terça-feira, 26 de agosto de 2025

O que a mídia pensa | Editoriais / Opiniões

Ferrogrão precisa sair do papel

O Globo

Preocupação ambiental é pertinente, mas país não pode abrir mão de ampliar escoamento da produção

O Brasil deverá fechar o ano com nova safra recorde de grãos. Confirmada a estimativa, a produção crescerá 16% e atingirá 340,5 milhões de toneladas. Maior produtor nacional, Mato Grosso é o dínamo do setor. Se fosse um país, seria o quarto no ranking global de soja e algodão. Da porteira para dentro, reinam empreendedorismo e tecnologia. Mas falta transporte eficiente para escoar a produção. A maior parte dos grãos mato-grossenses é exportada por portos do Sudeste e do Sul. Para mudar essa situação, o governo federal deveria acelerar a concessão da Ferrogrão, ferrovia com quase mil quilômetros entre Sinop (MT) e Itaituba (PA). A ideia é construir a estrada de ferro ao lado da rodovia BR-163, já existente. Previsto no Novo PAC, o projeto está parado.

Lançado em 2012, ele tem sido pródigo em atrasos. A primeira versão do estudo de viabilidade foi apresentada em 2015. Houve quatro atualizações até o material ser enviado para a análise do Tribunal de Contas da União (TCU) em 2020, ano em que teve início o processo de licenciamento ambiental. Depois de questionamento do PSOL sobre a destinação de parte do Parque Nacional do Jamanxim (PA) à obra, o Supremo Tribunal Federal (STF) suspendeu tudo em 2021, para em seguida autorizar a retomada de estudos. De forma didática, a Ferrogrão ilustra a dificuldade de tirar do papel obras de infraestrutura no Brasil.

O processo no Supremo resume as críticas dos ambientalistas. Para eles, a construção da ferrovia ao lado da BR-163 acelerará a destruição do parque nacional e ameaçará povos indígenas. A rodovia foi construída antes da criação do Jamanxim, mas somente em 2017 uma lei estabeleceu sua área de domínio. Na ação, o PSOL questiona a constitucionalidade da legislação. Os defensores da Ferrogrão dizem que a faixa de domínio da rodovia equivale a 0,1% da área total do parque, num trecho inferior a 100 quilômetros. Lembram ainda que a rota prevista para a ferrovia não atravessa nenhum território indígena.

Entre os opositores da Ferrogrão, há também quem acuse o projeto de ser caro. Estudo do grupo de pesquisadores Amazônia 2030 sustenta que os números sobre a viabilidade econômica apresentados ao TCU estão incorretos. “Estimamos que o retorno financeiro do projeto baseado em premissas realistas seja sete vezes menor”, diz o documento. Pela estimativa do estudo, o clima e a geologia da região tornarão insuficiente a tarifa projetada para garantir a operação da ferrovia, forçando o governo a conceder subsídios. Tal ponto de vista ignora que a extensão da BR-163 é conhecida, em seus aspectos geológicos e climáticos, há cerca de 50 anos. “Caso houvesse regiões sujeitas a eventos naturais como alagamentos, especialmente no entorno do Parque Nacional do Jamanxim, o traçado da rodovia teria sido revisado ao longo de décadas de operação”, dizem técnicos envolvidos no projeto.

É evidente que as preocupações ambientais precisam ser examinadas e, quando necessário, os impactos negativos da obra devem ser mitigados. Mas as objeções não são empecilho a que se conclua a ferrovia. Ela baixará o custo do transporte, diminuirá o fluxo de caminhões na BR-163 e evitará a emissão de toneladas de gás carbônico. Não dá para abrir mão de ampliar a capacidade de escoamento num momento em que a produção agrícola é crítica para o desenvolvimento do país.

Justiça acertou ao mandar religar radares nas rodovias federais

O Globo

Orçamento apertado não é desculpa para pôr em risco a segurança de quem trafega pelas estradas

Fez bem a Justiça do Distrito Federal em mandar o Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes (Dnit) religar os radares eletrônicos nas rodovias federais. Os equipamentos, instalados ao longo de mais de 40 mil quilômetros de estradas, haviam sido desativados porque o governo federal alegou não ter dinheiro no Orçamento para renovar contratos. A segurança de motoristas e passageiros não pode ficar refém da inépcia do Dnit.

