Ferrogrão precisa sair do papel
O Globo
Preocupação ambiental é pertinente, mas país não pode abrir mão de ampliar escoamento da produção
O Brasil deverá fechar o ano com nova safra
recorde de grãos. Confirmada a estimativa, a produção crescerá 16% e atingirá
340,5 milhões de toneladas. Maior produtor nacional, Mato Grosso é o dínamo do
setor. Se fosse um país, seria o quarto no ranking global de soja e algodão. Da
porteira para dentro, reinam empreendedorismo e tecnologia. Mas falta
transporte eficiente para escoar a produção. A maior parte dos grãos
mato-grossenses é exportada por portos do Sudeste e do Sul. Para mudar essa
situação, o governo federal deveria acelerar a concessão da Ferrogrão, ferrovia
com quase mil quilômetros entre Sinop (MT) e Itaituba (PA). A ideia é construir
a estrada de ferro ao lado da rodovia BR-163, já existente. Previsto no Novo
PAC, o projeto está parado.
Lançado em 2012, ele tem sido pródigo em atrasos. A primeira versão do estudo de viabilidade foi apresentada em 2015. Houve quatro atualizações até o material ser enviado para a análise do Tribunal de Contas da União (TCU) em 2020, ano em que teve início o processo de licenciamento ambiental. Depois de questionamento do PSOL sobre a destinação de parte do Parque Nacional do Jamanxim (PA) à obra, o Supremo Tribunal Federal (STF) suspendeu tudo em 2021, para em seguida autorizar a retomada de estudos. De forma didática, a Ferrogrão ilustra a dificuldade de tirar do papel obras de infraestrutura no Brasil.
O processo no Supremo resume as críticas dos
ambientalistas. Para eles, a construção da ferrovia ao lado da BR-163 acelerará
a destruição do parque nacional e ameaçará povos indígenas. A rodovia foi
construída antes da criação do Jamanxim, mas somente em 2017 uma lei
estabeleceu sua área de domínio. Na ação, o PSOL questiona a
constitucionalidade da legislação. Os defensores da Ferrogrão dizem que a faixa
de domínio da rodovia equivale a 0,1% da área total do parque, num trecho inferior
a 100 quilômetros. Lembram ainda que a rota prevista para a ferrovia não
atravessa nenhum território indígena.
Entre os opositores da Ferrogrão, há também
quem acuse o projeto de ser caro. Estudo do grupo de pesquisadores Amazônia
2030 sustenta que os números sobre a viabilidade econômica apresentados ao TCU
estão incorretos. “Estimamos que o retorno financeiro do projeto baseado em
premissas realistas seja sete vezes menor”, diz o documento. Pela estimativa do
estudo, o clima e a geologia da região tornarão insuficiente a tarifa projetada
para garantir a operação da ferrovia, forçando o governo a conceder subsídios.
Tal ponto de vista ignora que a extensão da BR-163 é conhecida, em seus
aspectos geológicos e climáticos, há cerca de 50 anos. “Caso houvesse regiões
sujeitas a eventos naturais como alagamentos, especialmente no entorno do
Parque Nacional do Jamanxim, o traçado da rodovia teria sido revisado ao longo
de décadas de operação”, dizem técnicos envolvidos no projeto.
É evidente que as preocupações ambientais
precisam ser examinadas e, quando necessário, os impactos negativos da obra
devem ser mitigados. Mas as objeções não são empecilho a que se conclua a
ferrovia. Ela baixará o custo do transporte, diminuirá o fluxo de caminhões na
BR-163 e evitará a emissão de toneladas de gás carbônico. Não dá para abrir mão
de ampliar a capacidade de escoamento num momento em que a produção agrícola é
crítica para o desenvolvimento do país.
Justiça acertou ao mandar religar radares nas
rodovias federais
O Globo
Orçamento apertado não é desculpa para pôr em
risco a segurança de quem trafega pelas estradas
Fez bem a Justiça do Distrito Federal em
mandar o Departamento Nacional de Infraestrutura de
Transportes (Dnit)
religar os radares eletrônicos nas rodovias federais. Os equipamentos,
instalados ao longo de mais de 40 mil quilômetros de estradas, haviam sido
desativados porque o governo federal alegou não ter dinheiro no Orçamento para
renovar contratos. A segurança de motoristas e passageiros não pode ficar refém
da inépcia do Dnit.
