecer
são áreas invadidas em províncias que não fazem parte de sua lista oficial de
desejos.
Zelenski já protestou contra
acordos que o excluam, mas suas opções, sob intensa campanha aérea e avanços
russos, são poucas. Trump, que havia prometido acabar com a guerra em um dia,
parece inclinado a premiar a força bruta que tanto admira —salvo, é claro, mais
uma reviravolta.
Uma boa notícia pode vir dos
EUA
Folha de S. Paulo
- Desaceleração da economia eleva chances
de queda dos juros do Fed, facilitando que o mesmo ocorra aqui
- Com cortes de juros, é possível que haja
desvalorização do dólar. Para países como o Brasil, isso tende a suplantar
preocupação com tarifaço
A economia dos Estados
Unidos se encontra em um momento delicado, em que indicadores apontam
desaceleração que pode levar seu banco central, o Federal Reserve, a
iniciar já em setembro um ciclo de corte dos juros, hoje mantidos entre
4,25% a 4,5% ao ano.
O presidente americano,
Donald Trump, em mais uma manifestação de seu populismo primitivo, tem
criticado severamente as taxas —e, por linhas tortas, ele agora
contribui para reduzi-las.
No primeiro semestre, o
Produto Interno Bruto (PIB) dos EUA cresceu apenas 1,25% anualizado, ritmo
significativamente mais lento do que o observado em anos anteriores. As
projeções para a segunda metade do ano não são muito mais otimistas, com
estimativas indicando alta de apenas 1%.
A geração de empregos, outro
indicador crucial, também apresenta sinais preocupantes. Após períodos de
robusta criação de vagas, os números mais recentes indicam uma queda
significativa de novos postos de trabalho, e a taxa de desemprego começa a
mostrar sinais de aumento.
Além disso, o horizonte é
obscurecido pelo iminente choque de renda decorrente do aumento de tarifas
comerciais, que devem elevar os preços de bens importados nos próximos meses,
impactando diretamente o poder de compra dos consumidores.
Estima-se que as tarifas, de
15% a 50% como regra, mais cobranças adicionais sobre produtos tidos como
essenciais, possam elevar a inflação para 3,5% a 4% em 2025, o que deve ser
restritivo para a demanda interna.
Por ora, a boa notícia é que
o Fed mantém a visão de que o aumento da inflação será transitório. A
expectativa é que, após o choque inicial, a inflação convirja gradualmente para
a meta de 2% nos próximos dois anos.
O choque inflacionário ainda
por vir normalmente não recomendaria redução de juros, mas diante da
desaceleração do emprego, o Fed deve optar por uma postura mais branda.
As projeções do mercado
sugerem que os juros americanos podem cair para cerca de 3,5% anuais até meados
de 2026. Se esse ciclo de cortes se concretizar, poderá haver desvalorização do
dólar, uma vez que taxas de juros mais baixas reduzem a atratividade da moeda
americana.
Para países emergentes como o Brasil, isso tende a ser positivo e suplantar a preocupação com a cobrança alfandegária. A possível valorização do real ante o dólar, mesmo diante dos riscos fiscais internos, pode aliviar pressões inflacionárias importadas e favorecer cortes na taxa Selic, que já parecem se aproximar.
Pusilanimidade
O Estado de S. Paulo
Motta parece cheio de dedos
para lidar com a malta golpista que impediu o funcionamento da Câmara. Se
quiser recuperar a autoridade, o presidente da Câmara terá de ter pulso mais
firme
O presidente da Câmara, Hugo
Motta (Republicanos-PB), encaminhou à Corregedoria da Casa denúncias contra 14
deputados que participaram do assalto antidemocrático à Mesa Diretora há alguns
dias. Se realmente estivesse interessado em se recuperar da humilhação pública
a que foi submetido, Motta deveria ter dispensado a análise da Corregedoria, de
resto desnecessária ante as imagens chocantes, e recomendado diretamente ao
Conselho de Ética o afastamento dos deputados.
Se era assim que pretendia
recuperar sua abalada autoridade, Motta falhou miseravelmente. A Mesa Diretora
já fez isso por muito menos: os deputados André Janones (Avante-MG) e Gilvan da
Federal (PL-ES) haviam apenas xingado, respectivamente, o deputado Nikolas
Ferreira (PL-MG) e a ministra de Relações Institucionais, Gleisi Hoffmann, e
tomaram um gancho de três meses, sem que fosse necessária qualquer análise da
Corregedoria.