Na decisão, de 18 de agosto, a juíza substituta Diana Wanderlei, da 5ª Vara Federal de Brasília, afirma que, ao limitar as dotações orçamentárias do Dnit, o governo federal “inviabilizou a materialidade da prestação de serviço primário inegociável”, expondo a vida à alta velocidade de “motoristas infratores contumazes”. Diz ainda que o cenário de “apagão” nas rodovias federais contribui para aumento de velocidade não permitido. A magistrada ressalta também que radares críticos deixaram de funcionar plenamente. O desligamento, diz ela, desrespeitou o Acordo Nacional dos Radares, firmado após ações contra a retirada deles das rodovias federais durante o governo Jair Bolsonaro. Depois de estudos sobre acidentes e mortalidade, ficou estabelecido que seriam mantidos nos locais de risco médio, alto e altíssimo.

O governo alega que, para manter o sistema nacional de radares, são necessários R$ 364 milhões, mas o Orçamento de 2025 prevê apenas R$ 43,4 milhões. Ora, não se pode pôr fim ao funcionamento de radares nas rodovias federais simplesmente porque o dinheiro acabou. O episódio expõe inépcia não só para gerir o Orçamento, mas também para gerenciar necessidades básicas de infraestrutura, um dos setores mais punidos pelo crescimento de despesas obrigatórias que o governo se recusa a rever.

Os radares eletrônicos são fundamentais para a segurança nas estradas. Seu objetivo é reduzir a velocidade e melhorar a fiscalização nos pontos com maior número de acidentes. Segundo o Dnit, entre 2010 e 2016 eles contribuíram para redução de 47% nos acidentes e de 25% nas mortes em estradas federais. Além disso, auxiliam em investigações de crimes como roubo e furto de cargas ou sequestros.

O governo também arrecada com as multas aplicadas. Com radares desligados, esses recursos deixam de entrar. De acordo com dados que constam da decisão, os radares proporcionam arrecadação de mais de R$ 1 bilhão por ano, e o governo federal fica com cerca de R$ 600 milhões.

O Dnit afirma já ter ordenado a reativação dos radares em todo o país. Era o mínimo a fazer diante da decisão da Justiça e do Acordo dos Radares. Mas preocupa que decisões com impacto na segurança dos cidadãos sejam tomadas ao sabor de limitações orçamentárias. Essa loteria perversa é resultado de um governo que não se preocupa com o controle de gastos. Acaba ficando sem dinheiro para bancar compromissos essenciais, que ele próprio assumiu.

Capital privado é essencial ao financiamento climático

Valor Econômico

É preciso construir um arcabouço regulatório que dêsegurança ao investidor, com riscos e prazos adequados

Nove meses após o fim da COP29, a Conferência do Clima realizada em Baku, no Azerbaijão, os piores temores estão se confirmando. A chamada COP das Finanças fracassou em um de seus principais objetivos: conseguir que as nações comprometam recursos para o financiamento climático à altura dos desafios que já estão sendo colocados.

No seu encerramento, a COP29 fechou o acordo em que os países ricos aceitaram repassar para as nações em desenvolvimento US$ 300 bilhões por ano até 2035 para enfrentar os problemas climáticos. O valor ficou acima dos US$ 250 bilhões que constavam de rascunho inicial, mas muito abaixo do US$ 1,3 trilhão considerado necessário por ambientalistas e cientistas para lidar com os eventos climáticos extremos que assolam o planeta.

Na realidade, os US$ 300 bilhões não saíram do papel assim como os valores prometidos em outras COPs. O tema será tratado em um relatório dos presidentes da COP29, Mukhtar Babaiev, e da COP30, o brasileiro André Corrêa do Lago, a ser apresentado em outubro. A promessa é ter um relatório minucioso sobre o caminho para o mundo chegar a US$ 1,3 trilhão. Embora o dinheiro para combater o aquecimento global não conste da agenda oficial da COP30, é praticamente consenso que a reunião de Belém não poderá virar as costas para o desafio de avançar na solução desse problema, que está desviando a atenção de outros assuntos igualmente importantes.

O atual contexto geopolítico confirmou as expectativas pessimistas que emergiram durante a COP29. Se Washington, mesmo sob a direção do democrata Joe Biden, não estava colaborando com o financiamento climático por restrições orçamentárias, não se poderia esperar que o presidente republicano Donald Trump, um negacionista, sequer se comprometesse em ajudar.

