CartaCapital
Na realidade de ficção do Economista Sabe
Tudo, o gasto público concorre e expulsa o gasto privado
Eu vejo o futuro repetir o passado /
Eu vejo um museu de grandes novidades /
O tempo não para /
Não para, não, não para
(Cazuza, O Tempo Não Para)
Frequentemente, a formulação de um problema é
mais essencial do que a sua solução.” (Albert Einstein)
Nas décadas de 50 e 60 do século passado,
existia uma série de grande sucesso de audiência chamada Papai Sabe Tudo. No
enredo do seriado, os três filhos viviam pedindo conselhos ao pai, afinal,
papai sabe tudo. Nestes tempos de pensamento e solução únicas, somos obrigados
a assistir à série Economista Sabe Tudo, mesmo que a audiência não entenda o
que eles falam, mesmo com legendas e dublagem. E como diz a música, um museu de
grandes novidades.
Na física, o princípio da impenetrabilidade da matéria demonstra que dois corpos não ocupam o mesmo espaço. Aos leigos: você pode ver com seus olhos todo o santo dia, numa estação de metrô, a multidão tentando entrar e sair ao mesmo tempo de um vagão do trem.
A física, ciência que causa calafrios,
insônias, depressões e, principalmente, inveja ao Economista Sabe Tudo. Como
diria Caetano Veloso: Narciso acha feio o que não é espelho. Não se fizeram de
rogados, criaram o princípio da impenetrabilidade da matéria na economia, o
conceito de Crowding Out. Esse conceito (Hegel nos perdoe) afirma que dois gastos
não podem ocupar o mesmo espaço numa economia, pois um expulsa o outro. Eles
concorrem entre si. Num dos episódios mais recorrentes da série Crowding Out,
na sua vigésima quinta temporada diz que o gasto público (política fiscal),
concorre e expulsa o gasto privado.
Na realidade de ficção do Economista Sabe
Tudo, é sempre efeito-substituição, em bom português, é isto ou aquilo. Não
existe a possibilidade de complementaridade, isto e aquilo. Peço aqui a máxima
vênia para citar abaixo uma colocação de um doutor por Yale. O sábio da
Crematística afirma que o temido risco fiscal impõe ao Banco Central brasileiro
ter de aumentar a taxa de juros básica. Entre as vítimas do Crowding Out,
afigura-se com aplomb o aumento da concessão de crédito pelo BNDES, concessão
maculada com taxa de juros inferior à praticada no deus mercado. Nossos sábios
discorrem sobre o tema com certezas dignas do absolutismo de Henrique VIII
antes de decepar a cabeça de Ana Bolena. E convencem a mídia.
“Por fim, o Banco Central não é a única
instituição pública que afeta o crédito. A carteira do BNDES passou de cerca de
480 bilhões de reais no fim de 2022 para 600 bilhões hoje. Esse aumento no
crédito do BNDES é como uma queda na taxa de juros para quem tem acesso a esses
empréstimos. Quando o BNDES expande o crédito, o BC precisa aumentar os juros
para compensar esse aumento.” (Bernardo Guimarães)
Assim, pela lógica dos sabichões, para ajudar
o Banco Central a baixar a taxa de juros, há que reduzir os empréstimos do
BNDES ou extinguir o banco.
Invocamos o grande filósofo Baruch Spinoza: a
medida, o tempo e o número são apenas modos de pensar, ou melhor, de imaginar.
Dados do Banco Central do Brasil mostram que
o total de crédito na economia brasileira é de cerca de 7 trilhões de reais. O
BNDES seria em torno de 8,5% do total. E desculpem, leitores, o estresse
técnico. A missão do BNDES é financiar projetos, obras e serviços de interesse
nacional, apoiando desde grandes empreendimentos de infraestrutura até micro,
pequenas e médias empresas. E, destaco em negrito, financiamento de longo
prazo. Só faria competição aos bancos de investimento. Qual banco comercial faz
empréstimos a longo prazo?
“O mercado de crédito corporativo no Brasil
movimenta, em média, 418,95 bilhões de reais por ano desde 2019 com títulos de
dívida, segundo a Associação Brasileira das Entidades dos Mercados Financeiro e
de Capitais
Recorramos à história: a criação do Banco da
Inglaterra, em 1694, impulsionou a aceleração do capitalismo. Nos primórdios da
escalada monetária, os bancos ganharam a prerrogativa de emitir notas para
abastecer a circulação monetária. Com a evolução do sistema de crédito, os
passivos bancários mudam de forma: a emissão de notas é substituída por
depósitos à vista que podem ser mobilizados por seus titulares como meios de
pagamento. “Se B deposita no banco o dinheiro recebido de A e o banqueiro
entrega esse dinheiro a C como desconto de uma letra, C faz uma compra a D e
este deposita no banco, que por sua vez empresta a E, que compra de F, teremos
que o ritmo (da criação monetária) como meio de circulação se opera mediante
várias operações de crédito.” (O Capital, vol. III, pág. 489)
John Maynard Keynes definiu as conexões entre
gasto e renda, em carta encaminhada a Franklin Delano Roosevelt: “Nós
produzimos a fim de vender. Em outras palavras, nós produzimos em resposta aos
gastos. É impossível supor que possamos estimular a produção e o emprego,
abstendo-se de gastar. Então, como eu disse, a resposta é óbvia.
Segundo os sabichões, deve-se reduzir os
empréstimos do BNDES para ajudar o BC a baixar juros
“Mas, em um segundo olhar, vejo que a questão
tem sido encaminhada para inspirar uma dúvida insidiosa. Para muitos, gasto
significa extravagância. Um homem que é extravagante logo se torna pobre. Como,
então, uma nação pode tornar-se rica fazendo o que empobrece um indivíduo? Esse
pensamento desnorteia o público.
“No entanto, um comportamento que pode fazer
um único indivíduo pobre pode fazer uma nação rica. Quando um indivíduo gasta,
ele não afeta só a si mesmo, mas outros. A despesa é uma transação bilateral.
Se eu gastar minha renda para comprar algo que você pode fazer para mim, eu não
aumentei minha própria renda, mas aumentei a sua.
“Se você responder comprando algo que eu
posso fazer para você, então minha renda também é aumentada. Assim, quando
estamos a pensar na nação como um todo, devemos ter em conta os resultados como
um todo. O resto da comunidade é enriquecido pela despesa de um indivíduo. Sua
despesa é simplesmente uma adição à renda de todos os outros. Há apenas um
limite para que o rendimento de uma nação possa ser aumentado dessa forma: o
limite fixado pela capacidade física de produzir”.
No seriado Economista Sabe Tudo, a ficção da
criação de renda sem gasto tem a pretensão de modelar a realidade. Crowding
Out poderia ser nome de música, título de episódio, mas é uma desconexão que
macula o entendimento das economias monetário-financeiras capitalistas.
“Quem não quer pensar é um fanático, quem não
pode pensar é um idiota, quem não ousa pensar é um covarde.” (Horace Walpole)
Perguntar não ofende: até quando o streaming
vai passar a série Economista Sabe Tudo?
“Eu não vim pra explicar, eu vim pra
confundir.” (Chacrinha)
Publicado na edição n° 1382 de CartaCapital, em 08 de outubro de 2025.
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