Tudo isso só evidencia a
fragilidade da posição de Hugo Motta. Já havia sido sintomática a notícia de
que o ex-presidente da Câmara Arthur Lira (PP-AL) teve de intervir para
negociar com os revoltosos e convencê-los a desocupar a Mesa Diretora. Aliados
de Motta dizem que, assim, ele evitou que os bolsonaristas conseguissem o que
realmente queriam: imagens nas quais saíssem como vítimas de violência da
Polícia Legislativa. Trata-se de uma leitura excessivamente benevolente do que
aconteceu. Se Motta fosse de fato respeitado, os bolsonaristas nem sequer
teriam iniciado a rebelião.
Além de Marcel van Hattem
(Novo-RS), que estava sentado na cadeira de Motta e se recusou a levantar
quando ele chegou, a lista de denunciados é composta por 13 deputados do PL:
Allan Garcês (MA), Bia Kicis (DF), Carlos Jordy (RJ), Caroline de Toni (SC), Domingos
Sávio (MG), Júlia Zanatta (SC), Marco Feliciano (SP), Marcos Pollon (MS),
Nikolas Ferreira (MG), Paulo Bilynskyj (SP), Sóstenes Cavalcante (RJ), Zé
Trovão (SC) e Zucco (RS).
O pretexto dessa turma era
obrigar o Legislativo a votar medidas para livrar a cara do ex-presidente Jair
Bolsonaro, que está em prisão domiciliar e prestes a ser condenado pelo Supremo
Tribunal Federal (STF) por tentativa de golpe de Estado. Mas é lícito presumir
que o ato golpista tenha sido armado para desviar a atenção do tarifaço imposto
pelos Estados Unidos ao Brasil – que, como se sabe, resultou em parte de
gestões da família Bolsonaro junto ao presidente Donald Trump e começou a valer
justamente nesta semana.
Os bolsonaristas são capazes
de tudo. Mas, para piorar um episódio que já era suficientemente lamentável, o
PL ainda apelou a uma manobra diversionista e teve a audácia de enviar à
Corregedoria da Câmara, por conta própria, uma representação contra a deputada
petista Camila Jara (PT-MS), que evidentemente não fazia parte da súcia
liberticida. Camila está sendo acusada de ter empurrado Nikolas Ferreira na
confusão.
Assim como no caso dos
deputados bolsonaristas, o parecer da Corregedoria sobre a parlamentar voltará
à Mesa Diretora, a quem caberá a decisão sobre enviar ou não o caso ao Conselho
de Ética. Mas, se der a uma deputada petista que não participou do assalto o
mesmo tratamento destinado aos deputados bolsonaristas que impediram à força o
funcionamento da Câmara, Motta parecerá ainda mais pusilânime, pois as
situações são absolutamente incomparáveis.
Motta precisa ter pulso. Vai
longe o tempo em que a Câmara era presidida por um Ulysses Guimarães, aquele
que se gabava de somente decidir sob pressão. Ao tomar posse, em fevereiro
passado, Motta até citou Ulysses como sua inspiração, mas em pouquíssimo tempo
ficou claro que o atual presidente da Câmara, diferentemente de Ulysses,
apavora-se ao menor arreganho.
O levante bolsonarista na
Câmara não pode acabar sem uma punição exemplar, sob pena de comprometer de
maneira definitiva a autoridade de Motta, que ainda tem mais de um ano de
mandato à frente da Casa. Se o deputado quer mesmo recuperar a cadeira da Presidência
da Câmara sem fazer dela apenas um assento decorativo, precisa ocupá-la de
verdade e assumir o ônus do cargo.
Antidemocráticos são os
outros
O Estado de S. Paulo
Lulopetismo, bolsonarismo e
populistas em geral produziram entre muitos eleitores a dificuldade de aceitar
a democracia quando esta não favorece suas preferências partidárias
Em seus Diários da
Presidência, o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso descreveu, com
indignação, os golpes abaixo da linha de cintura desferidos ao seu governo pela
oposição, então liderada por Lula da Silva e o PT. Eram tempos em que os
morubixabas petistas e seu exército de militantes se apresentavam como
detentores exclusivos da virtude pública, como ainda hoje o fazem, e se
mancomunavam com procuradores para vazar investigações em curso, transformar
meros indícios em crime, prejulgar e tentar desestabilizar a gestão tucana. Um
dia, escreveu FHC, Lula e o PT haveriam de provar do veneno do denuncismo que
fabricavam. Anos depois, a Lava Jato confirmaria o prognóstico sombrio do
ex-presidente, transformando antigos algozes em vítimas.
