Entrevista: Flavio Bartmann
Sérgio Dávila
Sérgio Dávila
DEU NA FOLHA DE S. PAULO
Para consultor brasileiro em Nova York, conjuntura atual é pior que a de 1929, desemprego pode bater em 10% nos EUA e levar a empobrecimento da população
FLAVIO BARTMANN , renomado economista que mora em Nova York há três décadas, diz que os norte-americanos sairão mais pobres da crise atual. Afirma ainda que culpar os derivativos pelo derretimento do mercado financeiro é coisa de "teóricos da conspiração" e que o desemprego deve chegar a 10% nos Estados Unidos antes de as coisas começarem a virar.O brasileiro é um dos raros espécimes que reúnem conhecimento teórico e prático. Lecionou nas universidades de Campinas e Columbia, em Nova York, onde vive atualmente.
Por duas décadas, Bartmann trabalhou nos bancos de investimento JPMorgan e Merrill Lynch em Frankfurt, Nova York e Londres. Hoje, é conselheiro de CEOs em reestruturação de corporações e gerenciamento de crises -ou seja, nunca trabalhou tanto. "A verdade é muito mais simples: os preços às vezes caem. Se você está muito alavancado, é grande a possibilidade de você perder todo o seu capital", disse à Folha, em troca de e-mails e telefonemas:
FOLHA - Como e quando a atual crise vai acabar?
FLAVIO BARTMANN - Vai depender das políticas fiscais dos EUA e das principais economias da Europa e da Ásia. Também, embora menos, da política monetária desses países. Mais importante, vai depender do comportamento do consumidor. As vendas desabaram nos últimos meses. As pessoas simplesmente deixaram de comprar qualquer coisa de que não precisam para viver e estão pagando suas dívidas rapidamente. Se essa tendência continuar, viveremos uma recessão prolongada. O melhor cenário é uma recuperação modesta na segunda metade do ano. Mas é fácil fazer previsões mais graves, com uma queda significativa durando pelo menos até o final de 2010 e taxas baixas de crescimento econômico permanecendo por vários anos.
FOLHA - Que tipo de capitalismo vai sobreviver a ela?
BARTMANN - Essa crise é grande, mas a estrutura básica do capitalismo contemporâneo não será afetada. Simplesmente porque não há alternativas viáveis. Algumas reformas significativas serão implantadas com o tempo. O sistema financeiro vai ser reestruturado. A alavancagem vai ser limitada a níveis mais razoáveis. Os riscos serão tomados de uma maneira mais transparente. Programas sociais nos EUA devem ser limitados. Os norte-americanos se tornarão mais pobres.
FOLHA - Acha que esse approach keynesiano -estimular a economia com gastos públicos e criação de emprego- funciona numa economia como a do século 21?
BARTMANN - Ainda é cedo para dizer. Estamos em território desconhecido. Os governos têm duas grandes ferramentas para lidar com a economia: política monetária e política fiscal. Não há muito mais o que possa ser feito no front monetário. Então não há outra escolha senão recorrer ao bom e velho gasto do governo. Há dois anos, o senso comum dizia que nós estávamos imunes a uma crise como a da Depressão. Essa visão estava errada. Muitos economistas, a maioria conservadores, pensaram que o papel que o governo central tinha de ter havia sido grandemente reduzido e que os grandes programas bancados pelo governo para estimular a economia e criar emprego eram uma coisa do passado. Eles estavam errados.
FOLHA - Muito se falou sobre os derivativos (operações financeiras cujas perdas e ganhos derivam da variação futura de um produto, um índice ou um ativo financeiro) e, na opinião de muita gente boa, como eles são os grandes culpados pelo derretimento do sistema financeiro. Warren Buffett chamou o recurso de "armas financeiras de destruição em massa". O sr. acha ingenuidade culpá-los. Por quê?
BARTMANN - Os derivativos não são diretamente responsáveis pelo derretimento do sistema financeiro. Eles não criam ou destroem valor. O ganho de uma das partes é contrabalançado pela perda da outra. No entanto, facilitaram grandemente as grandes estratégias do mercado usadas recentemente. A causa principal do colapso do sistema financeiro global reside na queda abrupta dos valores dos bens. O efeito da queda nos preços dos ativos é multiplicado pela alavancagem que existia nos balanços dos grandes bancos. Em muitos casos, o valor total dos ativos era 25 ou 30 vezes maior do que o capital. Uma perda média de 3% nos ativos, num banco alavancado 30 vezes, resulta na perda de 90% do capital. Essa alavancagem excessiva resultou em grandes perdas, que, por sua vez, levaram à insolvência de muitas das maiores instituições financeiras em várias economias.