Na decisão, de 18 de agosto, a juíza
substituta Diana Wanderlei, da 5ª Vara Federal de Brasília, afirma que, ao
limitar as dotações orçamentárias do Dnit, o governo federal “inviabilizou a
materialidade da prestação de serviço primário inegociável”, expondo a vida à
alta velocidade de “motoristas infratores contumazes”. Diz ainda que o cenário
de “apagão” nas rodovias federais contribui para aumento de velocidade não
permitido. A magistrada ressalta também que radares críticos deixaram de
funcionar plenamente. O desligamento, diz ela, desrespeitou o Acordo Nacional
dos Radares, firmado após ações contra a retirada deles das rodovias federais
durante o governo Jair Bolsonaro. Depois de estudos sobre acidentes e
mortalidade, ficou estabelecido que seriam mantidos nos locais de risco médio,
alto e altíssimo.
O governo alega que, para manter o sistema
nacional de radares, são necessários R$ 364 milhões, mas o Orçamento de 2025
prevê apenas R$ 43,4 milhões. Ora, não se pode pôr fim ao funcionamento de
radares nas rodovias federais simplesmente porque o dinheiro acabou. O episódio
expõe inépcia não só para gerir o Orçamento, mas também para gerenciar
necessidades básicas de infraestrutura, um dos setores mais punidos pelo
crescimento de despesas obrigatórias que o governo se recusa a rever.
Os radares eletrônicos são fundamentais para
a segurança nas estradas. Seu objetivo é reduzir a velocidade e melhorar a
fiscalização nos pontos com maior número de acidentes. Segundo o Dnit, entre
2010 e 2016 eles contribuíram para redução de 47% nos acidentes e de 25% nas
mortes em estradas federais. Além disso, auxiliam em investigações de crimes
como roubo e furto de cargas ou sequestros.
O governo também arrecada com as multas
aplicadas. Com radares desligados, esses recursos deixam de entrar. De acordo
com dados que constam da decisão, os radares proporcionam arrecadação de mais
de R$ 1 bilhão por ano, e o governo federal fica com cerca de R$ 600 milhões.
O Dnit afirma já ter ordenado a reativação dos radares em todo o país. Era o mínimo a fazer diante da decisão da Justiça e do Acordo dos Radares. Mas preocupa que decisões com impacto na segurança dos cidadãos sejam tomadas ao sabor de limitações orçamentárias. Essa loteria perversa é resultado de um governo que não se preocupa com o controle de gastos. Acaba ficando sem dinheiro para bancar compromissos essenciais, que ele próprio assumiu.
Capital privado é essencial ao financiamento
climático
Valor Econômico
É preciso construir um arcabouço regulatório
que dêsegurança ao investidor, com riscos e prazos adequados
Nove meses após o fim da COP29, a Conferência
do Clima realizada em Baku, no Azerbaijão, os piores temores estão se
confirmando. A chamada COP das Finanças fracassou em um de seus principais
objetivos: conseguir que as nações comprometam recursos para o financiamento
climático à altura dos desafios que já estão sendo colocados.
No seu encerramento, a COP29 fechou o acordo
em que os países ricos aceitaram repassar para as nações em desenvolvimento US$
300 bilhões por ano até 2035 para enfrentar os problemas climáticos. O valor
ficou acima dos US$ 250 bilhões que constavam de rascunho inicial, mas muito
abaixo do US$ 1,3 trilhão considerado necessário por ambientalistas e
cientistas para lidar com os eventos climáticos extremos que assolam o planeta.
Na realidade, os US$ 300 bilhões não saíram
do papel assim como os valores prometidos em outras COPs. O tema será tratado
em um relatório dos presidentes da COP29, Mukhtar Babaiev, e da COP30, o
brasileiro André Corrêa do Lago, a ser apresentado em outubro. A promessa é ter
um relatório minucioso sobre o caminho para o mundo chegar a US$ 1,3 trilhão.
Embora o dinheiro para combater o aquecimento global não conste da agenda
oficial da COP30, é praticamente consenso que a reunião de Belém não poderá
virar as costas para o desafio de avançar na solução desse problema, que está
desviando a atenção de outros assuntos igualmente importantes.
O atual contexto geopolítico confirmou as
expectativas pessimistas que emergiram durante a COP29. Se Washington, mesmo
sob a direção do democrata Joe Biden, não estava colaborando com o
financiamento climático por restrições orçamentárias, não se poderia esperar
que o presidente republicano Donald Trump, um negacionista, sequer se
comprometesse em ajudar.
A China, maior emissora atual dos gases de
efeito estufa, manifesta boa vontade, mas se alinha entre as nações em
desenvolvimento e defende que sobre os países ricos recaia a maior carga
financeira. A União Europeia não quer carregar o fardo sozinha e está mais
preocupada com a segurança regional. Em 2024, o mundo destinou US$ 2,7 trilhões
a armamentos, o dobro do que se deseja para combater o aquecimento global.
