Trump abala confiança nos EUA ao pressionar Fed
O Globo
Por ora, ele parece ter
desistido de demitir Powell. Mas seus atos revelam desprezo pelo equilíbrio
institucional
A pressão de Donald
Trump sobre o Federal Reserve (Fed), o banco central americano,
tem ganhado contornos preocupantes. Trump não esconde sua intenção de se livrar
do presidente do Fed, Jerome Powell, que ele próprio indicou ao cargo em 2017,
mas que hoje considera “tardio” demais para reduzir os juros. Por lei, ele não
pode demitir Powell, cujo mandato só termina em maio de 2026. Mas alguém com os
instintos autoritários de Trump não se deixaria intimidar por esse tipo de
detalhe.
Ganhou corpo nas hostes trumpistas a ideia de usar como pretexto para a demissão o custo exorbitante da nova sede do Fed, orçada inicialmente em US$ 1,9 bilhão, mas que não sairá por menos de US$ 2,5 bilhões. Depois de uma visita de Trump ao canteiro de obras, parlamentares republicanos decidiram denunciar à Justiça irregularidades atribuídas ao projeto, afirmando que Powell mentiu sobre ele em seu último pronunciamento ao Congresso. Uma demissão antes do fim do mandato seria fato inédito, que por certo despertaria um processo judicial e teria consequência imediata nos mercados.
Por ora, Trump parece ter
desistido da ideia. Talvez porque tenha se aberto outra oportunidade para ele
tentar intervir na política monetária. Pouco mais de uma semana atrás, seis
meses antes de expirar seu mandato, a diretora Adriana Kluger pediu demissão.
Ela era um dos sete integrantes do Comitê Federal de Mercados Abertos (Fomc),
colegiado do Fed que arbitra sobre juros. A renúncia abre a oportunidade de
Trump indicar alguém alinhado com sua visão, que possa eventualmente até
suceder a Powell na presidência.
Seria um caminho sem
solavancos. Mas Trump não tem demonstrado nenhum apreço pela estabilidade
institucional. Ao contrário. Demitiu a chefe do Escritório de Estatísticas do
Trabalho (BLS), Erika McEntarfer, por ter ficado decepcionado com o dado de
criação de empregos em julho (73 mil vagas). Foi um sinal claro de que não
acredita na independência dos órgãos técnicos responsáveis por dados e
políticas públicas. Trump pretende que todos os braços do Estado estejam a
serviço de seus desígnios políticos.
Aplicada ao Fed, tal visão
teria consequências gravíssimas para todo o mundo, com impacto nos títulos da
dívida americana e na cotação do dólar. A Suprema Corte, na decisão que
expandiu os poderes presidenciais sobre as agências estatais, fez ressalvas sobre
o Fed. “O Federal Reserve é uma entidade quase privada, estruturada de modo
singular, que segue uma tradição histórica distinta”, escreveram os juízes ao
autorizar demissões noutros órgãos.
Em qualquer país, decisões
de política monetária precisam ser tomadas com base em critérios técnicos. Há
mérito na defesa de juros mais baixos — a começar pelo próprio dado que revela
arrefecimento na criação de empregos. Mas o Orçamento expansionista que Trump
aprovou no Congresso recomenda cautela. O déficit público americano está em
6,1% do PIB e deverá ultrapassar 7%. A dívida, hoje em cerca de 100% do PIB,
poderá chegar a 127% em 2034, valor alto mesmo para países ricos. Para não
falar no inexorável efeito inflacionário do tarifaço.
Qualquer mudança prematura
na presidência do Fed só traria mais incerteza a um cenário já conturbado. Em
vez de estimular a economia, Trump abalaria ainda mais a confiança nas
instituições americanas. Certamente o efeito seria o oposto do desejado.
Política nacional para a
primeira infância aponta caminho promissor
O Globo
Iniciativa prevê integrar
informações hoje segregadas para garantir desenvolvimento das crianças
A primeira infância é dos
raros assuntos a unir parlamentares de esquerda, centro e direita. Talvez
porque seja defensável de vários pontos de vista. Para os conservadores,
significa cuidado com a família. Para os progressistas, é sinônimo de justiça
social. Para os liberais, um impulso para realização das potencialidades
individuais e ganhos de produtividade. Por isso é bem-vindo o decreto
presidencial que prevê a implementação da Política Nacional Integrada para a
Primeira Infância (Pnipi), cujo objetivo é aumentar a coordenação das ações
voltadas a crianças de zero a 6 anos. A ideia é integrar informações hoje
segregadas em distintos ministérios e secretarias, criando uma espécie de
“governinho.br”.