FOLHA - Por que acha que os derivativos acabaram sendo os "bodes expiatórios", então?
BARTMANN - Há vários fatores envolvidos. É mais fácil para as pessoas que tiveram perdas colossais responsabilizarem outros fatores que não suas más escolhas. Como o público não entende derivativos, eles se tornam desculpas convenientes. Muitas pessoas também se deixam levar por teorias conspiratórias. Histórias sobre um punhado de nerds e banqueiros reunidos para criar instrumentos novos e perigosos que vão gerar lucros enormes e eventualmente destruir o sistema financeiro podem vender muito jornal, mas têm pouco a ver com a realidade.
Para consultor brasileiro em Nova York, conjuntura atual é pior que a de 1929, desemprego pode bater em 10% nos EUA e levar a empobrecimento da população
FLAVIO BARTMANN , renomado economista que mora em Nova York há três décadas, diz que os norte-americanos sairão mais pobres da crise atual. Afirma ainda que culpar os derivativos pelo derretimento do mercado financeiro é coisa de "teóricos da conspiração" e que o desemprego deve chegar a 10% nos Estados Unidos antes de as coisas começarem a virar.O brasileiro é um dos raros espécimes que reúnem conhecimento teórico e prático. Lecionou nas universidades de Campinas e Columbia, em Nova York, onde vive atualmente.
Por duas décadas, Bartmann trabalhou nos bancos de investimento JPMorgan e Merrill Lynch em Frankfurt, Nova York e Londres. Hoje, é conselheiro de CEOs em reestruturação de corporações e gerenciamento de crises -ou seja, nunca trabalhou tanto. "A verdade é muito mais simples: os preços às vezes caem. Se você está muito alavancado, é grande a possibilidade de você perder todo o seu capital", disse à Folha, em troca de e-mails e telefonemas:
FOLHA - Como e quando a atual crise vai acabar?
FLAVIO BARTMANN - Vai depender das políticas fiscais dos EUA e das principais economias da Europa e da Ásia. Também, embora menos, da política monetária desses países. Mais importante, vai depender do comportamento do consumidor. As vendas desabaram nos últimos meses. As pessoas simplesmente deixaram de comprar qualquer coisa de que não precisam para viver e estão pagando suas dívidas rapidamente. Se essa tendência continuar, viveremos uma recessão prolongada. O melhor cenário é uma recuperação modesta na segunda metade do ano. Mas é fácil fazer previsões mais graves, com uma queda significativa durando pelo menos até o final de 2010 e taxas baixas de crescimento econômico permanecendo por vários anos.
FOLHA - Que tipo de capitalismo vai sobreviver a ela?
BARTMANN - Essa crise é grande, mas a estrutura básica do capitalismo contemporâneo não será afetada. Simplesmente porque não há alternativas viáveis. Algumas reformas significativas serão implantadas com o tempo. O sistema financeiro vai ser reestruturado. A alavancagem vai ser limitada a níveis mais razoáveis. Os riscos serão tomados de uma maneira mais transparente. Programas sociais nos EUA devem ser limitados. Os norte-americanos se tornarão mais pobres.
FOLHA - Acha que esse approach keynesiano -estimular a economia com gastos públicos e criação de emprego- funciona numa economia como a do século 21?
BARTMANN - Ainda é cedo para dizer. Estamos em território desconhecido. Os governos têm duas grandes ferramentas para lidar com a economia: política monetária e política fiscal. Não há muito mais o que possa ser feito no front monetário. Então não há outra escolha senão recorrer ao bom e velho gasto do governo. Há dois anos, o senso comum dizia que nós estávamos imunes a uma crise como a da Depressão. Essa visão estava errada. Muitos economistas, a maioria conservadores, pensaram que o papel que o governo central tinha de ter havia sido grandemente reduzido e que os grandes programas bancados pelo governo para estimular a economia e criar emprego eram uma coisa do passado. Eles estavam errados.
FOLHA - Muito se falou sobre os derivativos (operações financeiras cujas perdas e ganhos derivam da variação futura de um produto, um índice ou um ativo financeiro) e, na opinião de muita gente boa, como eles são os grandes culpados pelo derretimento do sistema financeiro. Warren Buffett chamou o recurso de "armas financeiras de destruição em massa". O sr. acha ingenuidade culpá-los. Por quê?