Do terceiro seminário do projeto “COP30
Amazônia”, iniciativa dos jornais Valor e
“O Globo” e da rádio CBN, várias propostas e experiências emergiram. Uma das principais
conclusões é a necessidade de participação do setor privado para reunir os
recursos necessários.
Para atrair a iniciativa privada, um dos
fatores é a escala dos projetos, segundo a International Finance Corporation
(IFC), ligada ao Banco Mundial. A IFC participa de um programa de financiamento
para agricultura sustentável e de emissões de títulos para financiar a
preservação da biodiversidade na Colômbia, mas que são considerados pequenos
pelo investidor privado. O Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) tem
programas de troca de dívida por projetos verdes, e contratos com cláusulas que
permitem a suspensão dos pagamentos na ocorrência de eventos climáticos.
Dois programas do BID desenhados para atrair
o capital privado estão em discussão para serem levadas a Belém. Um deles é o
Reinveste Mais, que prevê a compra de carteiras de projetos verdes existentes e
reestruturação, com inclusão de garantias. O outro é o Colabora, que busca
atrair investidores de private equity, mais dispostos a riscos.
Em linha semelhante, o governo brasileiro
lançou no ano passado o Eco Invest, para levantar capital privado para projetos
sustentáveis, comparado a uma Parceria Público-Privada (PPP) entre o governo e
o setor financeiro. O Eco Invest já movimentou R$ 24,1 bilhões em dois leilões
e tem outros dois programados até a COP30. Os primeiros foram mais
tradicionais, e a intenção, agora, é atrair o private equity e oferecer
proteção cambial para o capital estrangeiro. O desenvolvimento do mercado de
carbono é outro canal.
Em artigo no Valor (1/8) em que apontam
o mercado de capitais como financiador da descarbonização, Leonardo Pereira,
ex-presidente da CVM, e Caio de Oliveira, analista sênior na OCDE, trazem
números que mostram a insuficiência dos recursos públicos para financiar a
transição energética. Estudo da OCDE concluiu que se contar apenas com recursos
públicos, a China conseguirá se adequar ao Acordo de Paris até 2028. Já as
economias avançadas só atingiriam esse objetivo em 2041; e os países em
desenvolvimento, em 2050.
A participação de bancos de desenvolvimento e a formulação de programas de governo podem abrir caminho para a participação do capital financeiro e do mercado de capitais no investimento ainda dos projetos ambientais. Para isso é primordial é a existência de um arcabouço regulatório que dê segurança ao investidor, com riscos e prazos adequados, garantias de rastreabilidade da produção para evitar a destruição de biomas e, primordial, um ambiente macroeconômico favorável.
Poder público quer ignorar dívidas com
cidadãos
Folha de S. Paulo
PEC desobriga estados e municípios de quitar
precatórios até 2029; União continua com tratamento especial
Trata-se de artifício para adiar ajustes
inescapáveis. Precatórios alimentam a expansão da dívida pública e precisam
caber no Orçamento
Precatórios são pagamentos devidos pelos três
níveis de governo a cidadãos, empresas, entidades e órgãos, estabelecidos por
decisões judiciais definitivas, após longos processos. O poder público
brasileiro, no entanto, sabota das mais variadas maneiras o cumprimento dessas
obrigações —e mais uma
investida está a caminho.
Por uma combinação de interesses nada
edificantes, avança no Congresso
Nacional uma proposta de emenda constitucional que muda regras
relativas aos precatórios para União, estados e municípios. Perde, mais uma
vez, quem aguarda por anos ou décadas a materialização de um direito buscado na
Justiça.
A PEC 66/2023, aprovada pela Câmara dos
Deputados e já votada em primeiro turno no Senado,
foi concebida para aliviar o caixa das prefeituras. Como de hábito, os
parlamentares ampliaram o escopo do texto movidos a lobbies dos entes
federativos.
Em sua versão mais recente, a PEC desobriga
estados e municípios de quitar seu estoque de precatórios até o final de 2029, conforme
estabeleceu regra de 2021. A esse respeito, uma cronologia dos prazos fixados
dá ideia da desfaçatez com que cidadãos credores do Estado são tratados.
A Constituição de 1988 determinou que os
pagamentos deveriam ser concluídos em oito anos; em 2000, foram concedidos mais
dez anos; em 2009, mais 15, com opção de prazo indeterminado condicionado a
desembolsos anuais mínimos; em 2016, mais quatro anos; em 2017, prazo até 2024;
em 2021, prazo até 2029.