O projeto prevê criar uma
caderneta digital para cada criança na forma de aplicativo, com informações
sobre saúde, assistência social, desenvolvimento e educação.
Pais, familiares, cuidadores, professores, médicos e funcionários de
ministérios e secretarias terão acesso a todo o histórico de forma prática. “É
um passo no sentido de adotar políticas públicas baseadas em dados”, diz
Priscila Cruz, presidente executiva do Todos pela Educação. “Quanto mais
articuladas forem as ações das esferas federal, estadual e municipal, mais
rápidas e efetivas serão as respostas”, afirma a presidente da Fundação Maria
Cecilia Souto Vidigal, Mariana Luz. A Pnipi foi elaborada com base em relatório
das duas entidades.
O país não parte do zero.
Conta com experiências estaduais e municipais bem avaliadas. Em 2003, o
programa Primeira Infância Melhor foi lançado no Rio Grande do Sul. Quatro anos
depois, Pernambuco criou o Mãe Coruja. Mais recentemente, outros estados, como
Piauí, seguiram o mesmo caminho. Nos municípios, Boa Vista é destaque desde
2013. O trabalho de Recife e Jundiaí também é reconhecido. Com alcance
nacional, o Criança Feliz foi lançado ainda no governo Temer. Apesar dos
resultados positivos desses programas, só uma política nacional integrada como
o Pnipi poderá estender os benefícios a todo o país.
As prioridades não se
resumem à construção de mais creches e investimentos em saneamento ou
habitação. Tão ou mais essencial é capacitar mães, pais, avós, tios ou vizinhos
a brincar e interagir com os pequenos desde que nascem. Uma das barreiras é a
falta de informação. Segundo pesquisa Datafolha, 84% da população ignora que o
período de zero a 6 anos é aquele em que o cérebro mais se desenvolve. Uma
criança pequena que passa boa parte do dia diante de uma tela provavelmente
chegará em desvantagem quando entrar na escola para ser alfabetizada. Falta de
estímulo crônica pode resultar em danos no desenvolvimento com consequências
por toda a vida.
Outro desafio será tirar o decreto do papel. A integração dos dados não tem data certa. Não há garantia de que será feita com urgência, nem se haverá persistência para que crie os ganhos de eficiência esperados. Mas não faltam bons motivos para o governo apressar a implementação do Pnipi.
No combate à
inflação, algum alívio e sinais amarelos
Valor Econômico
É certo que a economia vai desacelerar no resto do ano, mas
talvez não em um grau suficiente para levar o IPCA mais perto da meta e reduzir
a desancoragem das expectativas
Após meses a fio com a inflação
fora do teto da meta de 4,5%, o Banco Central fez uma pausa no ciclo de aperto
monetário para observar os efeitos da dose de juros sobre a economia. Uma
atitude dura se justifica pela resistência à queda dos índices de preços e pela
desancoragem das expectativas. Em uma conjuntura excepcionalmente incerta, em
especial no cenário externo, o BC prefere manter o máximo de cautela, o que não
significa que alguns fatores benéficos à condução da política monetária não
estejam aparecendo aos poucos no horizonte.
O grande fator desorganizador
imediato no cenário externo é a guerra tarifária do presidente Donald Trump,
que nublou também as expectativas sobre como será conduzida a política
monetária americana no curto prazo. Até agora, e mesmo depois que a intenção de
Trump se materializou nas “tarifas recíprocas” no dia 6 de agosto - com taxas
acima das inicialmente imaginadas antes das supostas negociações com os países
-, o dólar tem mostrado estabilidade, com viés de queda. Ela pode se acentuar
se a expectativa de corte de juros em setembro vier.
Não só o câmbio beneficia a redução da
inflação doméstica. As importações, que avançam a um ritmo mais forte que as
vendas externas, dado o dinamismo da economia, se mantinham até julho com
preços em queda em dólar. Em boa parte, isso se deve às compras feitas do
principal parceiro comercial, a China, que, com excesso de produção em vários
setores, tem reduzido os preços de vários bens.
Como consequência, o Índice de
Preços ao Produtor do IBGE caiu 1,25% em junho, o quinto recuo consecutivo. O
Índice de Preços ao Produtor Amplo, que reflete no IGP-DI o comportamento do
atacado, manteve deflação em julho, embora menor que a do mês anterior, de
0,34%. Um ambiente econômico menos aquecido para commodities teve importante
contribuição nesse sentido. O Índice de Commodities Brasil do Banco Central
indicou que no ano até julho os bens agrícolas tiveram redução de 11,4%, os
metais, de 1,13% e energia, de 11,54%. Muito provavelmente, não se assistirá
mais a curto prazo a conjugação, infernal para a inflação, de dólar e
commodities em alta simultaneamente, que levou o índice a disparar muito acima
da meta há pouco tempo.
