sábado, 27 de setembro de 2025

Os muros que nos dividem. Por Marco Aurélio Nogueira

O Estado de S. Paulo

Fazer política é construir democracia, ou seja, é saber ultrapassar os muros e ir além da indignação

Sociedades estão repletas de muros. Alguns são altos, ameaçadores e difíceis de escalar; outros são tão naturais que quase não os percebemos.

Muros separam, desde logo, classes e grupos. Os mais ricos não se misturam com os mais pobres. As classes médias flutuam entre um muro e outro. Migrantes e imigrantes distinguem-se dos locais, permanecendo, em regra, distantes deles, que não os acolhem. Muros segregam. Há inúmeros deles no mundo: Estados, fronteiras, potências, nações, territórios. A desigualdade de renda e de inclusão estampa o muro mais brutal da nossa época.

Muros variam conforme os tempos e as gerações. Em sociedades tradicionais, eles são baixos e compactos: deixam as pessoas com pouca liberdade. Os indivíduos demoram para se soltar de famílias, igrejas, hierarquias, costumes. Sociedades modernas têm muros mais fluidos, as pessoas escapam deles com facilidade, nem por isso deixam de senti-los.

Muros controlam. Os poderosos fazem uso deles para impedir que pessoas se encontrem, elaborem ideias comuns e ajam de acordo com elas. Muros protegem e disciplinam: dificultam que pessoas do interior se exponham aos “perigos” do exterior desconhecido e aprendam a se comportar de uma dada maneira. Geram obediência.

Muros são simbólicos. Separam igrejas e religiões, raças e etnias, opiniões e ideologias. São institucionais e territoriais: fronteiras federativas beneficiam os respectivos entes, distritos fixam direitos e deveres. A burocracia é feita de casinhas trancadas à chave. Os partidos convivem com pequenos muros dentro deles, as direções e as bases, as alas e correntes.

Sociedades complexas são diferenciadas. Hoje, foram abalroadas pela hipermodernidade: globalização, mercados insaciáveis, aceleração, revolução tecnológica. Comportamentos, ideias, ritos, linguagem e valores saíram do lugar. Perdeu-se coesão e solidariedade. Há muros por todos os lados, embora a aparência seja de uma pista sem obstáculos. A política decaiu em qualidade, senso de proporção e responsabilidade. Virou uma corporação e, com isso, se divorciou da sociedade.

As sociedades carecem de instituições que as organizem. A polarização se aprofundou. Na política, o centro ficou opaco, sem sedução. Populistas polarizadores se encarregam de inviabilizá-lo, porque o temem. O discurso de ódio, raiva, desconfiança e indignação tomou conta do cenário. O conflito é a regra, o consenso é a exceção. Há que haver muito empenho e boa cultura política para que os que pensam diferente se unam em torno de algo comum.

Quando a política chega ao extremo de ter dois polos inimigos entre si, a moderação e a conciliação perdem espaço. Pulverizada em redes, a população se intoxica com as narrativas e os vetos recíprocos entre os polos. Fecham-se as frestas para soluções alternativas e projetos de futuro. Tanto faz se a polarização é entre esquerda e extrema direita, democratas e autoritários, conservadores e progressistas. Ela sempre inviabilizará uma união que faça a força. Com a política sendo feita com os mais chegados, os outros sendo tratados como inimigos, não como adversários e eventuais companheiros de viagem.

Hoje, os democratas mais velhos não conseguem dialogar com os democratas mais jovens. O muro geracional atravanca os espaços democráticos.

Fazer de um novo jeito predomina entre os jovens, como sempre aconteceu na passagem das gerações. Ocorre, porém, que os jovens falam outra língua, esposam outros valores e comportamentos. Voltaramse para dentro de si, colocamse questões “públicas” condizentes com suas expectativas. Não aceitam e não entendem o que falam os mais velhos. Há uma discrepância no plano da linguagem. De um lado, sobra impaciência, de outro falta atualização.

As novas gerações, por exemplo, não compreendem a ideia da democracia como valor universal; querem uma democracia imediata, que esteja a seu serviço, que absorva suas pulsões particulares. Os mais velhos, ao contrário, pensam que a democracia tem tempos longos e deve ser universalista: direitos iguais para todos, eleições regulares, imprensa livre, negociações exaustivas, consensos mínimos e pactos sempre que possível.

Os democratas estão separados por narrativas distintas, credos diferentes, ideologias e fidelidades cristalizadas. Não entendem a política democrática do mesmo modo. Alguns se empenham para encontrar caminhos que atenuem a polarização, valorizem o equilíbrio fiscal e a boa gestão pública. Outros querem ser revolucionários e se vangloriam dos muros que construíram para si mesmos, atuam em nome de uma “verdade” histórica sustentada por teorias e ideologias envelhecidas, que não conversam com a realidade atual.

Mesmo assim, a sociedade se mexe, como ocorreu em 21 de setembro. Movidas pela indignação cívica, as pessoas não aceitam o que se passa no Congresso. As ruas deram um alerta e um recado. Acenderam uma chama de esperança em favor da ideia de que fazer política é construir democracia, ou seja, é saber ultrapassar os muros e ir além da indignação.

 

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