Desta vez, volta a ideia de substituir a data
final por um comprometimento obrigatório de uma parcela da receita líquida com
os pagamentos, variando de 1% a 5%. Os percentuais serão revistos no longínquo
2036.
No âmbito federal, a situação só é menos
grave porque o Tesouro Nacional tem capacidade muito maior de tomar dinheiro no
mercado para financiar gastos que superam suas receitas. Apenas por isso, os
precatórios da União têm sido pagos em dia, depois de um calote parcial no
final da gestão de Jair
Bolsonaro (PL).
Ainda assim, atendendo ao governo Luiz
Inácio Lula da
Silva (PT),
a PEC prolonga o tratamento especial para essa despesa, de mais de R$ 100
bilhões anuais, nas regras orçamentárias. Fixa-se um
período de dez anos, a partir de 2027, para que todos os pagamentos
sejam integralmente incorporados às metas fiscais —e não será surpresa se
houver pressões no futuro para dilatar esse limite.
Ao fim e ao cabo, trata-se de um artifício
para adiar ajustes inescapáveis. Seja contabilizado ou não na meta
fiscal, o pagamento de precatórios alimenta a expansão galopante da dívida
pública; como qualquer dispêndio, precisa caber no Orçamento.
Devem-se investigar, sem dúvida, os motivos
por trás da escalada dos valores arbitrados nos últimos anos. O que não se pode
é varrer para debaixo do tapete compromissos líquidos e certos do Estado
brasileiro.
A governança criminosa das facções
Folha de S. Paulo
No Brasil, 26% vivem sob controle de
organizações criminosas; Estado deve atuar com foco em fluxos financeiros
Encarceramento em massa e grandes operações
policias motivam facções a impor ordem para salvaguardar ganhos e conquistar
apoio popular
Segundo levantamento de dados do
Latinobarómetro de 2020 realizado por pesquisadores dos EUA, publicado
recentemente pela editoria da Universidade de Cambridge, 14% dos
entrevistados em 18 países da América
Latina convivem com organizações criminosas que impõem normas
locais.
A taxa representa de 77 milhões a 101 milhões
de indivíduos e apresenta variações nacionais, de 5% no Chile a
26% no Brasil, que encabeça a lista.
A investigação se baseou em perguntas sobre a
existência de grupos armados ou criminosos na área residencial e sobre suas
funções —manutenção de regras ou reforço à tranquilidade, diferenciando-as de
práticas como chantagem ou agressões.
Revela-se um cenário que desafia ideias
convencionais. O controle direto por facções não surge apenas em regiões
abandonadas pelo poder público, e há indícios de estar associado a ele.
A chamada governança criminosa é capaz de
coexistir com o Estado em um "duopólio de violência",
afetando eleições, serviços públicos e taxas de homicídios, tanto para
aumentá-las quanto para reduzi-las —a pesquisa aponta relação entre a queda de
mortes violentas nos anos 2000 no estado de São Paulo e a conquista de
hegemonia do Primeiro Comando da Capital (PCC).
Ademais, um Estado punitivista forte pode
incentivar, do modo aparentemente paradoxal, o controle estabelecido pelas
facções.
O encarceramento em massa, que induz
ao aliciamento de novos membros, a política de guerra às drogas e
grandes operações policias em comunidades controladas motivam facções a
assumirem as funções de ordem para salvaguardar ganhos, diminuir intervenções e
conquistar a legitimidade popular.
No Brasil, os números mostram uma situação
temerária: entre 70% e 80% confirmam a presença desses grupos onde moram, e 26%
indicam atividades de regulação direta —trata-se do percentual mais elevado da
amostra, que corresponde a até 61,6 milhões de pessoas.
O problema demanda abordagem integrada nas
três esferas de governo para asfixiar o ecossistema do crime, em especial sua
dimensão geográfica e os fluxos financeiros, inclusive no âmbito internacional,
com incremento de tecnologia e inteligência investigativa. Fortalecer o
Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf) é imperativo no combate
ao crime organizado.
A sofisticação nos negócios e as ramificações sociais das facções exigem atuação mais racional e menos truculenta do Estado.