O Copom registrou os reflexos
destes movimentos, apontando que a inflação dos bens industriais “continuou a
arrefecer no período recente”. Especialmente importante para o IPCA e para a
percepção de inflação, os preços dos alimentos “apresentaram uma dinâmica um
pouco mais fraca que a esperada”.
Outro sinal concreto de futura
desaceleração na economia veio do crédito, “agora com moderação mais nítida”,
segundo o BC. Houve diminuição da concessão de crédito livre, por um lado, e
elevação do “fluxo de crédito negativo” do consumidor, que está pagando mais
dívidas do que contraindo novas obrigações. A dúvida do BC expressa na ata
anterior, sobre se o novo empréstimo consignado para trabalhadores privados
seria um grande fator de impulso creditício, teve uma resposta de curto prazo
negativa. A nova modalidade “tem tido menor impacto do que era esperado por
muitos participantes do mercado”, de acordo com a ata.
Tudo somado, o cenário da inflação continuou mostrando “surpresas baixistas”, o
que para o BC ainda não define o jogo. A encrenca maior para o combate à
inflação continua no setor de serviços. A economia está crescendo acima de seu
potencial, alimentando o emprego e propiciando aumentos reais de salários. Para
o BC, esses aumentos são inflacionários, pois se encontram “consistentemente
acima da produtividade”, uma qualificação nova constante da última ata.
Sustenta esse ganho o “nível historicamente baixo” da taxa de desemprego, que
atingiu, segundo o IBGE, 5,8% no trimestre encerrado em julho, o menor da
série.
Um elo influente negativo para o
combate à inflação é a política fiscal. Novos programas estão sempre em preparo
pelo Planalto, que está em modo eleitoral. Na primeira metade do ano, houve um
impulso fiscal menor. O déficit estrutural primário (que elimina a influência
do ciclo econômico e resultados não recorrentes) diminuiu para -0,5% do PIB no
segundo trimestre (foi de -0,9% no anterior), de acordo com a Instituição
Fiscal Independente do Senado. Ainda há estímulos à economia vindos do governo
federal, e o maior deles, indireto, é a política de aumentos reais do salário
mínimo, que garante reajustes nominais perto de 8% neste e no próximo ano.
Ao ter como horizonte relevante o início de 2027, a política monetária terá de atravessar o ano eleitoral de 2026, quando os ventos políticos possivelmente desfraldarão de novo as velas dos gastos fiscais. É certo que a economia vai desacelerar no resto do ano, mas talvez não em um grau suficiente para levar o IPCA mais perto da meta e reduzir a desancoragem das expectativas - que também tem sua inércia. A interrupção do ciclo de alta é correta, e a cautela é bem-vinda, embora isso signifique manter os juros mais altos em quase 20 anos, com um efeito destruidor no endividamento público.
Licença para negociar
Folha de S. Paulo
- Lula veta trechos perigosos de projeto
ambiental e cede à norma especial de interesse de Alcolumbre
- O licenciamento ambiental especial pode
facilitar a prospecção de petróleo no litoral do Amapá, que enfrenta
dificuldades no Ibama
Na conflagrada conjuntura
política nacional, mostra-se positivo o saldo dos 63
vetos de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) ao projeto de lei 2.159, aprovado
no Congresso. O presidente mostrou alguma abertura para negociação e buscou
evitar as piores consequências da proposta
que flexibiliza o licenciamento ambiental no país.
Destaca-se a decisão de
limitar a inovação contida na licença por adesão e compromisso (LAC) unicamente
a empreendimentos de baixo impacto a ecossistemas. Assim, ficam alijados do
procedimento por autodeclaração projetos de médio potencial poluidor, como
barragens de rejeitos.
Pela proposta original,
deixava de ser obrigatória a consulta a comunidades indígenas e quilombolas
cujos territórios não estivessem ainda homologados ou titulados. Em nome de
acelerar autorizações, seriam punidos os possíveis atingidos que já são vítimas
da morosidade do Estado em sacramentar direitos garantidos na Constituição.
Em franca contradição com a
descabida exigência cartorial, a proposta dispensava solicitantes de licença de
apresentar análise do cadastro ambiental rural (CAR). Esse é o registro em que
ruralistas devem mapear a regularidade ou o passivo ambiental de suas
propriedades.
