- Valor Econômico
Ambiente político polarizado é habitat natural de Bolsonaro
Pelo menos por enquanto, de uma coisa o presidente Jair Bolsonaro não pode ser acusado: ter praticado estelionato eleitoral na forma que conduz as relações entre o Executivo e o Parlamento. Bolsonaro até abriu um canal de diálogo com líderes partidários, mas insiste em buscar apoios das bancadas temáticas. E no domingo colocou em prática, pela primeira vez desde que tomou posse, outro aspecto da estratégia política formulada durante a corrida presidencial: o uso da pressão popular como ferramenta para impulsionar a sua agenda legislativa, mesmo sem ter uma base fixa de sustentação no Congresso Nacional.
Bolsonaro foi prudente. Enquanto aliados próximos e familiares trabalharam para dar volume à mobilização em defesa do governo e suas pautas, manteve-se longe o suficiente do movimento para evitar ser acusado de insuflar a população contra outros Poderes ou ser responsabilizado por um eventual fracasso. Mas perto o bastante para poder converter em capital político o potencial sucesso dos atos, que de fato reuniram milhares de pessoas em várias cidades de todas as regiões do país.
A eficácia de tal postura será testada de imediato. Esta semana é crucial para as reformas administrativa e previdenciária. Além disso, na quinta-feira a oposição também dobrará a aposta e promoverá nova mobilização nacional contra as políticas do governo para a área da educação.
No Congresso, um dos principais desafios dos articuladores políticos do Planalto é a MP 870. A medida provisória que dá à Esplanada dos Ministérios a cara do governo Bolsonaro precisa ser aprovada até o dia 3, e ironicamente corre mais risco de caducar se o Senado alterá-la a fim de manter o Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf) sob responsabilidade do ministro da Justiça e Segurança Pública, Sergio Moro.
Os senadores poderiam alegar que decidiram atender aos pedidos feitos nas manifestações de domingo, o que, na prática, faria com que a MP retornasse à Câmara. O governo seria forçado a retomar às pressas as negociações com os deputados, para evitar que o fim da vigência da medida provisória colocasse o governo numa barafunda burocrática de grande magnitude.
Outro desafio à vista: deputados têm até quinta-feira para apresentar emendas à reforma da Previdência. Dependendo de quais alterações ganharem força na comissão especial e no plenário, nova crise surgirá entre o governo e o Congresso. A área econômica não esconde a insatisfação com a possibilidade de a proposta ser desidratada no Parlamento, enquanto o Palácio do Planalto celebra o fato inédito de parcela considerável do eleitorado ter saído às ruas para defender o texto original da reforma da Previdência Social, pauta tradicionalmente impopular.
É inegável que Bolsonaro conseguiu reunir novamente sua base de eleitores mais fiéis, jogando no colo dos parlamentares a pressão para destravar votações essenciais para a revitalização do ambiente de negócios do país. Por outro lado, o governo alimenta a polarização que a cada dia se aprofunda na sociedade e, assim, dá subsídios aos partidos já decididos a manter uma postura beligerante em relação ao governo ou a forças políticas que tentam se reorganizar visando as próximas eleições.
O DEM, por exemplo, trabalha com o horizonte de usar seu esqueleto para estruturar um grande partido de centro-direita. A convenção nacional da sigla, agendada para esta semana em Brasília, deve debater o assunto. Integrantes da cúpula do partido destacam que a ideia do DEM não é fomentar ou se aproveitar de divisões em outras legendas, mas avaliam que há uma demanda represada entre os eleitores, uma tendência na cena internacional favorável e potenciais interessadas em aderir.
O PSDB, com a renovação de sua direção, também tenta se reposicionar e deve iniciar um movimento de isolamento de alas menos identificadas com o centro do espectro político. O partido também realiza sua convenção nacional nesta semana na capital federal.
Enquanto isso, integrantes da cúpula do Congresso já detectaram iniciativas que buscam aproveitar o momento em que as ruas pedem a renovação das práticas políticas para dar um falso ar de legitimidade a propostas que, na prática, visam apenas facilitar o caminho de seus próprios partidos. Há uma PEC na Câmara, por exemplo, que determina eleições diretas sempre que vagar o cargo de presidente da República, o que impediria a posse definitiva do vice-presidente.
Outro risco apontado é a discussão sobre reforma política acabar servindo de isca para que as coligações nas eleições proporcionais voltem a ser liberadas. Sua proibição a partir das eleições municipais do ano que vem foi um dos principais avanços obtidos na reforma de 2017, mas uma proposta de emenda constitucional tentando revertê-la foi apresentada recentemente e tramita na Comissão de Constituição e Justiça do Senado. Integrantes da CCJ já trabalham para evitar que a ideia não prospere, e ela dificilmente deve ser pautada em ambos os plenários do Congresso.
O mesmo não pode ser dito em relação a propostas que venham a reduzir a margem de manobra para o presidente da República editar medidas provisórias ou decretos. Justamente os instrumentos legislativos utilizados, por exemplo, para ampliar o acesso a armas de fogo, reduzir o tamanho do Estado ou dificultar a cobrança do imposto sindical - medidas aguardadas pelas bancadas e pelos eleitores que apoiaram Bolsonaro na campanha presidencial.
O país volta a viver um clima de instabilidade e imprevisibilidade. A oposição crê que não tem nada a perder, mas parece esquecer que Bolsonaro fez carreira radicalizando e dessa forma chegou à Presidência da República. Demonstrou que sabe transitar como poucos num ambiente político polarizado, seu habitat natural.
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