A China, maior emissora atual dos gases de efeito estufa, manifesta boa vontade, mas se alinha entre as nações em desenvolvimento e defende que sobre os países ricos recaia a maior carga financeira. A União Europeia não quer carregar o fardo sozinha e está mais preocupada com a segurança regional. Em 2024, o mundo destinou US$ 2,7 trilhões a armamentos, o dobro do que se deseja para combater o aquecimento global.

Do terceiro seminário do projeto “COP30 Amazônia”, iniciativa dos jornais Valor e “O Globo” e da rádio CBN, várias propostas e experiências emergiram. Uma das principais conclusões é a necessidade de participação do setor privado para reunir os recursos necessários.

Para atrair a iniciativa privada, um dos fatores é a escala dos projetos, segundo a International Finance Corporation (IFC), ligada ao Banco Mundial. A IFC participa de um programa de financiamento para agricultura sustentável e de emissões de títulos para financiar a preservação da biodiversidade na Colômbia, mas que são considerados pequenos pelo investidor privado. O Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) tem programas de troca de dívida por projetos verdes, e contratos com cláusulas que permitem a suspensão dos pagamentos na ocorrência de eventos climáticos.

Dois programas do BID desenhados para atrair o capital privado estão em discussão para serem levadas a Belém. Um deles é o Reinveste Mais, que prevê a compra de carteiras de projetos verdes existentes e reestruturação, com inclusão de garantias. O outro é o Colabora, que busca atrair investidores de private equity, mais dispostos a riscos.

Em linha semelhante, o governo brasileiro lançou no ano passado o Eco Invest, para levantar capital privado para projetos sustentáveis, comparado a uma Parceria Público-Privada (PPP) entre o governo e o setor financeiro. O Eco Invest já movimentou R$ 24,1 bilhões em dois leilões e tem outros dois programados até a COP30. Os primeiros foram mais tradicionais, e a intenção, agora, é atrair o private equity e oferecer proteção cambial para o capital estrangeiro. O desenvolvimento do mercado de carbono é outro canal.

Em artigo no Valor (1/8) em que apontam o mercado de capitais como financiador da descarbonização, Leonardo Pereira, ex-presidente da CVM, e Caio de Oliveira, analista sênior na OCDE, trazem números que mostram a insuficiência dos recursos públicos para financiar a transição energética. Estudo da OCDE concluiu que se contar apenas com recursos públicos, a China conseguirá se adequar ao Acordo de Paris até 2028. Já as economias avançadas só atingiriam esse objetivo em 2041; e os países em desenvolvimento, em 2050.

A participação de bancos de desenvolvimento e a formulação de programas de governo podem abrir caminho para a participação do capital financeiro e do mercado de capitais no investimento ainda dos projetos ambientais. Para isso é primordial é a existência de um arcabouço regulatório que dê segurança ao investidor, com riscos e prazos adequados, garantias de rastreabilidade da produção para evitar a destruição de biomas e, primordial, um ambiente macroeconômico favorável.

Poder público quer ignorar dívidas com cidadãos

Folha de S. Paulo

PEC desobriga estados e municípios de quitar precatórios até 2029; União continua com tratamento especial

Trata-se de artifício para adiar ajustes inescapáveis. Precatórios alimentam a expansão da dívida pública e precisam caber no Orçamento

Precatórios são pagamentos devidos pelos três níveis de governo a cidadãos, empresas, entidades e órgãos, estabelecidos por decisões judiciais definitivas, após longos processos. O poder público brasileiro, no entanto, sabota das mais variadas maneiras o cumprimento dessas obrigações —e mais uma investida está a caminho.

Por uma combinação de interesses nada edificantes, avança no Congresso Nacional uma proposta de emenda constitucional que muda regras relativas aos precatórios para União, estados e municípios. Perde, mais uma vez, quem aguarda por anos ou décadas a materialização de um direito buscado na Justiça.

A PEC 66/2023, aprovada pela Câmara dos Deputados e já votada em primeiro turno no Senado, foi concebida para aliviar o caixa das prefeituras. Como de hábito, os parlamentares ampliaram o escopo do texto movidos a lobbies dos entes federativos.

Em sua versão mais recente, a PEC desobriga estados e municípios de quitar seu estoque de precatórios até o final de 2029, conforme estabeleceu regra de 2021. A esse respeito, uma cronologia dos prazos fixados dá ideia da desfaçatez com que cidadãos credores do Estado são tratados.