A medida sempre sofreu
resistência de agropecuaristas, que obtiveram do poder público sucessivos
adiamentos da norma. Um dos vetos presidenciais impediu essa aplicação óbvia de
dois pesos, um que oneraria povos tradicionais e outro que aliviaria proprietários
rurais.
Afastou-se ainda a
transferência aos estados do poder de estabelecer parâmetros e critérios
necessários ao licenciamento.
Seria um incentivo para
governadores rebaixarem exigências, de modo a favorecer empresários
simpatizantes ou a atrair investidores de outras praças, originando regras
díspares e conflitantes com regulamentos federais, terreno fértil para
judicialização.
Entre
ambientalistas causou espécie, porém, a vigência imediata, por medida
provisória, do controvertido licenciamento ambiental especial (LAE). Proposta
pelo presidente do Senado, Davi
Alcolumbre (União Brasil-AP), a modalidade estipula 12 meses para
expedição de licença a empreendimentos declarados estratégicos pelo Conselho de
Governo.
Satisfaz-se, assim, o
interesse de Alcolumbre em facilitar a prospecção de petróleo ao largo da foz
do Amazonas, que enfrenta dificuldades no Ibama. Parece evidente que, no
conselho, as decisões serão mais políticas que técnicas, abrindo um precedente
que decerto não se restringirá à exploração do litoral amapaense.
Compreende-se que Lula precisava
oferecer algo ao Legislativo para ter chance de arrefecer os ânimos exaltados.
Após a deprimente tomada das mesas diretoras da Câmara e do Senado por
arruaceiros, nada garante que eles não se sintam encorajados a derrubar os
vetos de prudência do Planalto.
Ensinamentos do caso Banco
Master
Folha de S. Paulo
- Novas regras do FGC visam conter riscos
à segurança do sistema financeiro; BC precisa fortalecer a supervisão
bancária
- Banco Master captou sem impedimentos
cerca de R$ 60 bi, o que representa quase metade do patrimônio do fundo
No começo deste mês, o
Conselho Monetário Nacional aprovou
mudanças nas regras do Fundo Garantidor de Créditos (FGC), em resposta ao
escândalo envolvendo o Banco Master.
A decisão, liderada pelo Banco Central,
busca mitigar riscos ao sistema financeiro, mas também expõe falhas
regulatórias que permitiram a escalada de práticas arriscadas.
O FGC —associação civil sem
fins lucrativos fundada para proteger correntistas e investidores com até R$
250 mil em caso de falência ou intervenção em instituições financeiras— é um
pilar da segurança do sistema bancário.
Mas
o caso Master revelou como essa garantia pode ser explorada. O banco
captou sem impedimentos cerca de R$ 60 bilhões em Certificados de Depósito
Bancário, o que representa quase metade do patrimônio total do FGC.
Oferecendo remunerações
elevadas, o banco atraía investidores com a promessa de segurança do fundo,
enquanto alocava esses recursos em ativos de alto risco (precatórios,
pré-precatórios e ações de empresas) —que fogem do perfil conservador esperado
de instituições que se beneficiam do suporte do FGC.
Apesar de alertas do
mercado, o BC demorou a agir, permitindo a manipulação de uma brecha
regulatória. Bancos menores se aproveitam do FGC para captar volumes
desproporcionais, aumentando o risco sistêmico.
A falta de uma resposta ágil
expôs o fundo a uma vulnerabilidade potencialmente nefasta, que comprometeria a
capacidade da associação de honrar suas garantias, abalando a confiança em todo
o sistema financeiro.
A nova regulamentação, que
entra em vigor em 1º de junho de 2026, é bem-vinda. Dobra-se a alíquota
adicional de contribuição ao FGC, de 0,01% para 0,02%, no caso de bancos que
ultrapassarem 60% de suas captações com garantia do fundo, reduzindo o limite anterior
de 75%.
Ademais, instituições que
obtiverem acima de dez vezes seu patrimônio líquido com garantia do FGC serão
obrigadas a alocar o excedente em títulos federais, ativos considerados
seguros. Essas medidas aumentam o custo de captações arriscadas e incentivam gestão
mais responsável.
Cerca de 30 bancos serão
afetados pela mudança, dentre os 240 associados ao fundo. Por serem menores,
dependem em maior grau dos serviços do FGC.
De todo modo, o caso Master é um alerta para o futuro. A confiança no sistema financeiro depende de regulação vigilante e proativa. O BC precisa fortalecer sua supervisão para evitar que práticas semelhantes se repitam.