Esse paradoxo ilustra uma
doença crônica de que padecem as principais forças políticas e partidárias do
País, especialmente aquelas que, desde 2018, realizam um duelo asfixiante para
conquistar votos à custa da destruição do adversário. O lulopetismo e o
bolsonarismo vêm demonstrando que, quando a moderação é atributo escasso e
lideranças e partidos se desacostumam a raciocinar com bom senso, o efeito
imediato é passar a enxergar o Brasil e os brasileiros como mera extensão de
seus interesses e preferências. As consequências são perturbadoras e
conhecidas: a polarização violenta, a conversão de adversários em inimigos a
eliminar, o populismo desavergonhado e o contínuo desapego à realidade.
Como os dois principais
líderes do período, Lula e Jair Bolsonaro, cada um a seu modo, jamais tiveram
real compromisso com a democracia – que pressupõe respeito a quem tem opinião
divergente, para que seja possível o consenso –, e também nunca reconheceram a
legitimidade de nenhum governo que não fosse o seu e de seus títeres. Não à
toa, ambos não só cresceram fuzilando ideias e lideranças adversárias, como, no
governo ou na oposição, apresentaram-se como vítimas de um complô
antidemocrático e antipopular. Para o lulopetismo, a origem de tal complô
sempre esteve nas “elites”. Para o bolsonarismo, no PT e no Supremo Tribunal
Federal. Para ambos, na imprensa.
Num país em que a
Constituição consagra a liberdade política e o pluripartidarismo, esses
radicalismos mútuos resultam num mal ainda maior: com irresponsabilidade e
espírito autoritário, os dois líderes e seus devotos têm dificuldade em aceitar
a democracia quando sofrem reveses – seja na forma do voto na urna, seja na
forma de julgamento pela Justiça.
Um estudo recente da
Universidade Federal do Paraná, com entrevistas feitas pelo Ipsos-Ipec, mostrou
que essa cultura se espalha também pelos seus eleitores. Segundo a pesquisa, a
maioria dos brasileiros diz estar disposta a aceitar que regras democráticas
sejam flexibilizadas de acordo com suas preferências políticas e partidárias e
qual grupo está no poder em determinado momento. Mais de 60% dos eleitores de
Lula e Bolsonaro no primeiro turno (portanto, mais convictos) disseram
concordar, total ou parcialmente, que o presidente deve ignorar o Congresso
Nacional “se ele atrapalhar o trabalho do governo” e também “decisões judiciais
consideradas politicamente tendenciosas”.
Essa constatação se repete
dos dois lados (com inclinação ainda maior entre os eleitores de Lula),
mostrando que o apoio a princípios democráticos pode ter menos a ver com defesa
de fato da democracia e muito mais com o que pesquisadores chamam de “autoritarismo
situacional”. É como se nos deparássemos com uma espécie de apoio condicional à
democracia, em que há uma disposição de parte do eleitorado a relativizar as
regras do jogo democrático quando elas ameaçam suas preferências. O Brasil não
está sozinho nessa tendência. Há pesquisas internacionais que confrontam
interesses partidários e apoio à democracia e descrevem como líderes populistas
exploram essas preocupações potencialmente conflitantes.
Em suma, a aceitação ao
governo de ocasião e às regras do jogo parece condicionada ao contexto de quem
a observa. Na disputa pelo monopólio da virtude ou na denúncia de quem se sente
inconformado com a democracia, “nós” nos vemos como democratas. Ocorre que, aos
olhos de outros, “nós” não passamos de antidemocratas a serviço de
autoritários. E o vilão de ontem vira o herói de hoje.
Somos todos ‘inconvenientes’
O Estado de S. Paulo
Ministros do TST usam
dinheiro público para ficar longe de ‘pessoas inconvenientes’ em aeroporto
Os ministros do Tribunal
Superior do Trabalho (TST) não querem cruzar com “pessoas inconvenientes”,
segundo suas próprias palavras, quando circulam pelo Aeroporto Internacional de
Brasília. Foi esse o motivo que levou o tribunal à decisão de alugar e reformar
uma sala do aeroporto com 44 metros quadrados, piso de granito e banheiro e
copa privativos, para oferecer uma experiência vip aos seus 27 magistrados.
Entre os serviços premium previstos estão o acompanhamento de
um funcionário do aeroporto e um carro à disposição para o deslocamento até o
avião.
