O Globo
O relógio simbólico que
marca o risco de conflito nuclear nunca esteve tão perto da meia-noite
O general prussiano Carl von
Clausewitz, que ajudou a derrotar Napoleão em Waterloo, era também um teórico
da guerra. Seu nome ficou associado ao adágio segundo o qual a guerra é a
continuação da política por outros meios. Será que essa ideia ainda faz sentido?
Até 1914-1918, a guerra era considerada atividade legítima para aquisição de território ou implementação de política externa. Em 1928, o Pacto Briand-Kellogg preconizou sua ilegalidade. Isso não impediu que Mussolini implodisse a Liga das Nações, nem que Hitler desencadeasse a Segunda Guerra Mundial. Determinados a impedir a repetição da tragédia, em 1945 os fundadores da ONU estabeleceram um sistema pelo qual o uso da força seria admissível apenas em autodefesa ou mediante autorização do Conselho de Segurança.
A partir das Convenções de
Genebra de 1949, base do Direito Internacional humanitário, proibiu-se matar
civis intencionalmente. Outros acordos tentaram limitar o uso bélico da energia
atômica e, em 2022, os cinco membros permanentes do Conselho de Segurança
declararam que não haveria vencedores em conflito nuclear e que, portanto, tal
ação jamais deve ser contemplada. O filósofo Umberto Eco acrescentou que a
guerra não é apenas desperdício de recursos humanos e materiais, mas agressão
ao meio ambiente.
Não obstante, o ano de 2024,
além de se notabilizar pelas temperaturas mais altas já registradas, também foi
o de mais elevados orçamentos militares. O relógio simbólico que marca o risco
de conflito nuclear nunca esteve tão perto da meia-noite.
Como membro da iniciativa
Líderes pela Paz, criada pelo ex-premiê da França Jean-Pierre Raffarin,
elaborei relatório com referência à obra “A marcha da insensatez”, de Barbara
Tuchman. Ela indaga por que, em momentos recorrentes da História, certos governantes
adotam políticas de racionalidade questionável, contrárias a seus próprios
interesses. No século XXI, chama a atenção o fato de as intervenções militares
em Afeganistão, Iraque e Líbia terem produzido resultados em desacordo com os
objetivos pretendidos. A invasão da Ucrânia, em vez de debilitar a Otan, levou
ao ingresso da Finlândia e da Suécia na aliança militar e está na origem do
aumento para 5% do PIB dos orçamentos militares de seus integrantes.
A guerra indiscriminada
travada por Israel contra os palestinos em Gaza está ocasionando prejuízos
inéditos à imagem do país. Foi abalada a solidariedade manifestada após os
ataques perpetrados pelo Hamas em 7 de outubro de 2023. Não tiveram ressonância
os conselhos de Joe Biden aos israelenses quando lhes encorajou a evitar os
erros cometidos pelos Estados Unidos no Iraque.
Os repetidos vetos
americanos a resoluções preconizando cessar-fogo em Gaza tampouco parecem ter
levado em conta aquela sábia recomendação. Tais atitudes, a exemplo do recente
bombardeio contra o Irã, têm em comum o fato de envolverem interpretações elásticas
do direito à autodefesa, adesões seletivas à Carta da ONU ou violações
flagrantes de seus dispositivos.
Ainda que o desrespeito a
regras de aplicação universal não seja considerado empecilho a ações
unilaterais por certas capitais, beira o absurdo insistir em estratégias
bélicas que costumam produzir consequências negativas para quem as empreende.
Acreditar hoje que a guerra é a continuação da política por outros meios
significa não apenas ignorar a Carta da ONU e as Convenções de Genebra, ou
desconsiderar os riscos dos arsenais nucleares, mas se esquecer do fracasso de
tentativas de impor estabilidade pela força. O sofrimento de inocentes, o
desperdício de recursos, os danos à natureza e a insensatez associados à guerra
deveriam provocar pausa para reflexão. Para os que continuam a acreditar no
progresso da civilização, o aforismo de Clausewitz há muito deixou de fazer
sentido.
*Antonio de Aguiar Patriota, embaixador do Brasil no Reino Unido, foi ministro das Relações Exteriores
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