A Constituição de 1988 determinou que os pagamentos deveriam ser concluídos em oito anos; em 2000, foram concedidos mais dez anos; em 2009, mais 15, com opção de prazo indeterminado condicionado a desembolsos anuais mínimos; em 2016, mais quatro anos; em 2017, prazo até 2024; em 2021, prazo até 2029.

Desta vez, volta a ideia de substituir a data final por um comprometimento obrigatório de uma parcela da receita líquida com os pagamentos, variando de 1% a 5%. Os percentuais serão revistos no longínquo 2036.

No âmbito federal, a situação só é menos grave porque o Tesouro Nacional tem capacidade muito maior de tomar dinheiro no mercado para financiar gastos que superam suas receitas. Apenas por isso, os precatórios da União têm sido pagos em dia, depois de um calote parcial no final da gestão de Jair Bolsonaro (PL).

Ainda assim, atendendo ao governo Luiz Inácio Lula da Silva (PT), a PEC prolonga o tratamento especial para essa despesa, de mais de R$ 100 bilhões anuais, nas regras orçamentárias. Fixa-se um período de dez anos, a partir de 2027, para que todos os pagamentos sejam integralmente incorporados às metas fiscais —e não será surpresa se houver pressões no futuro para dilatar esse limite.

Ao fim e ao cabo, trata-se de um artifício para adiar ajustes inescapáveis. Seja contabilizado ou não na meta fiscal, o pagamento de precatórios alimenta a expansão galopante da dívida pública; como qualquer dispêndio, precisa caber no Orçamento.

Devem-se investigar, sem dúvida, os motivos por trás da escalada dos valores arbitrados nos últimos anos. O que não se pode é varrer para debaixo do tapete compromissos líquidos e certos do Estado brasileiro.

A governança criminosa das facções

Folha de S. Paulo

No Brasil, 26% vivem sob controle de organizações criminosas; Estado deve atuar com foco em fluxos financeiros

Encarceramento em massa e grandes operações policias motivam facções a impor ordem para salvaguardar ganhos e conquistar apoio popular

Segundo levantamento de dados do Latinobarómetro de 2020 realizado por pesquisadores dos EUA, publicado recentemente pela editoria da Universidade de Cambridge, 14% dos entrevistados em 18 países da América Latina convivem com organizações criminosas que impõem normas locais.

A taxa representa de 77 milhões a 101 milhões de indivíduos e apresenta variações nacionais, de 5% no Chile a 26% no Brasil, que encabeça a lista.

A investigação se baseou em perguntas sobre a existência de grupos armados ou criminosos na área residencial e sobre suas funções —manutenção de regras ou reforço à tranquilidade, diferenciando-as de práticas como chantagem ou agressões.

Revela-se um cenário que desafia ideias convencionais. O controle direto por facções não surge apenas em regiões abandonadas pelo poder público, e há indícios de estar associado a ele.

A chamada governança criminosa é capaz de coexistir com o Estado em um "duopólio de violência", afetando eleições, serviços públicos e taxas de homicídios, tanto para aumentá-las quanto para reduzi-las —a pesquisa aponta relação entre a queda de mortes violentas nos anos 2000 no estado de São Paulo e a conquista de hegemonia do Primeiro Comando da Capital (PCC).

Ademais, um Estado punitivista forte pode incentivar, do modo aparentemente paradoxal, o controle estabelecido pelas facções.

O encarceramento em massa, que induz ao aliciamento de novos membros, a política de guerra às drogas e grandes operações policias em comunidades controladas motivam facções a assumirem as funções de ordem para salvaguardar ganhos, diminuir intervenções e conquistar a legitimidade popular.

No Brasil, os números mostram uma situação temerária: entre 70% e 80% confirmam a presença desses grupos onde moram, e 26% indicam atividades de regulação direta —trata-se do percentual mais elevado da amostra, que corresponde a até 61,6 milhões de pessoas.

O problema demanda abordagem integrada nas três esferas de governo para asfixiar o ecossistema do crime, em especial sua dimensão geográfica e os fluxos financeiros, inclusive no âmbito internacional, com incremento de tecnologia e inteligência investigativa. Fortalecer o Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf) é imperativo no combate ao crime organizado.

A sofisticação nos negócios e as ramificações sociais das facções exigem atuação mais racional e menos truculenta do Estado.