Essa sala ficará numa área
exclusiva do terminal, localizada no piso superior, onde já há salas vip para
clientes de cartões de crédito, que desfrutam de poltronas confortáveis e
comida à vontade. Aparentemente, esse tratamento especial não é o bastante para
os ministros do TST, razão pela qual eles terão agora uma sala só para eles,
bancada pelo erário. Nada demais, para uma categoria que já goza de inúmeros
privilégios em relação aos contribuintes “inconvenientes”.
Vale lembrar que integrantes
daquela Corte, como mostrou o Estadão, chegaram a receber no final
do ano passado, quando ocorre a chamada “dezembrada”, até R$ 700 mil em razão
de uma série de gratificações e indenizações. Esses tantos penduricalhos levam
reiteradamente ao estouro do teto constitucional, que hoje é o salário de um
ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), de R$ 46,3 mil. Como se vê, não
basta driblar esse limite, é preciso também ganhar mimos como um tratamento
especial no aeroporto, o que só reforça a percepção de que os magistrados vivem
em outro planeta.
O TST, claro, tratou logo de
negar que se trata de um privilégio, como costuma fazer o Judiciário ao ser
questionado sobre seus benefícios autoconcedidos. Segundo informou a Corte em
nota, a ideia é aumentar a segurança dos ministros, haja vista que “a forma
como eram realizados os embarques e desembarques” – ou seja, com todos os
passageiros – “propiciava a aproximação de indivíduos mal-intencionados ou
inconvenientes”. Ademais, o TST disse estar apenas replicando o modelo de salas
vip que já atendem ministros do STF e do Superior Tribunal de Justiça (STJ).
Não se tem notícia de que os
ministros do TST sejam tão conhecidos e visados a ponto de estarem sujeitos a
situações de constrangimento, ameaça ou risco. Recorde-se que, no caso do STF,
a tal sala vip foi criada porque os ministros ganharam grande exposição pública
em razão dos rumorosos casos da Operação Lava Jato e poderiam, de fato, sofrer
assédio. Portanto, não há comparação com a atuação do TST.
Esta sala do TST está orçada em R$ 1,5 milhão ao longo de dois anos. Diante de uma Justiça que custa R$ 23 bilhões por ano e gasta 95% disso com salários, benefícios e encargos, pode até parecer irrisório. A imoralidade, porém, é que todos esses privilégios e mimos são bancados pelos impostos pagos por milhões de “pessoas inconvenientes”.
Maturidade para o
licenciamento
Correio Braziliense
A poucos meses da Cúpula do
Clima em Belém, o Brasil tem a oportunidade de mostrar ao mundo uma
contribuição relevante em termos de governança ambiental
O presidente Lula sancionou
a lei sobre licenciamento ambiental, tema de intenso debate nos últimos meses,
com uma lista de 63 vetos ao projeto de lei encaminhado pelo Congresso
Nacional. O ato do Executivo é uma resposta à votação de deputados e senadores,
concluída no mês passado sob grande alarde. Sensíveis às demandas do setor
produtivo e de investidores, os parlamentares aprovaram uma versão que agradou
representantes do meio empresarial e do agronegócio. Em compensação, provocaram
revolta de ambientalistas e de entidades como a Conferência Nacional dos Bispos
do Brasil, que consideram o chamado "PL da Devastação" uma eloquente
matéria de retrocesso ambiental.
Ao anunciar o veto a dezenas
de dispositivos na norma do licenciamento ambiental, o governo propôs um
diálogo com o Congresso a fim de se chegar a um denominador comum quanto à
legislação ambiental brasileira. A partir dessa premissa, o Executivo abriu duas
frentes. A primeira: o envio de um novo projeto de lei, a fim de evitar lacunas
regulatórias e insegurança jurídica com as modificações sobre o texto elaborado
pelo Legislativo. A segunda frente é a publicação da medida provisória que
prevê a Licença Ambiental Especial (LAE), de modo a acelerar a tramitação de
empreendimentos considerados estratégicos. A MP, diga-se, atende
especificamente a uma reivindicação do presidente do Senado, Davi Alcolumbre.
Em meio à conturbada vida
política nacional — na última semana, o ministro do STF Alexandre de Moraes
decretou prisão domiciliar para Jair Bolsonaro, e os apoiadores do
ex-presidente promoveram um motim no Congresso Nacional —, ainda não é possível
saber com precisão como o Legislativo receberá a proposta do Executivo em
relação ao licenciamento ambiental. Mas é improvável que os parlamentares
entrem facilmente em acordo com o governo Lula.