As consequências do
autoritarismo ‘do bem’
O Estado de S. Paulo
Bolsonaro mobiliza multidões
ao capitalizar o ressentimento de muitos brasileiros. É fácil chamá-los de
‘golpistas’; difícil é admitir que abusos em nome da democracia alimentam esse
azedume
As manifestações convocadas
por apoiadores de Jair Bolsonaro no dia 3 passado revelaram, mais uma vez, a
notável resiliência do populismo reacionário no Brasil. Embora envolto em
escândalos e acusado de liderar uma conspiração golpista, o ex-presidente segue
mobilizando parcelas expressivas da opinião pública. Compreender a capacidade
de Bolsonaro de convocar multidões, mesmo submetido a tornozeleira eletrônica e
em meio a uma ação penal no Supremo Tribunal Federal (STF), exige mais do que
sarcasmo ou desprezo. Exige inteligência. Exige, sobretudo, que se investiguem
as causas profundas da permanência desse movimento, que, a despeito de sua
agenda antidemocrática, segue se retroalimentando de ressentimentos reais,
abusos institucionais e frustrações legítimas.
A tragédia da república
brasileira é que seus principais adversários se enxergam como encarnações do
Bem. Em nome da civilização contra a barbárie, justificam-se arbitrariedades.
Em nome da democracia, tolera-se a censura. Em nome da justiça social, contorna-se
a lei. Em nome do combate ao autoritarismo, redobra-se o autoritarismo. É esse
ciclo de descomedimento, intransigência e pretensão ao monopólio da moral que
alimenta, do lado oposto, o mesmo espelho deformado. O Brasil segue refém de
duas formas de radicalismo: uma grotesca, a outra presunçosa. Ambas se enxergam
como o lado certo da História. Ambas agem como se estivessem acima da lei.
Jair Bolsonaro e seus filhos
e aliados responderão, com razão, por tentativa de golpe de Estado e por
mobilizar um governo estrangeiro contra instituições nacionais. Os indícios
reunidos evidenciam que o clã Bolsonaro cruzou linhas vermelhas. Mas também é
indisputável que o STF, notadamente por meio do ministro Alexandre de Moraes,
cruzou inúmeras outras. O Supremo transformou-se em ator político de primeira
ordem, instituiu inquéritos sem objeto definido, decretou prisões preventivas
abusivas, censurou jornalistas e age com tamanha ambivalência hermenêutica que
a interpretação de suas próprias decisões passou a depender do humor de seus
ministros. O dedo do meio de Moraes no camarote de um estádio de futebol resume
o ethos de um STF que confunde coragem com prepotência e
mandou às favas a virtude da prudência.
Essa metamorfose da Corte em
órgão de vanguarda, fiador do governo e promotor de causas identitárias não é
indiferente à polarização política. Ela a inflama. Como também o faz a esquerda
no poder, incapaz de aprender com os erros do passado. O PT, em especial, nunca
fez a autocrítica exigida por sua responsabilidade nos escândalos que solaparam
a credibilidade do sistema político. Sua resposta à oposição tem sido a de
escorar-se no Supremo e apostar no discurso que opõe ricos e pobres. Sua visão
de mundo permanece calcificada numa moral binária, que reduz adversários e
dissidentes a “fascistas” e inviabiliza esforços de conciliação.
Parte considerável das
elites intelectuais também perdeu o senso de proporção. A hegemonia
progressista nas academias, redações e classe artística multiplica
manifestações de escândalo moral contra críticos conservadores, mas é
permissiva com os abusos cometidos por aliados. Cultiva uma retórica de
superioridade moral que transita entre o iluminismo autoproclamado e o escracho
público. Com isso, não apenas se aliena de amplas parcelas da população, como
contribui para desmoralizar a indignação legítima, franqueando munição a quem
sabe instrumentalizar ressentimentos.
Não se combate o populismo
reacionário com populismo judicial ou messianismo progressista. Nenhum excesso
de um lado justifica os do outro. A democracia exige o fim dos ciclos de
vingança. Um novo pacto institucional, fundado na responsabilidade recíproca,
na pluralidade e no respeito à lei, é condição para restaurar a confiança dos
cidadãos na República. O combate ao golpismo deve ser firme, mas também
exemplar. Não só na pena, mas na forma. Porque é a forma, no fim das contas,
que distingue a justiça da revanche.
Bem-vindos à terceira era
nuclear
O Estado de S. Paulo
Arsenais se modernizam,
tratados se desfazem, alianças se desgastam – e tabu nuclear desmorona. 80 anos
após Hiroshima e Nagasaki, pesadelo de Oppenheimer parece mais real do que
nunca
O aniversário de 80 anos do
bombardeio de Hiroshima e Nagasaki coincidiu com um gesto característico da
nova era nuclear: o presidente dos EUA, Donald Trump, ordenou o deslocamento de
submarinos atômicos para intimidar Moscou após uma provocação pelas redes
sociais do conselheiro de Segurança russo Dmitri Medvedev. O episódio, grotesco
na forma e sinistro no conteúdo, é mais do que uma anedota – é um sintoma. A
sombra do cogumelo atômico voltou a pairar sobre a política global.
