É preciso muita viseira ideológica para qualificar a política externa do governo Fernando Henrique Cardoso como "submissa e passiva"
Em sua resposta ao artigo "Palpite infeliz", que publiquei neste espaço há duas semanas, Matias Spektor alertou-me para a disponibilidade de vídeos e textos referentes à conferência 2003-2013: Uma Nova Política Externa, organizada pela Prefeitura de São Bernardo e pela Universidade Federal do ABC, entre outras entidades. Fui ao site do evento para conferir o material.
A visita confirmou a minha expectativa de que o tom e o espírito da conferência haviam sido fundamentalmente de celebração da assim chamada política externa "altiva e ativa", em que pesem a boa qualidade de algumas das contribuições e o objetivo, meritório, de pensar o futuro e propor novas formas de participação da sociedade na formulação da política externa.
Aberto pelo prefeito de São Bernardo, Luiz Marinho, e encerrado pelo ex-presidente Lula, o evento contou com intervenções de ministros, dirigentes partidários e líderes sindicais ligados ao PT. Os especialistas que participaram são todos simpáticos à política externa dos últimos dez anos.
Respeito a biografia e o trabalho de todos os ali presentes. E não teria objeção alguma ao fato de se reunirem para promover e aguçar uma certa visão sobre a política externa brasileira, não fosse a utilização de recursos públicos para esse fim. Isso não é novo nem é bom.
Do que li, vi e ouvi, a sinfonia executada em São Bernardo reiterou, com poucas exceções e sem nenhuma nota realmente dissonante, o slogan autocongratulatório da política externa "altiva e ativa".
O slogan supõe que a política externa que a antecedeu foi "submissa e passiva". É preciso muita viseira ideológica para assim qualificar a política externa do governo Fernando Henrique Cardoso.
Esta buscou inserir o Brasil no sistema internacional e na economia global preservando o mais possível, nas circunstâncias internas e externas de então, o espaço de escolha autônoma do país. Vínhamos de um processo crescente de isolamento e desprestígio internacional nas duas décadas anteriores. Com o Plano Real, criaram-se as condições necessárias, embora insuficientes, para mudar esse quadro.
A assinatura do acordo da dívida externa, em 1994, ainda no governo Itamar Franco, pôs fim a um capítulo aberto em 1982 e agravado em 1987, com a moratória.
Com a aprovação da Lei de Propriedade Intelectual, em 1996, e a assinatura do Tratado de Não Proliferação Nuclear, em 1998, o Brasil aderiu a normas internacionais regulando essas duas cruciais matérias à paz e ao desenvolvimento.
No primeiro caso, ao fazê-lo, não abdicou da prerrogativa de lutar pela quebra de patentes de medicamentos, quando em risco a saúde pública, como ficou demonstrado com êxito na abertura da Rodada Doha da Organização Mundial do Comércio, em 2001.
No segundo, não abriu mão de seu direito a desenvolver um programa nuclear para fins pacíficos. Ao contrário, protegeu-o de suspeitas e pressões externas indevidas.
Ao engajar-se no processo negociador da Alca, o Brasil impediu, já em 1997, que o eventual acordo pudesse ser implementado em fatias, como queriam os EUA, e estabeleceu com clareza, na Cúpula de Quebec, em 2001, quando nos aproximávamos da fase mais substantiva da negociação, as pré-condições para a adesão a um eventual acordo.
Gelson Fonseca, diplomata e um dos nossos melhores pensadores na área de relações internacionais, cunhou as expressões "autonomia pela inserção" e "autonomia pela diversificação" para caracterizar, nas suas diferenças e continuidades, as políticas externas dos governos FHC e Lula, respectivamente.
Uma eventual "nova política externa" poderá resultar do confronto intelectualmente honesto entre essas duas estratégias, devidamente considerados os novos ventos do mundo. Isso, infelizmente, não aconteceu em São Bernardo.
Sergio Fausto, 50, cientista político, é superintendente executivo da Fundação iFHC
Fonte: Folha de S. Paulo
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