O Estado de S. Paulo
Fazer política é construir democracia, ou seja, é saber ultrapassar os muros e ir além da indignação
Sociedades estão repletas de muros. Alguns
são altos, ameaçadores e difíceis de escalar; outros são tão naturais que quase
não os percebemos.
Muros separam, desde logo, classes e grupos.
Os mais ricos não se misturam com os mais pobres. As classes médias flutuam
entre um muro e outro. Migrantes e imigrantes distinguem-se dos locais,
permanecendo, em regra, distantes deles, que não os acolhem. Muros segregam. Há
inúmeros deles no mundo: Estados, fronteiras, potências, nações, territórios. A
desigualdade de renda e de inclusão estampa o muro mais brutal da nossa época.
Muros variam conforme os tempos e as gerações. Em sociedades tradicionais, eles são baixos e compactos: deixam as pessoas com pouca liberdade. Os indivíduos demoram para se soltar de famílias, igrejas, hierarquias, costumes. Sociedades modernas têm muros mais fluidos, as pessoas escapam deles com facilidade, nem por isso deixam de senti-los.
Muros controlam. Os poderosos fazem uso deles
para impedir que pessoas se encontrem, elaborem ideias comuns e ajam de acordo
com elas. Muros protegem e disciplinam: dificultam que pessoas do interior se
exponham aos “perigos” do exterior desconhecido e aprendam a se comportar de
uma dada maneira. Geram obediência.
Muros são simbólicos. Separam igrejas e
religiões, raças e etnias, opiniões e ideologias. São institucionais e
territoriais: fronteiras federativas beneficiam os respectivos entes, distritos
fixam direitos e deveres. A burocracia é feita de casinhas trancadas à chave.
Os partidos convivem com pequenos muros dentro deles, as direções e as bases,
as alas e correntes.
Sociedades complexas são diferenciadas. Hoje,
foram abalroadas pela hipermodernidade: globalização, mercados insaciáveis,
aceleração, revolução tecnológica. Comportamentos, ideias, ritos, linguagem e
valores saíram do lugar. Perdeu-se coesão e solidariedade. Há muros por todos
os lados, embora a aparência seja de uma pista sem obstáculos. A política
decaiu em qualidade, senso de proporção e responsabilidade. Virou uma
corporação e, com isso, se divorciou da sociedade.
As sociedades carecem de instituições que as
organizem. A polarização se aprofundou. Na política, o centro ficou opaco, sem
sedução. Populistas polarizadores se encarregam de inviabilizá-lo, porque o
temem. O discurso de ódio, raiva, desconfiança e indignação tomou conta do
cenário. O conflito é a regra, o consenso é a exceção. Há que haver muito
empenho e boa cultura política para que os que pensam diferente se unam em
torno de algo comum.
Quando a política chega ao extremo de ter
dois polos inimigos entre si, a moderação e a conciliação perdem espaço.
Pulverizada em redes, a população se intoxica com as narrativas e os vetos recíprocos
entre os polos. Fecham-se as frestas para soluções alternativas e projetos de
futuro. Tanto faz se a polarização é entre esquerda e extrema direita,
democratas e autoritários, conservadores e progressistas. Ela sempre
inviabilizará uma união que faça a força. Com a política sendo feita com os
mais chegados, os outros sendo tratados como inimigos, não como adversários e
eventuais companheiros de viagem.
Hoje, os democratas mais velhos não conseguem
dialogar com os democratas mais jovens. O muro geracional atravanca os espaços
democráticos.
Fazer de um novo jeito predomina entre os
jovens, como sempre aconteceu na passagem das gerações. Ocorre, porém, que os
jovens falam outra língua, esposam outros valores e comportamentos. Voltaramse
para dentro de si, colocamse questões “públicas” condizentes com suas
expectativas. Não aceitam e não entendem o que falam os mais velhos. Há uma
discrepância no plano da linguagem. De um lado, sobra impaciência, de outro
falta atualização.
As novas gerações, por exemplo, não
compreendem a ideia da democracia como valor universal; querem uma democracia
imediata, que esteja a seu serviço, que absorva suas pulsões particulares. Os
mais velhos, ao contrário, pensam que a democracia tem tempos longos e deve ser
universalista: direitos iguais para todos, eleições regulares, imprensa livre,
negociações exaustivas, consensos mínimos e pactos sempre que possível.
Os democratas estão separados por narrativas
distintas, credos diferentes, ideologias e fidelidades cristalizadas. Não entendem
a política democrática do mesmo modo. Alguns se empenham para encontrar
caminhos que atenuem a polarização, valorizem o equilíbrio fiscal e a boa
gestão pública. Outros querem ser revolucionários e se vangloriam dos muros que
construíram para si mesmos, atuam em nome de uma “verdade” histórica sustentada
por teorias e ideologias envelhecidas, que não conversam com a realidade atual.
Mesmo assim, a sociedade se mexe, como
ocorreu em 21 de setembro. Movidas pela indignação cívica, as pessoas não
aceitam o que se passa no Congresso. As ruas deram um alerta e um recado.
Acenderam uma chama de esperança em favor da ideia de que fazer política é
construir democracia, ou seja, é saber ultrapassar os muros e ir além da
indignação.
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