A terceira era nuclear não
se assemelha nem à rigidez bipolar da guerra fria nem ao otimismo controlado do
pós-guerra fria. É uma era de multipolaridade instável, de arsenais em
expansão, de alianças voláteis e de líderes dispostos a trivializar a ameaça de
destruição mútua. Desde Nagasaki, há oito décadas, jamais uma bomba nuclear foi
usada em conflito. Mas a sustentação dessa marca histórica parece depender cada
vez menos da razão e cada vez mais da sorte.
O regime de não
proliferação, alicerçado no tratado de 1968 (TNP), vive sua crise mais
profunda. O exemplo da Ucrânia é desolador: após o fim da URSS, o país assinou
o Memorando de Budapeste, pelo qual renunciava ao terceiro maior arsenal do
planeta em troca de garantias de segurança, mas acabou invadido pela Rússia –
signatária do memorando –, ameaçada com armas atômicas e abandonada pelos
demais parceiros do acordo, EUA e Reino Unido. A mensagem parece incontornável:
quem entrega sua bomba perde sua proteção.
Enquanto isso, os mecanismos
formais de controle – como o tratado New Start entre Rússia e
EUA – estão moribundos. A Rússia suspendeu unilateralmente suas obrigações. A
China, antes defensora da “dissuasão mínima”, agora projeta um arsenal de até
1,5 mil ogivas. Os EUA, por sua vez, modernizam sua tríade nuclear com bombardeiros
B-21, submarinos Columbia e mísseis ICBMs Sentinel, ao custo de centenas de
bilhões de dólares. Trump cogita o rearmamento com ogivas atômicas armazenadas
e a retomada de testes nucleares. É a lógica da dissuasão convertida em
exibicionismo bélico.
O resultado é uma corrida
armamentista simultânea e assimétrica. A Coreia do Norte intensifica seus
testes, o Irã ultrapassou o limiar técnico, e potências regionais como a Arábia
Saudita e a Coreia do Sul flertam com a ideia de desenvolver seus arsenais.
Enquanto crescem os atritos entre Índia e Paquistão, até a Alemanha e a
Polônia, sob o impacto da guerra na Ucrânia, voltaram a debater a “soberania
nuclear” – expressão há pouco impensável na política europeia.
O colapso da confiança na
dissuasão estendida dos EUA alimenta esse impulso. A instabilidade
institucional americana – agora agravada por um presidente que flerta com o
expansionismo e intervenções autoritárias – mina o principal pilar do regime de
contenção nuclear: a garantia de segurança coletiva.
Os riscos não são apenas
estratégicos. São existenciais. Modelos científicos apontam que uma guerra
nuclear entre grandes potências geraria um “inverno nuclear”, com colapso
climático e fome global. Simulações como a Nuclear Football mostram
que a decisão de usar uma arma atômica pode depender de poucos minutos – e de
impulsos irracionais. A lógica da dissuasão, se sempre foi frágil, hoje parece
uma loteria intercontinental.
Há propostas concretas: a
retomada de canais de comunicação entre potências, o fortalecimento da Agência
Internacional de Energia Atômica, o veto explícito ao enriquecimento e
reprocessamento em zonas de risco e a imposição de sanções automáticas a Estados
que saem do TNP após violá-lo. Mas falta o essencial: vontade política.
Os ponteiros do Relógio do
Juízo Final avançam – e a meia-noite não costuma esperar. O mundo já não pode
contar com o peso moral da memória. Os hibakusha – os
sobreviventes de Hiroshima e Nagasaki – estão morrendo, e sua voz – que por
décadas ajudou a afastar o horror atômico – se apaga. Resta o imperativo ético
e pragmático: impedir que a “profecia de Oppenheimer” – o pressentimento de que
a humanidade criara seu próprio aniquilador – se cumpra. Pois, se a comunidade
das nações falhar em conter a si mesma, a próxima Hiroshima não será mais um
alerta. Será o início do fim.
