O Globo
Eleitorado democrata nos EUA praticamente
circunscreve-se às elites detentoras de diploma de educação superior
‘A classe trabalhadora é um grupo racista,
xenófobo, misógino, ultrarreligioso e ignorante. A esquerda só pode
recapturá-lo incorporando seus pontos de vista e desistindo de seus próprios
valores de tolerância, equidade e empatia. O fato de que isso é intragável é a
razão por que a humanidade sempre regressa a seu estado mais vil, autoritário e
patriarcal.’
Os diagnósticos acima não partem de algum conhecido pensador, mas de um leitor de esquerda, no espaço de comentários do New York Times, junto a uma coluna de opinião sobre a perda da classe trabalhadora pelo Partido Democrata. São relevantes precisamente porque o leitor afirma com clareza aquilo que quase nunca fica explícito nos textos coreografados de líderes ou ideólogos. O leitor delineia uma visão profundamente pessimista sobre o futuro e reconhece implicitamente que os valores da esquerda pós-moderna a inviabilizam eleitoralmente.
A esquerda nasceu otimista, bem antes de
Marx, e permaneceu assim até o passado recente. Seus porta-vozes falavam num
arco redentor da História que conduziria ao progresso, ao bem-estar e à
igualdade. Diante de insucessos, prometiam que a História (com maiúscula) teria
a palavra final — e condenavam seus rivais à célebre “lata de lixo da
História”. Nos Estados Unidos,
o último arauto de peso dessa visão solar foi Obama, com seus chamados à
unidade acima das divisões de classe ou raça.
Tradicionalmente, o pessimismo filosófico
caracterizou a direita reacionária, que enxerga o pecado como traço definidor
da alma humana: “O homem é o lobo do homem”. Contudo o advento da “nova
esquerda” embaralhou as cartas. A inversão deriva da substituição ideológica
que inaugura a esquerda pós-moderna: adeus aos trabalhadores, vivam as
minorias.
A cartilha identitária trata a desigualdade
econômica como implicação do racismo e do patriarcalismo. O inimigo deixa de
ser um sistema para assumir a forma do “homem branco ocidental”, o colonizador
dos “povos originários”. Sob a nova ótica, a classe trabalhadora (“branca”)
passa a ser rotulada como “um grupo racista, xenófobo, misógino,
ultrarreligioso e ignorante”. A postura equivale à edificação, pela esquerda,
de um bunker em que ela reafirma seus valores, reclama superioridade moral e
renuncia a persuadir uma maioria inerentemente corrompida.
Às vezes, fugindo aos roteiros encenados,
lideranças políticas expressam a mentalidade de bunker. Na campanha de 2016,
Hillary Clinton qualificou metade dos eleitores de Trump como uma “cesta de
deploráveis”. No Brasil, sempre que perde uma eleição em São Paulo, o PT atribui
o fracasso à “classe média fascista”.
Mas a febre identitária estende as sentenças
condenatórias para além da fronteira racial. No ano passado, na campanha de
retorno de Trump à Casa Branca, diante da constatação da hemorragia no voto dos
negros em Kamala Harris, analistas de esquerda decidiram que a causa residia no
machismo dos homens negros. Esqueceram, claro, que esse grupo votou em massa em
Hillary Clinton.
Nos Estados Unidos, a transição rumo ao
manual identitário rompeu a “coalizão do New Deal” que, desde a década de 1930,
conectou o Partido Democrata à classe trabalhadora. Hoje, o eleitorado
democrata praticamente circunscreve-se às elites detentoras de diploma de
educação superior. O nacionalismo populista de direita navega nas águas
pontilhadas pelos destroços de uma esquerda que dialogava com as pessoas
comuns.
O governo Trump inclina os Estados Unidos na
direção do autoritarismo. Violando as leis, deporta estrangeiros com visto
válido. Sob o pretexto de combater o crime, envia a Guarda Nacional para
patrulhar cidades. Ignorando a Primeira Emenda, manipula o assassinato do
ativista de direita Charlie Kirk para calar vozes divergentes. Seguindo a
trilha de Viktor Orbán e de Recep Erdogan, engaja-se na intimidação de juízes e
em expurgos no aparato de administração estatal.
A marcha autoritária só encontra uma oposição
fragmentada, carente de rumo. Trancado em seu bunker, o Partido Democrata
desaprendeu o idioma falado pela maioria da sociedade. Trump é o fruto maduro
do programa identitário.
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