O desafio do marco digital para crianças
O Estado de S. Paulo
Tramitação às pressas de um projeto meritório
expõe o risco de uma dupla infâmia: negligenciar as reais causas da exploração
infantil e usar essa exploração para controlar o debate público
O Projeto de Lei de Proteção de Crianças e
Adolescentes no Ambiente Digital (2.628/22) foi aprovado pela Câmara sob um
clima de comoção pública. O impacto do vídeo viral do influenciador Felca, que
revelou redes de exploração sexual de crianças nas plataformas digitais, foi
instantâneo: dezenas de projetos apresentados em questão de dias, regime de
urgência aprovado na surdina e um texto votado às pressas, em menos de 24
horas, sob pressão de um presidente da Câmara que buscava desviar a atenção de
sua fragilidade política e de um governo que buscava contrabandear instrumentos
de controle do debate público. A boa intenção – proteger crianças e
adolescentes – foi tomada de assalto pelo pânico moral e um oportunismo
político que quase resultou em mecanismos draconianos de censura.
A redação final melhorou consideravelmente em
relação à versão inicial, que permitia que qualquer usuário forçasse a remoção
imediata de conteúdos, um convite à guerra de denúncias e à censura privada. O
texto aprovado restringiu essa faculdade à vítima, seus representantes, ao
Ministério Público e a entidades de defesa da infância. Da mesma forma, retirou
do Executivo o poder de suspender redes por ato administrativo, remetendo tal
competência ao Judiciário – como exige o devido processo legal.
Ainda assim, o projeto mantém riscos. O
artigo que obriga a evitar “uso compulsivo” até aponta para uma regulação
pertinente, mas recorre a um conceito vago, de aplicação incerta. A autoridade
nacional responsável por regular, fiscalizar e aplicar sanções saiu da
ingerência direta do Executivo e recebeu autonomia. Mas o risco de que essa
estrutura, sob governos de diferentes matizes, seja capturada e
instrumentalizada para perseguir adversários ou sufocar opiniões incômodas não
foi completamente afastado.
O mérito do projeto reside em medidas de
proteção efetiva: mais transparência, reforço ao controle parental, obrigação
de configurações protetivas por padrão e restrição da coleta de dados de
menores e à publicidade manipuladora ou a práticas viciantes em jogos. São
avanços que dialogam com experiências internacionais. Mas faltou diligência
para enfrentar com mais esmero arquiteturas algorítmicas que exploram
vulnerabilidades psicológicas de adolescentes, estimulando adição, ansiedade e
depressão.
As denúncias de Felca foram
instrumentalizadas para demonizar indiscriminadamente as big techs, mas o seu real mérito
foi demonstrar a omissão da polícia, do Ministério Público e do Judiciário, que
falharam em aplicar leis já existentes contra pedófilos e exploradores. Os que
focam na ideia de que as plataformas devem atuar como polícia punitiva premiam
a ineficiência estatal e arriscam sacrificar a liberdade de expressão de
milhões de brasileiros. Não se protege a integridade física e moral dos jovens
apenas com sanções digitais, mas sobretudo com fiscalização, investigação
criminal e o fortalecimento da família, sempre o primeiro guardião das
crianças.
O açodamento com que a Câmara tramitou o
projeto é sintoma de um vício recorrente: legislar ao sabor da comoção.
Felizmente, os piores excessos foram mitigados, mas a essência ainda pode ser
mais equilibrada. Agora, que o texto retornou ao Senado, é preciso preservar os
avanços reais, eliminar dispositivos que abram caminho para a censura e
preencher lacunas relativas ao desenho das plataformas. Do contrário, a boa
intenção de proteger crianças corre o risco de se converter em mais um capítulo
de populismo legislativo, insegurança jurídica, paternalismo inócuo e
oportunidades desperdiçadas para uma regulação inteligente.
O equilíbrio entre liberdade de expressão e
segurança nas redes é delicado. Quando se trata de adultos, a liberdade deve
ser sempre a regra, e as restrições, absolutamente excepcionais, justificadas e
detalhadas. Em relação a crianças e adolescentes, a relação, se não chega a ser
inversa, é diversa. Melhor pecar por excesso. Mas ainda melhor é não pecar. A
pressa é não só amiga da imperfeição, mas do arbítrio. Após a tramitação
performática – e temerária – da Câmara, cabe ao Senado deliberar com prudência.
O bom combate de Dino às emendas Pix
O Estado de S. Paulo
Parlamentares se acostumaram a mandar
dinheiro para suas bases sem ter de prestar contas, e agora parecem
contrariados com o fato de terem de cumprir a Constituição e a lei para fazê-lo
A saga do ministro Flávio Dino a respeito das
emendas parlamentares começa a produzir resultados auspiciosos para o País.