A expansão de Congonhas
O Estado de S. Paulo
Concessionária prevê voos
internacionais, mas falta provar a conveniência da proposta
Responsável pela operação do
Aeroporto de Congonhas, na zona sul de São Paulo, a concessionária Aena acabou
de entregar um novo terminal de embarque remoto, com 3.300 metros quadrados,
ante os 1.400 metros quadrados do anterior, mais espaçamento entre os portões e
mais opções de alimentação. Dessa sala, os viajantes vão pegar os ônibus para
se dirigirem aos aviões que os esperam nos pátios. Trata-se de uma intervenção
temporária enquanto a empresa dá andamento às obras de expansão que já levam a
Aena a fazer previsões bastante ambiciosas para Congonhas, como a retomada da
aviação executiva internacional, já a partir de 2026, e de voos comerciais para
países da América do Sul, em 2028.
Essa projeção da
concessionária que em 2023 assumiu Congonhas, antes administrado pela
ineficiente Infraero, deve-se aos investimentos de R$ 2,4 bilhões previstos
para melhorar o aeroporto. O plano da Aena é aumentar de 12 para 19 o número de
pontes de embarque, chamadas de fingers, e dispor, ao todo, de 37 portões de
embarque, ante os 30 atuais. Com isso, após a conclusão de todas as obras, será
possível a movimentação de 29 milhões de viajantes, um aumento de cerca de 6
milhões em relação ao verificado no ano passado. Mas, em que pese o plano de
investimento, a dimensão desses números deveria acender o alerta em face do
histórico de Congonhas.
Em 2007, o aeroporto foi
cenário de um acidente com um avião da TAM que deixou 199 mortos e levou à
redução de sua operação, entre outras medidas, para aumentar a segurança. Após
essa tragédia, os chamados slots, os movimentos de aviões na pista para o pouso
e a decolagem, foram diminuídos de 44 para 33 por hora. Porém, com o passar dos
anos, o que se viu foi um contínuo afrouxamento das regras, até que, em 2022,
pouco antes da privatização, Congonhas voltou a operar com o mesmo número de
slots da época do acidente.
Ademais, é sempre bom
lembrar que em 1985 os voos internacionais foram transferidos de Congonhas para
o Aeroporto Internacional de Guarulhos, recém-inaugurado. Hoje, não há
indicativos de que Guarulhos não atenda a contento os voos internacionais nem
de que a capital demande conexões de sua área central para cidades como Buenos
Aires, Montevidéu ou Santiago. Falta saber ainda se iniciativas como essa não
poderão prejudicar o Aeroporto de Guarulhos, vindo a provocar, a exemplo do que
ocorreu entre o Santos Dumont e o Galeão, no Rio de Janeiro, disputas
deletérias por operações.
As autoridades públicas, como se sabe, mal foram consultadas para averiguar a pertinência e a conveniência de voos internacionais em Congonhas. Essa ideia acarretará, por óbvio, gastos públicos com infraestrutura de Polícia Federal, Receita Federal e Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), entre outros. Por fim, mas não menos importante, a retomada de operações para o exterior em Congonhas demandará diálogo com a cidade e seus cidadãos, sobretudo os vizinhos do aeroporto, os paulistanos mais impactados. Por tudo isso, apesar de tanta euforia, recomenda-se mais cautela e prudência.
Saúde no Brasil e o cuidado
desde o nascimento
Correio Braziliense
A OMS considera o leite
materno um "alimento de ouro" e a ANS define a amamentação como
primordial
Neste mês, o Brasil
concentra esforços na conscientização sobre a importância do aleitamento
materno. Instituído em abril de 2017 pela Lei Federal nº 13.345, o Agosto
Dourado engloba ações de incentivo, apoio e proteção à amamentação.
Maternidades e organizações usam o marco no calendário para reforçar esse ato
que, além de ser um direito, é uma decisão estratégica de saúde pública. Mas as
campanhas, sozinhas, não solucionam os desafios, que, infelizmente,
persistem.
Pelo país, a
responsabilidade compartilhada da sociedade ainda tem de ser perseguida e os
governos precisam promover mais o incentivo à prática. De acordo com o
relatório do Estudo Nacional de Alimentação e Nutrição Infantil (Enani) de
2024, a taxa de aleitamento materno exclusivo atingiu 45,8% entre crianças
menores de 6 meses — número bem abaixo da meta de 70% recomendada na Agenda
2030 da Organização Mundial da Saúde (OMS) e que o Brasil quer alcançar até lá.
A OMS considera o leite
materno um "alimento de ouro" e, na mesma linha, a Agência Nacional
de Saúde Suplementar (ANS) define o ato como primordial por suas vantagens
nutricionais e por possuir anticorpos, favorecendo a prevenção de infecções, alergias,
diarreia, obesidade e muitas doenças. Segundo o Ministério da Saúde, amamentar
é essencial também para a mulher, pois reduz as chances de sangramento
pós-parto, câncer de mama e de ovário, diabetes e infarto, entre outros pontos
favoráveis.
