segunda-feira, 29 de setembro de 2025

Dentro do bunker. Por Demétrio Magnoli

O Globo

Eleitorado democrata nos EUA praticamente circunscreve-se às elites detentoras de diploma de educação superior

‘A classe trabalhadora é um grupo racista, xenófobo, misógino, ultrarreligioso e ignorante. A esquerda só pode recapturá-lo incorporando seus pontos de vista e desistindo de seus próprios valores de tolerância, equidade e empatia. O fato de que isso é intragável é a razão por que a humanidade sempre regressa a seu estado mais vil, autoritário e patriarcal.’

Os diagnósticos acima não partem de algum conhecido pensador, mas de um leitor de esquerda, no espaço de comentários do New York Times, junto a uma coluna de opinião sobre a perda da classe trabalhadora pelo Partido Democrata. São relevantes precisamente porque o leitor afirma com clareza aquilo que quase nunca fica explícito nos textos coreografados de líderes ou ideólogos. O leitor delineia uma visão profundamente pessimista sobre o futuro e reconhece implicitamente que os valores da esquerda pós-moderna a inviabilizam eleitoralmente.

A esquerda nasceu otimista, bem antes de Marx, e permaneceu assim até o passado recente. Seus porta-vozes falavam num arco redentor da História que conduziria ao progresso, ao bem-estar e à igualdade. Diante de insucessos, prometiam que a História (com maiúscula) teria a palavra final — e condenavam seus rivais à célebre “lata de lixo da História”. Nos Estados Unidos, o último arauto de peso dessa visão solar foi Obama, com seus chamados à unidade acima das divisões de classe ou raça.

Tradicionalmente, o pessimismo filosófico caracterizou a direita reacionária, que enxerga o pecado como traço definidor da alma humana: “O homem é o lobo do homem”. Contudo o advento da “nova esquerda” embaralhou as cartas. A inversão deriva da substituição ideológica que inaugura a esquerda pós-moderna: adeus aos trabalhadores, vivam as minorias.

A cartilha identitária trata a desigualdade econômica como implicação do racismo e do patriarcalismo. O inimigo deixa de ser um sistema para assumir a forma do “homem branco ocidental”, o colonizador dos “povos originários”. Sob a nova ótica, a classe trabalhadora (“branca”) passa a ser rotulada como “um grupo racista, xenófobo, misógino, ultrarreligioso e ignorante”. A postura equivale à edificação, pela esquerda, de um bunker em que ela reafirma seus valores, reclama superioridade moral e renuncia a persuadir uma maioria inerentemente corrompida.

Às vezes, fugindo aos roteiros encenados, lideranças políticas expressam a mentalidade de bunker. Na campanha de 2016, Hillary Clinton qualificou metade dos eleitores de Trump como uma “cesta de deploráveis”. No Brasil, sempre que perde uma eleição em São Paulo, o PT atribui o fracasso à “classe média fascista”.

Mas a febre identitária estende as sentenças condenatórias para além da fronteira racial. No ano passado, na campanha de retorno de Trump à Casa Branca, diante da constatação da hemorragia no voto dos negros em Kamala Harris, analistas de esquerda decidiram que a causa residia no machismo dos homens negros. Esqueceram, claro, que esse grupo votou em massa em Hillary Clinton.

Nos Estados Unidos, a transição rumo ao manual identitário rompeu a “coalizão do New Deal” que, desde a década de 1930, conectou o Partido Democrata à classe trabalhadora. Hoje, o eleitorado democrata praticamente circunscreve-se às elites detentoras de diploma de educação superior. O nacionalismo populista de direita navega nas águas pontilhadas pelos destroços de uma esquerda que dialogava com as pessoas comuns.

O governo Trump inclina os Estados Unidos na direção do autoritarismo. Violando as leis, deporta estrangeiros com visto válido. Sob o pretexto de combater o crime, envia a Guarda Nacional para patrulhar cidades. Ignorando a Primeira Emenda, manipula o assassinato do ativista de direita Charlie Kirk para calar vozes divergentes. Seguindo a trilha de Viktor Orbán e de Recep Erdogan, engaja-se na intimidação de juízes e em expurgos no aparato de administração estatal.

A marcha autoritária só encontra uma oposição fragmentada, carente de rumo. Trancado em seu bunker, o Partido Democrata desaprendeu o idioma falado pela maioria da sociedade. Trump é o fruto maduro do programa identitário.

 

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