Folha de S. Paulo
Ninguém pode prever se a democracia
sobreviverá ao assédio de Trump
Às vésperas de completar nove meses na Casa
Branca, impressiona o quanto Donald Trump foi
capaz de destruir ou mutilar em tão pouco tempo e com tanta facilidade. A lista
completa dos seus malfeitos tomaria todo o espaço desta coluna. Ele promoveu
cortes profundos no Orçamento —mais de 22% nos gastos não militares—, passando
a tesoura nos dispêndios com educação, saúde, habitação, assistência alimentar
e programas sociais, dando prioridade à defesa e à segurança.
Atacou as melhores universidades, exigindo o fim de iniciativas de diversidade e inclusão, aumentando a supervisão federal e as restrições a estudantes estrangeiros; condicionou a ajuda a alinhamento ideológico; esvaziou o apoio federal à pesquisa. Espalhou o pânico entre os imigrantes legais ou sem documentação em ordem; endureceu as regras e criou restrições ao asilo; promoveu deportações a esmo e alongou o muro na fronteira com o México. Deu marcha-à-ré nas políticas ambientais da gestão Biden; tirou os EUA do Acordo de Paris sobre mudanças climáticas; enfraqueceu o auxílio à produção de carros elétricos e às fazendas eólicas, enquanto dava força à indústria de combustíveis fósseis.
Mutilou a administração pública, demitindo funcionários,
fechando importantes agências, quando não as entregou ao comando de sicofantas.
Com o tarifaço, virou de ponta-cabeça o sistema internacional de comércio. E
não se furtou a esvaziar as instituições destinadas a garantir segurança e
relativa paz no mundo.
As ordens executivas, que permitem ao
presidente legislar à revelia do Congresso, foram o instrumento do que o
escritor americano Sam Harris chamou de "devastação performática",
que corrói rapidamente o sistema democrático americano. Em cem dias, foram
editadas 140 dessas espécies de decreto.
Eis por que nenhum analista se dispõe a
prever se a democracia sobreviverá a tamanho assédio, até pelas escassas
resistências à tratoragem em curso. O edifício da ordem política assentada em
eleições livres e periódicas e no formidável sistema de freios e contrapesos,
concebido para limitar a concentração do mando, tende a se solidificar com o
tempo. Mas a sua estabilidade sempre depende da disposição das lideranças que
disputam o poder de se curvar a suas regras.
Não se sabe até que ponto as democracias
conseguem resistir quando os governos caem em mãos daqueles que não só
desrespeitam as regras do jogo como tratam de usar os recursos a seu alcance
para subvertê-las.
Se nos Estados
Unidos o autoritarismo espreita a sólida e arraigada
democracia, que dirá do risco que ela corre no Brasil, igualmente assediado por
uma extrema direita hostil aos valores e normas de um sistema político aberto.
Os manifestantes que pedem nas ruas a cabeça
do ministro Alexandre de
Moraes, do STF; os
parlamentares bolsonaristas que se aboletaram nas Mesas do Senado e da Câmara;
o deputado filho do ex-presidente, que lá de Washington se dedica a atiçar a
investida estrangeira à Corte —e ao país; o pai que, derrotado nas urnas,
intentou um golpe, são inimigos da democracia.
Fãs e servis a Trump, não hesitarão em
copiá-lo se lhes for dada nova oportunidade de voltar ao Palácio do Planalto.
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