Porém, a despeito dos
benefícios evidentes e até mesmo da legislação, o cenário brasileiro indica que
faltam redes de apoio contínuas e eficazes para que a prática se estabeleça
amplamente. O artigo 396 da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) garante à
mãe dois descansos especiais de meia hora durante a jornada, sem desconto no
salário, para amamentar o bebê até os seis meses — esse período pode,
inclusive, ser ampliado mediante recomendação médica. Mas a realidade das
lactantes encontra diversas barreiras, algumas delas culturais. Nesse quesito,
desmistificar a ideia de que a amamentação deve ficar restrita ao espaço
privado é urgente. O ato em público é garantido, configura respeito e qualquer
constrangimento deve ser considerado discriminatório — o que se enquadra em
responsabilização civil.
O aleitamento materno é um direito social, de dupla dimensão: cuidado e saúde. Mas essa pauta coloca desafios que exigem envolvimento e compromisso coletivo para serem vencidos. A amamentação proporciona um futuro mais promissor para as crianças, diminui gastos com enfermidades e estimula o desenvolvimento cognitivo, além de reduzir o impacto ambiental da alimentação artificial. Estender para os demais meses a atenção dispensada ao tema durante o Agosto Dourado é fundamental. O país - que já mostrou sua habilidade para unir conhecimento científico, gestão e mobilização social em defesa do bem-estar - precisa investir na amamentação. Abraçar essa prática é assegurar um direito vital capaz de fazer a diferença no presente e no futuro.
Vetos de Lula: oportunidade
para debate sério sobre licenciamento ambiental
O Povo (CE)
O Governo federal terminou a
semana passada vetando 63 dos 400 dispositivos do projeto que institui a Lei
Geral do Licenciamento Ambiental (LGLA), aprovado pela Câmara na madrugada de
17 de julho. O presidente envia de volta ao Legislativo um novo Projeto de Lei
(PL) com redações ajustadas em pontos essenciais.
Lula foi pressionado por
aliados, movimentos sociais e cientistas para vetar integralmente o texto, que
ficou conhecido como "PL da Devastação". O petista, parece, avaliou
que a decisão minaria mais ainda a relação com o Congresso e optou pelo caminho
com maior probabilidade a pacificar entendimentos divergentes.
Existirá agora, ao analisar
os vetos presidenciais, disposição parlamentar a uma discussão mais séria do
que a que marcou a etapa anterior? A Constituição Federal tem a proteção
ambiental como clara prioridade, impondo-a como responsabilidade de todos.
O posicionamento do
Executivo há de ser encarado como essencial ao reforçar os pertinentes
questionamentos contra o projeto. É inegável a importância da LGLA para unir em
um marco regulatório único normas que hoje estão dispersas, evitando lacunas e
insegurança jurídica. Ao mesmo tempo, são essenciais os olhares atentos e as
objeções a qualquer exacerbação ou brecha que leve à destruição do meio
ambiente — e do futuro.
"Que esse diálogo
constante com o Congresso Nacional possa nos levar a algo em benefício da
proteção ambiental, do desenvolvimento sustentável, da proteção dos povos e
comunidades tradicionais, e que o Brasil possa inaugurar um novo ciclo de
prosperidade, onde a economia não brigue com a ecologia, mas façam parte da
mesma equação", afirmou Marina Silva, ministra do Meio Ambiente e Mudança
do Clima, na coletiva de imprensa que anunciou os vetos na tarde de
sexta-feira, 8.
Em resposta, organizações se
manifestaram nas horas seguintes. A SOS Mata Atlântica valorizou os vetos, em
especial o que impede a retirada do regime de proteção especial ao bioma, e
reforçou a importância de manter a mobilização diante dos parlamentares.
O WWF Brasil alerta que
"a sanção parcial do PL ocorre em um momento decisivo para a agenda
ambiental e climática do País". Enfatiza que, às vésperas da COP 30 no
Brasil, "o enfraquecimento do licenciamento ambiental envia sinais
preocupantes à comunidade internacional, aos parceiros comerciais e às
instituições financeiras que exigem o cumprimento de salvaguardas
socioambientais como condição para o estabelecimento de acordos e
investimentos".
O Congresso tem 30 dias corridos para analisar o veto de Lula. A derrubada de um veto exige maioria absoluta e precisa ocorrer nas duas Casas, o equivalente a 257 votos dos deputados e 41 dos senadores. Como temos visto, nossos parlamentares vivem muitas divergências; nesse caso, elas são esperadas e necessárias.
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