O desafio do marco digital para crianças

O Estado de S. Paulo

Tramitação às pressas de um projeto meritório expõe o risco de uma dupla infâmia: negligenciar as reais causas da exploração infantil e usar essa exploração para controlar o debate público

O Projeto de Lei de Proteção de Crianças e Adolescentes no Ambiente Digital (2.628/22) foi aprovado pela Câmara sob um clima de comoção pública. O impacto do vídeo viral do influenciador Felca, que revelou redes de exploração sexual de crianças nas plataformas digitais, foi instantâneo: dezenas de projetos apresentados em questão de dias, regime de urgência aprovado na surdina e um texto votado às pressas, em menos de 24 horas, sob pressão de um presidente da Câmara que buscava desviar a atenção de sua fragilidade política e de um governo que buscava contrabandear instrumentos de controle do debate público. A boa intenção – proteger crianças e adolescentes – foi tomada de assalto pelo pânico moral e um oportunismo político que quase resultou em mecanismos draconianos de censura.

A redação final melhorou consideravelmente em relação à versão inicial, que permitia que qualquer usuário forçasse a remoção imediata de conteúdos, um convite à guerra de denúncias e à censura privada. O texto aprovado restringiu essa faculdade à vítima, seus representantes, ao Ministério Público e a entidades de defesa da infância. Da mesma forma, retirou do Executivo o poder de suspender redes por ato administrativo, remetendo tal competência ao Judiciário – como exige o devido processo legal.

Ainda assim, o projeto mantém riscos. O artigo que obriga a evitar “uso compulsivo” até aponta para uma regulação pertinente, mas recorre a um conceito vago, de aplicação incerta. A autoridade nacional responsável por regular, fiscalizar e aplicar sanções saiu da ingerência direta do Executivo e recebeu autonomia. Mas o risco de que essa estrutura, sob governos de diferentes matizes, seja capturada e instrumentalizada para perseguir adversários ou sufocar opiniões incômodas não foi completamente afastado.

O mérito do projeto reside em medidas de proteção efetiva: mais transparência, reforço ao controle parental, obrigação de configurações protetivas por padrão e restrição da coleta de dados de menores e à publicidade manipuladora ou a práticas viciantes em jogos. São avanços que dialogam com experiências internacionais. Mas faltou diligência para enfrentar com mais esmero arquiteturas algorítmicas que exploram vulnerabilidades psicológicas de adolescentes, estimulando adição, ansiedade e depressão.

As denúncias de Felca foram instrumentalizadas para demonizar indiscriminadamente as big techs, mas o seu real mérito foi demonstrar a omissão da polícia, do Ministério Público e do Judiciário, que falharam em aplicar leis já existentes contra pedófilos e exploradores. Os que focam na ideia de que as plataformas devem atuar como polícia punitiva premiam a ineficiência estatal e arriscam sacrificar a liberdade de expressão de milhões de brasileiros. Não se protege a integridade física e moral dos jovens apenas com sanções digitais, mas sobretudo com fiscalização, investigação criminal e o fortalecimento da família, sempre o primeiro guardião das crianças.

O açodamento com que a Câmara tramitou o projeto é sintoma de um vício recorrente: legislar ao sabor da comoção. Felizmente, os piores excessos foram mitigados, mas a essência ainda pode ser mais equilibrada. Agora, que o texto retornou ao Senado, é preciso preservar os avanços reais, eliminar dispositivos que abram caminho para a censura e preencher lacunas relativas ao desenho das plataformas. Do contrário, a boa intenção de proteger crianças corre o risco de se converter em mais um capítulo de populismo legislativo, insegurança jurídica, paternalismo inócuo e oportunidades desperdiçadas para uma regulação inteligente.

O equilíbrio entre liberdade de expressão e segurança nas redes é delicado. Quando se trata de adultos, a liberdade deve ser sempre a regra, e as restrições, absolutamente excepcionais, justificadas e detalhadas. Em relação a crianças e adolescentes, a relação, se não chega a ser inversa, é diversa. Melhor pecar por excesso. Mas ainda melhor é não pecar. A pressa é não só amiga da imperfeição, mas do arbítrio. Após a tramitação performática – e temerária – da Câmara, cabe ao Senado deliberar com prudência.

O bom combate de Dino às emendas Pix

O Estado de S. Paulo

Parlamentares se acostumaram a mandar dinheiro para suas bases sem ter de prestar contas, e agora parecem contrariados com o fato de terem de cumprir a Constituição e a lei para fazê-lo

A saga do ministro Flávio Dino a respeito das emendas parlamentares começa a produzir resultados auspiciosos para o País. Segundo reportagem publicada pelo jornal O Globo, nenhum centavo sequer dos R$ 7,3 bilhões em emendas Pix previstos no Orçamento deste ano havia sido pago ou empenhado pelo governo, ao menos até a semana passada. Para ter uma ideia, em 2024 57% das emendas Pix haviam sido pagas até 31 de julho. No ano anterior, no mesmo período, foram 22%.