Segundo reportagem publicada pelo jornal O Globo, nenhum centavo sequer dos R$ 7,3 bilhões em
emendas Pix previstos no Orçamento deste ano havia sido pago ou empenhado pelo
governo, ao menos até a semana passada. Para ter uma ideia, em 2024 57% das
emendas Pix haviam sido pagas até 31 de julho. No ano anterior, no mesmo
período, foram 22%.
Trata-se de consequência das novas exigências
que o ministro impôs para a execução dos recursos, como a apresentação prévia
de planos de trabalho que detalhem de que forma a verba será usada e a abertura
de contas específicas para o depósito do dinheiro por Estados e municípios.
Deve-se dizer que são condições bastante razoáveis para o uso de recursos
públicos, mas que aparentemente têm gerado revolta no Congresso.
Deputados e senadores se acostumaram, nos
últimos anos, a mandar dinheiro para suas bases sem ter de prestar contas sobre
ele, e parecem muito contrariados com o fato de que voltaram a ter de cumprir a
Constituição e a legislação para fazê-lo.
O que os parlamentares não reconhecem, no
entanto, é que não se trata exatamente de má vontade do governo. Aparentemente,
os planos de trabalho enviados pelos municípios e Estados não têm atendido aos
critérios mínimos necessários para a liberação dos recursos. Em razão disso,
servidores de carreira, ao analisarem os documentos, se recusam a avalizar os
repasses por receio de mais tarde serem responsabilizados individualmente na
pessoa física. Dos 44 mil planos de trabalho apresentados por prefeituras este
ano, apenas 5,6 mil teriam sido aprovados.
É um quadro muito diferente do que o País viu
nos últimos anos. Funcionando como uma espécie de fundo eleitoral paralelo,
emendas Pix pagaram de despesas correntes a festas populares organizadas por
municípios, e facilitaram a reeleição dos candidatos a prefeito mais
beneficiados por essas transferências.
O fim desta farra, por sinal, estaria por trás
das derrotas que o governo amargou no Legislativo nas últimas semanas. Boa
parte dos parlamentares vê nas ações de Dino o apoio velado do Executivo para
recuperar o controle do Orçamento e cumprir o arcabouço fiscal. A perda da
presidência e da relatoria da Comissão Parlamentar Mista de Inquérito do INSS e
a aprovação pela Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) do Senado de um
projeto que retoma o voto impresso não teriam acontecido, não fossem a
desarticulação e a omissão de parte da base aliada.
Além da cobrança sobre as novas emendas, Dino
tampouco aliviou as exigências sobre as emendas mais antigas. No domingo
passado, o ministro deu um prazo de dez dias úteis para o Tribunal de Contas da
União (TCU) identificar quais emendas pagas entre 2020 e 2024 a Estados e
municípios não tiveram planos de trabalho protocolados, em desrespeito a uma
decisão anterior do Supremo Tribunal Federal (STF). Somadas, elas chegam a R$
694,7 milhões, e os valores e informações deverão ser segregados por Estado
para envio às respectivas superintendências regionais da Polícia Federal, a
quem caberá instaurar inquérito para investigação.
A investida de Dino sobre as emendas preocupa
tanto o Congresso que parte dos parlamentares se articula a fim de votar
propostas para acabar com o foro privilegiado, limitar a possibilidade de
prisão em flagrante de parlamentares a casos de crime inafiançável e retomar a
necessidade de aval prévio do Congresso para que parlamentares sejam
processados criminalmente, derrubada em 2001. Como mostrou o jornal Valor, enquanto essa regra vigorou,
entre 1988 e 2001, nenhuma das 216 solicitações do STF foi atendida, e os
pedidos foram todos arquivados.
A desculpa para essas propostas é a defesa de
prerrogativas, mas bem se sabe que o que os parlamentares buscam é apenas o
bônus da função: querem continuar a gastar dinheiro público sem a devida
transparência, sem terem de assumir a responsabilidade pelo eventual mau uso
desses recursos e com a garantia de não serem penalizados em caso de desvios.
Magistrados contra os xeretas
O Estado de S. Paulo
Juízes querem dificultar acesso ao valor de
seus contracheques, em afronta à transparência
A Associação dos Magistrados Brasileiros
(AMB) quer dificultar o acesso dos cidadãos aos contracheques dos juízes de
todo o País. Num requerimento, esta espécie de sindicato dos togados pediu que
o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) autorize os tribunais a exigirem a
identificação daqueles que desejam consultar os rendimentos mensais de juízes e
desembargadores. Trata-se, obviamente, de uma maneira de constranger o cidadão
interessado em saber quanto ganha um juiz – o que é seu direito, conforme dois
artigos da Constituição: o 5.º, inciso XXXIII, que diz que “todos têm direito a
receber dos órgãos públicos informações de seu interesse particular, ou de
interesse coletivo ou geral”; e o artigo 37, que determina a publicidade como
um dos princípios da administração pública. Ou seja, o pleito da AMB, ao impor
obstáculos à transparência, viola a mesma Constituição pela qual, ora vejam,
cabe à magistratura zelar.
