segunda-feira, 11 de agosto de 2025

Para Bolsonaro, salvar a pele equivale a desmontar instituições - Bernardo Carvalho

Folha de S. Paulo

Extrema direita precisa inverter o sentido de coisas e palavras para se manter no poder

Outro dia ouvi que o único erro de Eduardo Bolsonaro foi não ter pedido a Trump para deixar de fora o nome de sua família na punição ao Brasil. Tudo bem que taxista não conta, mas é mau sinal que a esta altura chamar os Bolsonaro de câncer, neoplasia social, soe pueril e inócuo, como me dei conta ao responder. Segundo pesquisa do Datafolha, 46% dos brasileiros são contra a condenação do ex-presidente.

Contra a Justiça brasileira, Bolsonaro diz que só obedece à lei de Deus —o seu, é claro, como sempre. Vale-se da versatilidade da escusa que lhe permitiu cometer atos gravíssimos aos olhos de qualquer deus, incluindo o que ele costuma chamar de seu, para seguir bravateando como se não fosse réu.

Na hipótese benigna (para ficar na metáfora médica), os Bolsonaro seriam apenas uma trupe de meliantes comandados por um arruaceiro irresponsável, que encenaram o maior engodo no qual este país já caiu, a esparrela do "Brasil é o meu partido", desmascarada por eles mesmos, com as cores da bandeira americana, no jogo arriscado e inepto de sua sobrevivência. O difícil é entender como alguém em condições cognitivas normais —e de índole autodeclarada patriótica— pode continuar acreditando nisso se não for de má-fé.

A explicação é também um alívio, já que aponta para o caso americano. Não somos os únicos idiotas. Tentando se equilibrar nas cordas de um escândalo insuflado pelos próprios correligionários, Trump nega a existência da lista que prometera revelar, se eleito, com o nome dos clientes de um esquema de pedofilia comandado por Jeffrey Epstein, que teria se suicidado na prisão, esperando julgamento.

Uma legião de eleitores inflamados do Maga conta com a lista para confirmar suas teorias conspiratórias sobre crimes hediondos cometidos pela elite liberal, democratas e afins, almas corrompidas do sistema demoníaco, sem atinar para o fato de Trump (que, eleito, passou a atribuir a invenção da lista a um embuste da oposição) ser ele próprio um predador sexual, ex-amigo íntimo de Epstein.

Para chegar ao poder e aí se manter, a extrema direita precisa inverter o sentido das coisas e das palavras, na maior cara de pau. Aqui, chama de corajoso o malandro que chora como vítima quando é pego em flagrante, foge assim que possível e depois ri à socapa só de pensar no próximo golpe.

Em nome da democracia e do mundo livre, hoje o país da liberdade de expressão persegue universidades, prende, processa e/ou deporta indivíduos cujas ideias não correspondem aos interesses do projeto autocrático (a começar por estudantes acusados de antissemitismo por denunciar o escândalo do genocídio promovido por Israel em Gaza). E ainda taxa de ditatoriais os países que tentam resistir, pela lei, à imposição de regras comerciais arbitrárias, no vácuo do desmanche estratégico dos órgãos jurídicos multilaterais.

Não é nenhuma surpresa que os Bolsonaro incorporem o discurso invertido (de que a liberdade é um mundo sem justiça e sem lei) em benefício próprio e em detrimento do país. Para eles, salvar a pele equivale a desmontar as instituições. Corresponde ao histórico e ao entendimento de mundo de um homem cuja vida pública começou, ainda no Exército, com um plano de atentado a bomba para aumentar seu salário.

O que não faz sentido é que a inversão tenha escancarado a porteira do oportunismo (ou da metástase), a ponto de levar políticos e cidadãos a abraçar os interesses imperialistas e predatórios de uma autocracia estrangeira. Nos Estados Unidos, Eduardo Bolsonaro estaria sujeito às penas cabíveis por traição.

Em meio à ferocidade de uma guerra financeira e tecnológica, em breve talvez também física, cujo horizonte é o controle da inteligência artificial e da indústria bélica de última geração, dependentes de minérios de que o país dispõe, ninguém precisa de gente sem estratégia política e visão de futuro, vestindo a camisa ou o boné do adversário na mesa de negociação.

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