Trata-se de consequência das novas exigências que o ministro impôs para a execução dos recursos, como a apresentação prévia de planos de trabalho que detalhem de que forma a verba será usada e a abertura de contas específicas para o depósito do dinheiro por Estados e municípios. Deve-se dizer que são condições bastante razoáveis para o uso de recursos públicos, mas que aparentemente têm gerado revolta no Congresso.

Deputados e senadores se acostumaram, nos últimos anos, a mandar dinheiro para suas bases sem ter de prestar contas sobre ele, e parecem muito contrariados com o fato de que voltaram a ter de cumprir a Constituição e a legislação para fazê-lo.

O que os parlamentares não reconhecem, no entanto, é que não se trata exatamente de má vontade do governo. Aparentemente, os planos de trabalho enviados pelos municípios e Estados não têm atendido aos critérios mínimos necessários para a liberação dos recursos. Em razão disso, servidores de carreira, ao analisarem os documentos, se recusam a avalizar os repasses por receio de mais tarde serem responsabilizados individualmente na pessoa física. Dos 44 mil planos de trabalho apresentados por prefeituras este ano, apenas 5,6 mil teriam sido aprovados.

É um quadro muito diferente do que o País viu nos últimos anos. Funcionando como uma espécie de fundo eleitoral paralelo, emendas Pix pagaram de despesas correntes a festas populares organizadas por municípios, e facilitaram a reeleição dos candidatos a prefeito mais beneficiados por essas transferências.

O fim desta farra, por sinal, estaria por trás das derrotas que o governo amargou no Legislativo nas últimas semanas. Boa parte dos parlamentares vê nas ações de Dino o apoio velado do Executivo para recuperar o controle do Orçamento e cumprir o arcabouço fiscal. A perda da presidência e da relatoria da Comissão Parlamentar Mista de Inquérito do INSS e a aprovação pela Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) do Senado de um projeto que retoma o voto impresso não teriam acontecido, não fossem a desarticulação e a omissão de parte da base aliada.

Além da cobrança sobre as novas emendas, Dino tampouco aliviou as exigências sobre as emendas mais antigas. No domingo passado, o ministro deu um prazo de dez dias úteis para o Tribunal de Contas da União (TCU) identificar quais emendas pagas entre 2020 e 2024 a Estados e municípios não tiveram planos de trabalho protocolados, em desrespeito a uma decisão anterior do Supremo Tribunal Federal (STF). Somadas, elas chegam a R$ 694,7 milhões, e os valores e informações deverão ser segregados por Estado para envio às respectivas superintendências regionais da Polícia Federal, a quem caberá instaurar inquérito para investigação.

A investida de Dino sobre as emendas preocupa tanto o Congresso que parte dos parlamentares se articula a fim de votar propostas para acabar com o foro privilegiado, limitar a possibilidade de prisão em flagrante de parlamentares a casos de crime inafiançável e retomar a necessidade de aval prévio do Congresso para que parlamentares sejam processados criminalmente, derrubada em 2001. Como mostrou o jornal Valor, enquanto essa regra vigorou, entre 1988 e 2001, nenhuma das 216 solicitações do STF foi atendida, e os pedidos foram todos arquivados.

A desculpa para essas propostas é a defesa de prerrogativas, mas bem se sabe que o que os parlamentares buscam é apenas o bônus da função: querem continuar a gastar dinheiro público sem a devida transparência, sem terem de assumir a responsabilidade pelo eventual mau uso desses recursos e com a garantia de não serem penalizados em caso de desvios.

Magistrados contra os xeretas

O Estado de S. Paulo

Juízes querem dificultar acesso ao valor de seus contracheques, em afronta à transparência

A Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB) quer dificultar o acesso dos cidadãos aos contracheques dos juízes de todo o País. Num requerimento, esta espécie de sindicato dos togados pediu que o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) autorize os tribunais a exigirem a identificação daqueles que desejam consultar os rendimentos mensais de juízes e desembargadores. Trata-se, obviamente, de uma maneira de constranger o cidadão interessado em saber quanto ganha um juiz – o que é seu direito, conforme dois artigos da Constituição: o 5.º, inciso XXXIII, que diz que “todos têm direito a receber dos órgãos públicos informações de seu interesse particular, ou de interesse coletivo ou geral”; e o artigo 37, que determina a publicidade como um dos princípios da administração pública. Ou seja, o pleito da AMB, ao impor obstáculos à transparência, viola a mesma Constituição pela qual, ora vejam, cabe à magistratura zelar.