Hoje, qualquer cidadão pode consultar os
Portais da Transparência para saber quanto ganha um servidor público. Graças a
esse instrumento, os brasileiros sabem que os magistrados, não raro, recebem
acima do teto constitucional, de R$ 46,4 mil, que é o salário de um ministro do
Supremo Tribunal Federal. O acesso aos contracheques, por exemplo, permitiu a
este jornal revelar que na “dezembrada”, que ocorre quando há uma avalanche de
penduricalhos no final de cada ano, um contracheque no Judiciário pode chegar a
R$ 700 mil.
A consulta às folhas de pagamento pode ser
movida pelo interesse jornalístico, pela pesquisa acadêmica ou pela mera
curiosidade. Esse acesso é um mecanismo republicano, e nenhum Poder está imune
à vigilância da sociedade. Mas a AMB parece crer que os magistrados constituem
exceção.
Para justificar seu pedido, a entidade
recorreu a uma resolução do Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP), de
2023, que autoriza os diversos ramos do MP a exigir a identificação de quem
deseja consultar o contracheque de um promotor ou procurador. Em São Paulo, é
necessário informar nome, e-mail, CPF, telefone e clicar num botão para provar
que não se trata de um robô. Tudo isso, evidentemente, desestimula a consulta a
uma informação que deveria estar ao alcance de todos sem empecilho algum.
A AMB tenta replicar essa manobra, sob a
alegação de que os juízes correriam risco de sofrer violência se seus salários
fossem conhecidos. Trata-se de uma desculpa esfarrapada para evitar que a
opinião pública tome ciência de que muitos magistrados gozam de inaceitáveis
privilégios.
Sob a presidência do ministro do Supremo Tribunal Federal Luís Roberto Barroso, o CNJ baixou uma resolução sobre um tal “princípio da simetria” entre as carreiras do Ministério Público e da magistratura, o que respaldaria a reivindicação da AMB. Com isso, uma vez estabelecida a “simetria”, os magistrados terão como saber o nome e o telefone dos cidadãos xeretas que ousam querer saber quanto eles ganham.
Acomodação e articulação no contexto da COP30
Correio Braziliense
O Brasil precisa dar conta da tarefa de
mobilizar nações, organizações, especialistas e o setor privado em torno da
cúpula deste ano
O Brasil começou 2025 com a responsabilidade
de sediar a 30ª edição da Conferência das Nações Unidas sobre as Mudanças
Climáticas, a COP30. Depois do desempenho decepcionante em Baku, no Azerbaijão,
em 2024, a aposta e a expectativa eram de um grande evento neste ano,
especialmente por ser em terras da Amazônia, um registro inédito. Mas, com a
proximidade da cúpula, a impressão é de que será preciso trabalhar muito para
evitar uma nova frustração.
Em contagem regressiva para o encontro, que
ocorre entre 10 e 21 de novembro, a contratação de acomodação ameaça esvaziar a
participação e, consequentemente, o alcance das discussões. Os altos preços
para hospedagem em Belém, no Pará, têm provocado reações diversas e levado
alguns países a pensar na hipótese de desistir da conferência.
Nos bastidores, diálogos vêm tentando
resolver a questão. Porém, o cenário de baixa confirmação de presença das mais
de 190 delegações previstas ganha proporções a cada dia. A pressão da
Organização das Nações Unidas (ONU) sobre o governo brasileiro para apresentar
uma solução motivou uma reunião, na última sexta-feira, que não resolveu o
impasse. O país promete uma força-tarefa para acelerar as confirmações em uma espécie
de busca ativa, fazendo contato com as nações para ajudar a encontrar soluções.
Diante de tantos desafios que se colocam para
a COP30, é lamentável que um mal-estar se instale na fase final de preparação.
As autoridades envolvidas não podem negligenciar a esperança pela tomada de
decisões importantes em relação ao meio ambiente. O financiamento climático de
US$ 1,3 trilhão, um dos pontos sensíveis, exige atuação diplomática eficiente e
o Brasil tem de conquistar confiança sobre a sua capacidade de anfitrião
articulador — a começar pelo planejamento do evento.
