- O Globo
Pediram a reforma da Previdência quando todos sabem que ela está bem encaminhada
A manifestação de domingo foi convocada, a princípio, para hostilizar a classe política, os demais Poderes da República e a imprensa. A convocação repercutiu mal, e o governo reorientou a pauta para a defesa das reformas. Fez bem: de um lado, rebateu (em parte) a acusação de antidemocrático e golpista; do outro, atraiu gente que está mais interessada em melhorar o país do que em brigar. Encheu as ruas. Mas criou uma agenda dupla e realizou uma manifestação contraditória.
A agenda positiva, reformista, é boa, mas também é esquisita. Pediram a reforma da Previdência quando todos sabem que ela está bem encaminhada, que seu atraso é decorrente das trapalhadas do próprio governo, e que seu maior inimigo é o presidente da República, que volta e meia dá uma declaração que esvazia a proposta (na semana passada, uma dessas declarações levou o ministro da Economia a ameaçar, mais uma vez, pedir o boné).
Pediram a MP 870 depois que ela foi aprovada na Câmara. Pediram para manter o Coaf com Moro, coisa pela qual o governo jamais se interessou, que quase deixou de fora, e na qual é perigoso mexer pelo risco de a MP inteira cair. Pediram o pacote anticrime de Moro, pelo qual Bolsonaro nunca chegou a lutar, e que o governo fatiou em três, deixando o caixa 2 de fora. Quase caso de perguntar se a manifestação era mesmo a favor do governo.
A agenda negativa, a do confronto institucional, apesar da suposta mudança da pauta, persistiu. Houve forte hostilização ao “Centrão” (aquilo que o bolsonarismo chama de “velha política”) e a Rodrigo Maia. A manifestação que pedia a reforma da Previdência brigou com aqueles de cujos votos ela depende e, de maneira estapafúrdia, atacou Maia, justamente o maior aliado da reforma, peça-chave para sua aprovação. E ainda havia a minoria que pedia golpe militar.
A manifestação foi grande e expressiva, mas não foi gigantesca nem consagradora, e o fato de um governo tão jovem precisar demonstrar força é, em si, uma demonstração de fraqueza (os índices de popularidade estão em queda livre). A base do governo se fragmentou: o presidente do PSL, Luciano Bivar, a líder do governo no Congresso, Joice Hasselmann, e a deputada Janaína Paschoal (que chamou seus correligionários de “cegos”) ficaram contra. A deputada Carla Zambelli demorou a aderir, bateu boca com Hasselmann pelo Twitter, e foi vaiada ao tentar defender Rodrigo Maia. Movimentos como MBL e Vem Pra Rua também ficaram de fora (Kim Kataguiri, do MBL, denunciou a agenda como antiliberal, antirrepublicana e anticonservadora).
À parte a agenda dupla, quem foi à manifestação, seja por que motivo for, querendo ou não, ao apoiar Bolsonaro, deu força à tática do confronto. Essa é a interpretação da classe política e do próprio presidente, que, ainda pela manhã, tuitou que os manifestantes teriam “o firme propósito de dar recado àqueles que teimam, com velhas práticas, [em] não deixar que esse povo se liberte” (Bolsonaro também se arvora a “libertador” do povo brasileiro, ao mesmo tempo em que fecha os olhos para o fato de que, hoje, o mais emblemático adepto das “velhas práticas” é seu filho e aliado Flávio).
No fim do dia, o líder do DEM, partido que forneceu o maior número de ministros ao governo, deputado Elmar Nascimento, alertou que “o radicalismo e a beligerância nunca levaram a lugar algum” e que “ninguém governa sozinho”. Rodrigo Maia não passou recibo, mas não é difícil imaginar seu estado de espírito.
Manifestação de apoio pode ser bom, mas não segura presidente na cadeira. O país precisa funcionar e, para isso, em vez de convocar comício, Bolsonaro precisa elaborar um plano de governo, se acertar com a classe política, arregaçar as mangas e trabalhar. Se insistir no confronto, acabará inviabilizando a si mesmo.
*Ricardo Rangel é empresário
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