Hoje, qualquer cidadão pode consultar os Portais da Transparência para saber quanto ganha um servidor público. Graças a esse instrumento, os brasileiros sabem que os magistrados, não raro, recebem acima do teto constitucional, de R$ 46,4 mil, que é o salário de um ministro do Supremo Tribunal Federal. O acesso aos contracheques, por exemplo, permitiu a este jornal revelar que na “dezembrada”, que ocorre quando há uma avalanche de penduricalhos no final de cada ano, um contracheque no Judiciário pode chegar a R$ 700 mil.

A consulta às folhas de pagamento pode ser movida pelo interesse jornalístico, pela pesquisa acadêmica ou pela mera curiosidade. Esse acesso é um mecanismo republicano, e nenhum Poder está imune à vigilância da sociedade. Mas a AMB parece crer que os magistrados constituem exceção.

Para justificar seu pedido, a entidade recorreu a uma resolução do Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP), de 2023, que autoriza os diversos ramos do MP a exigir a identificação de quem deseja consultar o contracheque de um promotor ou procurador. Em São Paulo, é necessário informar nome, e-mail, CPF, telefone e clicar num botão para provar que não se trata de um robô. Tudo isso, evidentemente, desestimula a consulta a uma informação que deveria estar ao alcance de todos sem empecilho algum.

A AMB tenta replicar essa manobra, sob a alegação de que os juízes correriam risco de sofrer violência se seus salários fossem conhecidos. Trata-se de uma desculpa esfarrapada para evitar que a opinião pública tome ciência de que muitos magistrados gozam de inaceitáveis privilégios.

Sob a presidência do ministro do Supremo Tribunal Federal Luís Roberto Barroso, o CNJ baixou uma resolução sobre um tal “princípio da simetria” entre as carreiras do Ministério Público e da magistratura, o que respaldaria a reivindicação da AMB. Com isso, uma vez estabelecida a “simetria”, os magistrados terão como saber o nome e o telefone dos cidadãos xeretas que ousam querer saber quanto eles ganham.

Acomodação e articulação no contexto da COP30

Correio Braziliense

O Brasil precisa dar conta da tarefa de mobilizar nações, organizações, especialistas e o setor privado em torno da cúpula deste ano

O Brasil começou 2025 com a responsabilidade de sediar a 30ª edição da Conferência das Nações Unidas sobre as Mudanças Climáticas, a COP30. Depois do desempenho decepcionante em Baku, no Azerbaijão, em 2024, a aposta e a expectativa eram de um grande evento neste ano, especialmente por ser em terras da Amazônia, um registro inédito. Mas, com a proximidade da cúpula, a impressão é de que será preciso trabalhar muito para evitar uma nova frustração.

Em contagem regressiva para o encontro, que ocorre entre 10 e 21 de novembro, a contratação de acomodação ameaça esvaziar a participação e, consequentemente, o alcance das discussões. Os altos preços para hospedagem em Belém, no Pará, têm provocado reações diversas e levado alguns países a pensar na hipótese de desistir da conferência.

Nos bastidores, diálogos vêm tentando resolver a questão. Porém, o cenário de baixa confirmação de presença das mais de 190 delegações previstas ganha proporções a cada dia. A pressão da Organização das Nações Unidas (ONU) sobre o governo brasileiro para apresentar uma solução motivou uma reunião, na última sexta-feira, que não resolveu o impasse. O país promete uma força-tarefa para acelerar as confirmações em uma espécie de busca ativa, fazendo contato com as nações para ajudar a encontrar soluções.

Diante de tantos desafios que se colocam para a COP30, é lamentável que um mal-estar se instale na fase final de preparação. As autoridades envolvidas não podem negligenciar a esperança pela tomada de decisões importantes em relação ao meio ambiente. O financiamento climático de US$ 1,3 trilhão, um dos pontos sensíveis, exige atuação diplomática eficiente e o Brasil tem de conquistar confiança sobre a sua capacidade de anfitrião articulador — a começar pelo planejamento do evento.