A pauta a ser debatida é urgente e, além do
tema dos recursos, o compromisso com a redução das emissões de carbono encabeça
a lista, com foco na importância de os governos reverem seus níveis de ambição
diante do Pacto de Paris. Nesse contexto, a "COP
da Amazônia", cercada pela maior floresta tropical do planeta e por
uma biodiversidade incomparável, precisa apresentar propostas concretas para
conter o aquecimento global e proteger os ecossistemas sob riscos.
As condições climáticas extremas que o
planeta enfrenta, com a progressão de registros de ocorrências trágicas,
aumentam o protagonismo dos debates em solo brasileiro. A oportunidade de a
COP30 ser um marco de avanços na preservação do planeta não pode ser
comprometida por assuntos de logística. Somente alianças fortes serão capazes
de mitigar os efeitos de desastres consumados e evitar que outros aconteçam,
sem também deixar de lado o impacto e o aprofundamento das desigualdades
sociais decorrentes das alterações do clima.
O Brasil precisa dar conta da tarefa de mobilizar nações, organizações, especialistas e o setor privado em torno do encontro deste ano. Belém já está no centro das atenções internacionais e não pode decepcionar como anfitriã. Os países negociadores têm de sentar à mesa e, perante o mundo, apresentar medidas em favor da sustentabilidade e da contenção do desequilíbrio ambiental. Não permitir que a inflação de acomodação prejudique a convenção climática na Amazônia deve ser consenso entre os organizadores. O futuro do planeta depende de uma virada na governança ambiental, e a COP30 pode deixar esse legado.
Uma agência contra o crime organizado
O Povo (CE)
É fato que a envelhecida estrutura atual da
segurança pública não dá conta do problema na sua dimensão integral,
especialmente no ponto em que estruturas criminais agem de maneira que a cada
dia parece mais organizada
O Governo finaliza os detalhes para anúncio
da criação de uma agência antimáfia no Brasil, melhor aparelhada, em termos
legais e funcionais, para o enfrentamento do crime organizado. Mesmo que
se entenda como justificável o cuidado que se dá ao tema, diante dos melindres
que cercam o problema, o Estado tem demorado para apresentar uma resposta ao
desafio que representa o avanço de organizações que terminam por colocar em
xeque a própria institucionalidade.
A proposta de projeto de lei que estabelece
estrutura, limites e objetivos do núcleo já está pronto, em mãos do
ministro Ricardo Lewandowski, da Justiça, e espera-se que chegue ao
Congresso Nacional ao longo dessa semana. É previsto, como ponto principal de
largada, a criação de uma Agência Nacional de Enfrentamento às Organizações
Criminosas, em torno da qual ficará concentrada uma política de combate oficial
a um problema social que tem tirado o sono de muitos brasileiros e de muitos
cearenses. Em geral, gente das camadas mais pobres da população, famílias
residentes em áreas carentes nas quais as tais facções se valem da ausência do
poder púlico para se imporem pela violência e o medo.
É fato que a envelhecida estrutura atual
da segurança pública não dá conta do problema na sua dimensão
integral, especialmente no ponto em que estruturas criminais agem de maneira
que a cada dia parece mais organizada. A resposta oficial precisa ir na mesma
linha de identificar as fragilidades e possibilidades, agindo para enfrentar as
primeiras e potencializar as segundas. Em defesa da sociedade, papel que lhe
cabe e que não pode ser terceirizado ou negligenciado em nenhuma circunstância.
O endurecimento das leis, disponíveis ou por
serem criadas no conjunto de sugestões a serem apresentadas ao parlamento, é um
passo indispensável. O que se sabe do texto nas mãos do ministro indica que
haverá iniciativas nessa linha, por exemplo, ampliando a pena mínima de
3 para 5 anos contra aqueles condenados por participação em organizações
criminosas, prevendo-se o estabelecimento da faixa entre 12 e 20 anos quando
registrado o agravante do uso da força para intimidar pessoas. Outro ponto é a
redução de 4 para 3 no número mínimo de membros que caracteriza tais grupos,
definida uma divisão clara de tarefas entre eles.
Há mudanças previstas também na ação
civil, com regras novas e modernas de punições que alcancem o patrimônio e os
bens materiais dos envolvidos. É de se esperar, enfim, que as forças políticas
sejam capazes de entender a importância da situação e do momento, afastando
qualquer risco de desvios e garantindo que avance um debate que interessa ao
conjunto da sociedade. Nem tudo precisa dividir o Brasil entre ideologias e
partidos.
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