O Globo
Dados
do morticínio divulgados pelo Ministério da Saúde de Gaza não são mera
propaganda do Hamas
Na sessão de sexta-feira da Assembleia Geral da ONU, algumas centenas de delegados de países-membros retiraram-se do plenário quando Benjamin Netanyahu subiu à tribuna. Já era esperado. E não foi a primeira vez. Em anos anteriores, porém, a debandada costumava ser inferior em número, e seu impacto político menor. Desta vez alinharam-se ao Brasil pesos pesados da diplomacia ocidental, que poucos dias antes haviam, por fim, reconhecido a Palestina como Estado independente. Portanto não ouviram quando o primeiro-ministro israelense qualificou esse reconhecimento como “completa loucura”, comparando-o a presentear a organização terrorista Al-Qaeda, logo depois do atentado do 11 de Setembro, com um Estado situado a pouco mais de 1 quilômetro de distância de Nova York.
Também não ouviram Netanyahu anunciar que
Israel instalara alto-falantes por toda a Gaza ocupada e assumira o controle da
telefonia celular local para transmitir seu discurso. Por alguns minutos,
dirigiu-se em hebraico aos 20 reféns ainda vivos dos mais de 250 sequestrados
pelo Hamas no massacre de 7 de outubro. Mas foi na língua universal, o inglês,
que informou ao mundo que, se preciso, Israel iria “até o fim” na destruição do
que resta de Gaza e sua gente.
Consubstanciava assim, involuntariamente, o
sombrio relatório de 2.086 páginas publicado há um mês pelo respeitado grupo
israelense B’Tselem (Centro de Informação Israelense para Direitos Humanos nos
Territórios Ocupados) intitulado “Nosso genocídio”. No documento, os autores do
estudo concluíam que o Estado e a sociedade de Israel cometem crime de
genocídio em Gaza, tomando a desumanização de suas vítimas como condição
fundamental para a ocorrência desse crime.
— As vítimas são despojadas de suas
características humanas, retratadas como inerentemente imorais ou perigosas e
vistas como coletivamente responsáveis por qualquer ato negativo cometido por
indivíduos ou organizações específicas dentro de seu grupo — afirma o
relatório.
Elas passam a ser vistas como pessoas a que
as normas morais não se aplicam. Em recente visita a um assentamento na
fronteira com Gaza, o próprio general Herzi Halevi, ex-chefe do Estado-Maior
das Forças de Defesa de Israel (FDI), confirmou indiretamente que os dados do
morticínio divulgados pelo Ministério da Saúde de Gaza não são mera propaganda
do Hamas.
— Esta não é uma guerra de delicadezas —
disse o militar. — Gaza tem uma população de 2,2 milhões de pessoas, e mais de
10% foram mortas ou estão feridas.
Nada tão diferente dos dados compilados na
semana passada pelas autoridades de Gaza: 65.283 mortos e mais de 166 mil
feridos, somando um total de 230 mil vítimas, a imensa maioria delas civis
indefesos. Vale lembrar que os dados divulgados pelo ministério do Hamas se
sustentam em listas nominais detalhadas — nome, sobrenome, idade, nome do pai e
avô, número da carteira de identidade — e são facilmente verificáveis, uma vez
que o RG de palestinos de Gaza é fornecido por Israel. Cabe acrescentar que
nenhuma lista até agora inclui os desaparecidos sob os escombros do que um dia
foi Gaza, nem os mortos por inanição, doenças decorrentes da desumanidade e
destruição. Está restrita às vítimas de bombardeios, estilhaços ou disparos das
forças de ocupação.
— Expresso minha admiração aos judeus que,
dentro e fora de Israel, se opõem a essa punição coletiva. O povo palestino
corre o risco de desaparecer — disse o presidente Lula quatro dias antes da
fala de Netanyahu, em seu aplaudido discurso de abertura da Assembleia Geral.
Talvez se referisse de forma genérica aos
grupos de intelectuais, acadêmicos, cientistas, escritores e judeus anônimos
que condenam o projeto de erradicação da realidade palestina. Eles são muitos e
deveriam multiplicar-se para honrar a história do Estado de Israel e do milenar
povo judeu.
Individualmente, contudo, é apropriado citar
o historiador israelense Lee Mordechai como merecedor de admiração por sua
tenaz busca dos fatos. Ex-oficial do Corpo de Engenharia de Combate das FDI e
professor sênior de História na Universidade Hebraica de Jerusalém, Mordechai
vivia enfurnado em estudos sobre desastres humanos e naturais da Antiguidade
quando ocorreu o 7 de Outubro terrorista e a resposta militar contra Gaza.
Desde então, trabalha metódica e exaustivamente na montagem de uma documentação
sobre crimes de guerra israelenses no território. A compilação original em
hebraico, divulgada em janeiro de 2024, tinha apenas nove páginas.
— Não creio que o que está aqui escrito
levará a qualquer mudança de política, nem convencerá muitos — esclareceu à
época.
De lá para cá, o levantamento já recebeu sete
versões atualizadas, inclusive em língua inglesa, de 124 páginas e mais de
1.400 notas de rodapé referenciando os milhares de fontes por ele acessadas.
Está disponível on-line sob o título “Bearing witness to the Israel-Gaza war”
(“Prestando testemunho sobre a guerra Israel-Gaza”). É aterrador. E obrigatório
para quem respeita a História. Em entrevista a Nir Hasson, do diário Haaretz,
explicou:
— Não estou aqui para confrontar as pessoas
ou discutir. Escrevi o documento para que fosse divulgado. Para que, daqui a
meio ano, ou um ano, ou cinco, dez ou cem anos, as pessoas possam voltar a ver
que isso é o que eu sabia, o que era possível saber, já em janeiro ou março de
2024. E que aqueles entre nós que não sabiam escolheram não saber. Para mim, é
importante olhar no espelho, importa divulgar essas coisas. É minha forma de
resistência.
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