domingo, 28 de setembro de 2025

Um resistente. Por Dorrit Harazim

O Globo

Dados do morticínio divulgados pelo Ministério da Saúde de Gaza não são mera propaganda do Hamas

Na sessão de sexta-feira da Assembleia Geral da ONU, algumas centenas de delegados de países-membros retiraram-se do plenário quando Benjamin Netanyahu subiu à tribuna. Já era esperado. E não foi a primeira vez. Em anos anteriores, porém, a debandada costumava ser inferior em número, e seu impacto político menor. Desta vez alinharam-se ao Brasil pesos pesados da diplomacia ocidental, que poucos dias antes haviam, por fim, reconhecido a Palestina como Estado independente. Portanto não ouviram quando o primeiro-ministro israelense qualificou esse reconhecimento como “completa loucura”, comparando-o a presentear a organização terrorista Al-Qaeda, logo depois do atentado do 11 de Setembro, com um Estado situado a pouco mais de 1 quilômetro de distância de Nova York.

Também não ouviram Netanyahu anunciar que Israel instalara alto-falantes por toda a Gaza ocupada e assumira o controle da telefonia celular local para transmitir seu discurso. Por alguns minutos, dirigiu-se em hebraico aos 20 reféns ainda vivos dos mais de 250 sequestrados pelo Hamas no massacre de 7 de outubro. Mas foi na língua universal, o inglês, que informou ao mundo que, se preciso, Israel iria “até o fim” na destruição do que resta de Gaza e sua gente.

Consubstanciava assim, involuntariamente, o sombrio relatório de 2.086 páginas publicado há um mês pelo respeitado grupo israelense B’Tselem (Centro de Informação Israelense para Direitos Humanos nos Territórios Ocupados) intitulado “Nosso genocídio”. No documento, os autores do estudo concluíam que o Estado e a sociedade de Israel cometem crime de genocídio em Gaza, tomando a desumanização de suas vítimas como condição fundamental para a ocorrência desse crime.

— As vítimas são despojadas de suas características humanas, retratadas como inerentemente imorais ou perigosas e vistas como coletivamente responsáveis por qualquer ato negativo cometido por indivíduos ou organizações específicas dentro de seu grupo — afirma o relatório.

Elas passam a ser vistas como pessoas a que as normas morais não se aplicam. Em recente visita a um assentamento na fronteira com Gaza, o próprio general Herzi Halevi, ex-chefe do Estado-Maior das Forças de Defesa de Israel (FDI), confirmou indiretamente que os dados do morticínio divulgados pelo Ministério da Saúde de Gaza não são mera propaganda do Hamas.

— Esta não é uma guerra de delicadezas — disse o militar. — Gaza tem uma população de 2,2 milhões de pessoas, e mais de 10% foram mortas ou estão feridas.

Nada tão diferente dos dados compilados na semana passada pelas autoridades de Gaza: 65.283 mortos e mais de 166 mil feridos, somando um total de 230 mil vítimas, a imensa maioria delas civis indefesos. Vale lembrar que os dados divulgados pelo ministério do Hamas se sustentam em listas nominais detalhadas — nome, sobrenome, idade, nome do pai e avô, número da carteira de identidade — e são facilmente verificáveis, uma vez que o RG de palestinos de Gaza é fornecido por Israel. Cabe acrescentar que nenhuma lista até agora inclui os desaparecidos sob os escombros do que um dia foi Gaza, nem os mortos por inanição, doenças decorrentes da desumanidade e destruição. Está restrita às vítimas de bombardeios, estilhaços ou disparos das forças de ocupação.

— Expresso minha admiração aos judeus que, dentro e fora de Israel, se opõem a essa punição coletiva. O povo palestino corre o risco de desaparecer — disse o presidente Lula quatro dias antes da fala de Netanyahu, em seu aplaudido discurso de abertura da Assembleia Geral.

Talvez se referisse de forma genérica aos grupos de intelectuais, acadêmicos, cientistas, escritores e judeus anônimos que condenam o projeto de erradicação da realidade palestina. Eles são muitos e deveriam multiplicar-se para honrar a história do Estado de Israel e do milenar povo judeu.

Individualmente, contudo, é apropriado citar o historiador israelense Lee Mordechai como merecedor de admiração por sua tenaz busca dos fatos. Ex-oficial do Corpo de Engenharia de Combate das FDI e professor sênior de História na Universidade Hebraica de Jerusalém, Mordechai vivia enfurnado em estudos sobre desastres humanos e naturais da Antiguidade quando ocorreu o 7 de Outubro terrorista e a resposta militar contra Gaza. Desde então, trabalha metódica e exaustivamente na montagem de uma documentação sobre crimes de guerra israelenses no território. A compilação original em hebraico, divulgada em janeiro de 2024, tinha apenas nove páginas.

— Não creio que o que está aqui escrito levará a qualquer mudança de política, nem convencerá muitos — esclareceu à época.

De lá para cá, o levantamento já recebeu sete versões atualizadas, inclusive em língua inglesa, de 124 páginas e mais de 1.400 notas de rodapé referenciando os milhares de fontes por ele acessadas. Está disponível on-line sob o título “Bearing witness to the Israel-Gaza war” (“Prestando testemunho sobre a guerra Israel-Gaza”). É aterrador. E obrigatório para quem respeita a História. Em entrevista a Nir Hasson, do diário Haaretz, explicou:

— Não estou aqui para confrontar as pessoas ou discutir. Escrevi o documento para que fosse divulgado. Para que, daqui a meio ano, ou um ano, ou cinco, dez ou cem anos, as pessoas possam voltar a ver que isso é o que eu sabia, o que era possível saber, já em janeiro ou março de 2024. E que aqueles entre nós que não sabiam escolheram não saber. Para mim, é importante olhar no espelho, importa divulgar essas coisas. É minha forma de resistência.

 

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