Folha de S. Paulo
Extrema direita precisa
inverter o sentido de coisas e palavras para se manter no poder
Outro dia ouvi que o único
erro de Eduardo
Bolsonaro foi não ter pedido a Trump para deixar de fora o nome de sua
família na punição ao Brasil. Tudo bem que taxista não conta, mas é mau sinal
que a esta altura chamar os Bolsonaro de câncer, neoplasia social, soe pueril e
inócuo, como me dei conta ao responder. Segundo pesquisa do Datafolha, 46%
dos brasileiros são contra a condenação do ex-presidente.
Contra a Justiça brasileira, Bolsonaro diz que só obedece à lei de Deus —o seu, é claro, como sempre. Vale-se da versatilidade da escusa que lhe permitiu cometer atos gravíssimos aos olhos de qualquer deus, incluindo o que ele costuma chamar de seu, para seguir bravateando como se não fosse réu.
Na hipótese benigna (para
ficar na metáfora médica), os Bolsonaro seriam apenas uma trupe de meliantes
comandados por um arruaceiro irresponsável, que encenaram o maior engodo no
qual este país já caiu, a esparrela do "Brasil é o meu partido", desmascarada
por eles mesmos, com as cores da bandeira americana, no jogo arriscado e inepto
de sua sobrevivência. O difícil é entender como alguém em condições cognitivas
normais —e de índole autodeclarada patriótica— pode continuar acreditando nisso
se não for de má-fé.
A explicação é também um
alívio, já que aponta para o caso americano. Não somos os únicos idiotas.
Tentando se equilibrar nas cordas de um escândalo insuflado pelos próprios
correligionários, Trump nega a existência da lista que prometera revelar, se
eleito, com o nome dos clientes de um esquema de pedofilia comandado por Jeffrey
Epstein, que teria se suicidado na prisão, esperando julgamento.
Uma legião de eleitores
inflamados do Maga conta com a lista para confirmar suas teorias conspiratórias
sobre crimes hediondos cometidos pela elite liberal, democratas e afins, almas
corrompidas do sistema demoníaco, sem atinar para o fato de Trump (que, eleito,
passou a atribuir a invenção da lista a um embuste da oposição) ser ele próprio
um predador sexual, ex-amigo íntimo de Epstein.
Para chegar ao poder e aí se
manter, a extrema direita precisa inverter o sentido das coisas e das palavras,
na maior cara de pau. Aqui, chama de corajoso o malandro que chora como vítima
quando é pego em flagrante, foge assim que possível e depois ri à socapa só de
pensar no próximo golpe.
Em nome da democracia e do
mundo livre, hoje o país da liberdade de expressão persegue universidades,
prende, processa e/ou deporta indivíduos cujas ideias não correspondem aos
interesses do projeto autocrático (a começar por estudantes
acusados de antissemitismo por denunciar o escândalo do genocídio
promovido por Israel em Gaza). E ainda taxa de ditatoriais os países que tentam
resistir, pela lei, à imposição de regras comerciais arbitrárias, no vácuo do
desmanche estratégico dos órgãos jurídicos multilaterais.
Não é nenhuma surpresa que
os Bolsonaro incorporem o discurso invertido (de que a liberdade é um mundo sem
justiça e sem lei) em benefício próprio e em detrimento do país. Para eles,
salvar a pele equivale a desmontar as instituições. Corresponde ao histórico e
ao entendimento de mundo de um homem cuja vida pública começou, ainda no
Exército, com um plano de atentado a bomba para aumentar seu salário.
O que não faz sentido é que
a inversão tenha escancarado a porteira do oportunismo (ou da metástase), a
ponto de levar políticos e cidadãos a abraçar os interesses imperialistas e
predatórios de uma autocracia estrangeira. Nos Estados Unidos, Eduardo Bolsonaro
estaria sujeito às penas cabíveis por traição.
Em meio à ferocidade de uma guerra financeira e tecnológica, em breve talvez também física, cujo horizonte é o controle da inteligência artificial e da indústria bélica de última geração, dependentes de minérios de que o país dispõe, ninguém precisa de gente sem estratégia política e visão de futuro, vestindo a camisa ou o boné do adversário na mesa de negociação.
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