domingo, 10 de agosto de 2025

A guerra é a continuação da política por outros meios? - Antonio de Aguiar Patriota*

O Globo

O relógio simbólico que marca o risco de conflito nuclear nunca esteve tão perto da meia-noite

O general prussiano Carl von Clausewitz, que ajudou a derrotar Napoleão em Waterloo, era também um teórico da guerra. Seu nome ficou associado ao adágio segundo o qual a guerra é a continuação da política por outros meios. Será que essa ideia ainda faz sentido?

Até 1914-1918, a guerra era considerada atividade legítima para aquisição de território ou implementação de política externa. Em 1928, o Pacto Briand-Kellogg preconizou sua ilegalidade. Isso não impediu que Mussolini implodisse a Liga das Nações, nem que Hitler desencadeasse a Segunda Guerra Mundial. Determinados a impedir a repetição da tragédia, em 1945 os fundadores da ONU estabeleceram um sistema pelo qual o uso da força seria admissível apenas em autodefesa ou mediante autorização do Conselho de Segurança.

A partir das Convenções de Genebra de 1949, base do Direito Internacional humanitário, proibiu-se matar civis intencionalmente. Outros acordos tentaram limitar o uso bélico da energia atômica e, em 2022, os cinco membros permanentes do Conselho de Segurança declararam que não haveria vencedores em conflito nuclear e que, portanto, tal ação jamais deve ser contemplada. O filósofo Umberto Eco acrescentou que a guerra não é apenas desperdício de recursos humanos e materiais, mas agressão ao meio ambiente.

Não obstante, o ano de 2024, além de se notabilizar pelas temperaturas mais altas já registradas, também foi o de mais elevados orçamentos militares. O relógio simbólico que marca o risco de conflito nuclear nunca esteve tão perto da meia-noite.

Como membro da iniciativa Líderes pela Paz, criada pelo ex-premiê da França Jean-Pierre Raffarin, elaborei relatório com referência à obra “A marcha da insensatez”, de Barbara Tuchman. Ela indaga por que, em momentos recorrentes da História, certos governantes adotam políticas de racionalidade questionável, contrárias a seus próprios interesses. No século XXI, chama a atenção o fato de as intervenções militares em Afeganistão, Iraque e Líbia terem produzido resultados em desacordo com os objetivos pretendidos. A invasão da Ucrânia, em vez de debilitar a Otan, levou ao ingresso da Finlândia e da Suécia na aliança militar e está na origem do aumento para 5% do PIB dos orçamentos militares de seus integrantes.

A guerra indiscriminada travada por Israel contra os palestinos em Gaza está ocasionando prejuízos inéditos à imagem do país. Foi abalada a solidariedade manifestada após os ataques perpetrados pelo Hamas em 7 de outubro de 2023. Não tiveram ressonância os conselhos de Joe Biden aos israelenses quando lhes encorajou a evitar os erros cometidos pelos Estados Unidos no Iraque.

Os repetidos vetos americanos a resoluções preconizando cessar-fogo em Gaza tampouco parecem ter levado em conta aquela sábia recomendação. Tais atitudes, a exemplo do recente bombardeio contra o Irã, têm em comum o fato de envolverem interpretações elásticas do direito à autodefesa, adesões seletivas à Carta da ONU ou violações flagrantes de seus dispositivos.

Ainda que o desrespeito a regras de aplicação universal não seja considerado empecilho a ações unilaterais por certas capitais, beira o absurdo insistir em estratégias bélicas que costumam produzir consequências negativas para quem as empreende. Acreditar hoje que a guerra é a continuação da política por outros meios significa não apenas ignorar a Carta da ONU e as Convenções de Genebra, ou desconsiderar os riscos dos arsenais nucleares, mas se esquecer do fracasso de tentativas de impor estabilidade pela força. O sofrimento de inocentes, o desperdício de recursos, os danos à natureza e a insensatez associados à guerra deveriam provocar pausa para reflexão. Para os que continuam a acreditar no progresso da civilização, o aforismo de Clausewitz há muito deixou de fazer sentido.

*Antonio de Aguiar Patriota, embaixador do Brasil no Reino Unido, foi ministro das Relações Exteriores

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