Antecedentes sugerem novos
embates. Nos últimos meses, a ministra do Meio Ambiente, Marina Silva, passou
por situações vexatórias com senadores e deputados mais preocupados em
"lacrar" nas redes sociais do que em debater sobre meio ambiente. Além
do mais, a relação entre o presidente Lula e parlamentares de oposição está
longe de ser cordial. Na última sexta-feira, o chefe do Executivo defendeu o
impeachment de deputados e senadores que paralisaram o Congresso e exigem o
afastamento de Alexandre de Moraes. Segundo Lula, são "traidores da
Pátria". Com esse nível de animosidade, não se deve esperar uma discussão
ponderada sobre licenciamento ambiental.
Esse estado de coisas
altamente polarizado pode impedir avanços substanciais na definição das regras
para o licenciamento ambiental. É preciso conversar, contudo. O próprio
governo, ao anunciar os vetos, deixou clara a intenção de que está disposto a
encontrar a equação que equilibre desenvolvimento econômico com
sustentabilidade. Espera-se que o Legislativo, por sua vez, tenha maturidade e
firmeza para ir ao encontro desses compromissos, imune a interesses predatórios
ou ao radicalismo vazio de quem pouco se preocupa com os desígnios da nação.
A poucos meses da Cúpula do Clima em Belém, o Brasil tem a oportunidade de mostrar ao mundo uma contribuição relevante em termos de governança ambiental. O país pode provar que, por meio do diálogo, é possível elaborar um arcabouço legal que proteja o futuro das próximas gerações.
O Plano Diretor e a
participação popular
O Povo (CE)
A capital cearense deu
início, com bastante atraso, é verdade, às audiências públicas para revisão do
Plano Diretor de Fortaleza (PDPFor). Em encontros abertos ao público, as
discussões devem congregar fortalezenses, estudiosos em geral e representantes da
sociedade civil e do poder público. Segundo a Prefeitura da Capital, até o
começo do mês de outubro, estão previstas oito audiências. Cada uma deve ter um
tema específico para discussão, e até novembro o documento deve ser finalizado
e encaminhado para votação.
Sabe-se que o Plano Diretor
de Fortaleza está desatualizado. Um documento basilar que deve reger a cidade,
sob várias instâncias, em vários aspectos, atualmente data de 2009, ainda do
início da segunda gestão da prefeita Luizianne Lins (PT). Conforme estabelecido
pelo Estatuto da Cidade (Lei Federal nº 10.257/2001), em seu parágrafo 3º no
artigo 30, o plano diretor deve ser revisto a cada 10 anos, visto que é um
instrumento básico da política de desenvolvimento e expansão urbana. Essa lei
estabeleceu Planos Diretores como normas básicas do planejamento urbano,
obrigatórios em municípios com 20 mil habitantes ou mais. Considerando que há
mudanças constantes nas cidades e para atender a essas dinâmicas, esse prazo
teria de ser respeitado.
A revisão do Plano Diretor
é, portanto, uma exigência a fim de assegurar que o documento esteja atualizado
com as necessidades e os desafios da cidade e de seus habitantes. Essa referida
revisão é capaz de identificar as novas necessidades, adaptando a eventuais
mudanças, ajustando e melhorando o que é possível.
Diante da divulgação do novo
cronograma de discussão e entrega do novo documento, o Ministério Público do
Ceará (MPCE) enviou à Prefeitura de Fortaleza a recomendação da anulação desse
prazo. A ideia, segundo o órgão, é que a elaboração do documento seja pautada
em debates e reflexões com um prazo que atenda melhor à comunidade, de forma
que se possa analisar e exigir mudanças em tempo hábil. Na promessa de entregar
o novo Plano Diretor de Fortaleza ainda neste ano de 2025, a Prefeitura havia
decidido reduzir o cronograma de discussão do documento com a população.
Assim, na prática, foram
suprimidas duas semanas. A minuta do Plano Diretor, portanto, chegaria à Câmara
Municipal de Fortaleza (CMFor) em novembro, um mês antes do previsto
anteriormente, e o intuito seria dar mais tempo de análise para o legislativo.
A população alega que a mudança foi comunicada sem um prévio aviso e sem
discussão, na reunião do dia 16 de julho de 2025, destinada para aprovar os
cronogramas.
Urge a entrega de um plano
diretor atualizado com parâmetros e instrumentos urbanísticos essenciais para o
planejamento e a gestão urbana. Esse documento, porém, precisa, sobretudo, da
participação popular, com contribuições que guiarão a cidade pelos próximos
anos. Desse modo, pode-se garantir uma gestão democrática da cidade com os
interesses da população - os únicos que realmente devem ser atendidos em todo
esse processo.
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