A pauta a ser debatida é urgente e, além do tema dos recursos, o compromisso com a redução das emissões de carbono encabeça a lista, com foco na importância de os governos reverem seus níveis de ambição diante do Pacto de Paris. Nesse contexto, a "COP da Amazônia", cercada pela maior floresta tropical do planeta e por uma biodiversidade incomparável, precisa apresentar propostas concretas para conter o aquecimento global e proteger os ecossistemas sob riscos.

As condições climáticas extremas que o planeta enfrenta, com a progressão de registros de ocorrências trágicas, aumentam o protagonismo dos debates em solo brasileiro. A oportunidade de a COP30 ser um marco de avanços na preservação do planeta não pode ser comprometida por assuntos de logística. Somente alianças fortes serão capazes de mitigar os efeitos de desastres consumados e evitar que outros aconteçam, sem também deixar de lado o impacto e o aprofundamento das desigualdades sociais decorrentes das alterações do clima.

O Brasil precisa dar conta da tarefa de mobilizar nações, organizações, especialistas e o setor privado em torno do encontro deste ano. Belém já está no centro das atenções internacionais e não pode decepcionar como anfitriã. Os países negociadores têm de sentar à mesa e, perante o mundo, apresentar medidas em favor da sustentabilidade e da contenção do desequilíbrio ambiental. Não permitir que a inflação de acomodação prejudique a convenção climática na Amazônia deve ser consenso entre os organizadores. O futuro do planeta depende de uma virada na governança ambiental, e a COP30 pode deixar esse legado.

Uma agência contra o crime organizado

O Povo (CE)

É fato que a envelhecida estrutura atual da segurança pública não dá conta do problema na sua dimensão integral, especialmente no ponto em que estruturas criminais agem de maneira que a cada dia parece mais organizada

O Governo finaliza os detalhes para anúncio da criação de uma agência antimáfia no Brasil, melhor aparelhada, em termos legais e funcionais, para o enfrentamento do crime organizado. Mesmo que se entenda como justificável o cuidado que se dá ao tema, diante dos melindres que cercam o problema, o Estado tem demorado para apresentar uma resposta ao desafio que representa o avanço de organizações que terminam por colocar em xeque a própria institucionalidade.

A proposta de projeto de lei que estabelece estrutura, limites e objetivos do núcleo já está pronto, em mãos do ministro Ricardo Lewandowski, da Justiça, e espera-se que chegue ao Congresso Nacional ao longo dessa semana. É previsto, como ponto principal de largada, a criação de uma Agência Nacional de Enfrentamento às Organizações Criminosas, em torno da qual ficará concentrada uma política de combate oficial a um problema social que tem tirado o sono de muitos brasileiros e de muitos cearenses. Em geral, gente das camadas mais pobres da população, famílias residentes em áreas carentes nas quais as tais facções se valem da ausência do poder púlico para se imporem pela violência e o medo.

É fato que a envelhecida estrutura atual da segurança pública não dá conta do problema na sua dimensão integral, especialmente no ponto em que estruturas criminais agem de maneira que a cada dia parece mais organizada. A resposta oficial precisa ir na mesma linha de identificar as fragilidades e possibilidades, agindo para enfrentar as primeiras e potencializar as segundas. Em defesa da sociedade, papel que lhe cabe e que não pode ser terceirizado ou negligenciado em nenhuma circunstância.

O endurecimento das leis, disponíveis ou por serem criadas no conjunto de sugestões a serem apresentadas ao parlamento, é um passo indispensável. O que se sabe do texto nas mãos do ministro indica que haverá iniciativas nessa linha, por exemplo, ampliando a pena mínima de 3 para 5 anos contra aqueles condenados por participação em organizações criminosas, prevendo-se o estabelecimento da faixa entre 12 e 20 anos quando registrado o agravante do uso da força para intimidar pessoas. Outro ponto é a redução de 4 para 3 no número mínimo de membros que caracteriza tais grupos, definida uma divisão clara de tarefas entre eles.

Há mudanças previstas também na ação civil, com regras novas e modernas de punições que alcancem o patrimônio e os bens materiais dos envolvidos. É de se esperar, enfim, que as forças políticas sejam capazes de entender a importância da situação e do momento, afastando qualquer risco de desvios e garantindo que avance um debate que interessa ao conjunto da sociedade. Nem tudo precisa dividir o Brasil entre ideologias e partidos.

 


 

 

 

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