BARTMANN - Os derivativos não são diretamente responsáveis pelo derretimento do sistema financeiro. Eles não criam ou destroem valor. O ganho de uma das partes é contrabalançado pela perda da outra. No entanto, facilitaram grandemente as grandes estratégias do mercado usadas recentemente. A causa principal do colapso do sistema financeiro global reside na queda abrupta dos valores dos bens. O efeito da queda nos preços dos ativos é multiplicado pela alavancagem que existia nos balanços dos grandes bancos. Em muitos casos, o valor total dos ativos era 25 ou 30 vezes maior do que o capital. Uma perda média de 3% nos ativos, num banco alavancado 30 vezes, resulta na perda de 90% do capital. Essa alavancagem excessiva resultou em grandes perdas, que, por sua vez, levaram à insolvência de muitas das maiores instituições financeiras em várias economias.
FOLHA - Por que acha que os derivativos acabaram sendo os "bodes expiatórios", então?
BARTMANN - Há vários fatores envolvidos. É mais fácil para as pessoas que tiveram perdas colossais responsabilizarem outros fatores que não suas más escolhas. Como o público não entende derivativos, eles se tornam desculpas convenientes. Muitas pessoas também se deixam levar por teorias conspiratórias. Histórias sobre um punhado de nerds e banqueiros reunidos para criar instrumentos novos e perigosos que vão gerar lucros enormes e eventualmente destruir o sistema financeiro podem vender muito jornal, mas têm pouco a ver com a realidade.
A verdade é muito mais simples: os preços às vezes caem. Se você está muito alavancado, é grande a possibilidade de perder tudo.
FOLHA - O sr. diz que o problema é estrutural. Por que não se percebeu esse problema estrutural antes? Falta de regulação? Ganho fácil?
BARTMANN - No nível mais básico, havia uma grande relutância de mudar o modelo de negócio que tinha sido bem-sucedido por muitos anos. Em time que ganha não se mexe. A falta de uma estrutura regulatória eficiente certamente piorou as coisas. A exigência muito limitada de transparência permitiu que bancos e outras instituições acumulassem grandes riscos não revelados. A estrutura de governança de Wall Street também encorajou a tomada de risco excessivo por parte de muitos corretores: se você acerta, faz fortuna; se não, perde seu bônus. Isso alimentou comportamentos inconsequentes. Por fim, tem havido, na última década, uma atitude muito relaxada sobre riscos.
FOLHA - O sr. diz que arrumar o sistema financeiro será "extremamente doloroso".
BARTMANN - A atual crise financeira é pior que a de 1929. Nós vimos as maiores instituições de crédito do mundo, Fannie Mae e Freddie Mac, falirem. O maior banco comercial, Citigroup, se tornou de fato insolvente por duas vezes nos últimos seis meses. Três dos maiores bancos de investimento de Wall Street acabaram. O processo de desalavancagem em curso resultou em centenas de bilhões de perdas nos bancos nos EUA e na Europa.
De maneira embaraçosa, os EUA e muitos governos europeus tiveram de implantar pacotes enormes para salvar o sistema bancário. Nos EUA, o Congresso passou o Tarp. Embora não seja politicamente correto se referir ao plano como tal, é uma nacionalização parcial do sistema financeiro nos EUA. Apenas a última, mas talvez a maior embaraçosa de uma lista longa da gestão Bush.
Arrumar o sistema financeiro e curar o paciente vai ser custoso. As vagas estão sendo fechadas num ritmo muito rápido. É possível que o desemprego atinja 10%, com mais 5 milhões de pessoas perdendo empregos. As perdas nos fundos de aposentadoria estão em trilhões de dólares, e os americanos viram o valor de suas casas desabar 30% nesse período. E não há luz no fim do túnel.
FOLHA - O sr. diz que o problema é estrutural. Por que não se percebeu esse problema estrutural antes? Falta de regulação? Ganho fácil?
BARTMANN - No nível mais básico, havia uma grande relutância de mudar o modelo de negócio que tinha sido bem-sucedido por muitos anos. Em time que ganha não se mexe. A falta de uma estrutura regulatória eficiente certamente piorou as coisas. A exigência muito limitada de transparência permitiu que bancos e outras instituições acumulassem grandes riscos não revelados. A estrutura de governança de Wall Street também encorajou a tomada de risco excessivo por parte de muitos corretores: se você acerta, faz fortuna; se não, perde seu bônus. Isso alimentou comportamentos inconsequentes. Por fim, tem havido, na última década, uma atitude muito relaxada sobre riscos.
FOLHA - O sr. diz que arrumar o sistema financeiro será "extremamente doloroso".
BARTMANN - A atual crise financeira é pior que a de 1929. Nós vimos as maiores instituições de crédito do mundo, Fannie Mae e Freddie Mac, falirem. O maior banco comercial, Citigroup, se tornou de fato insolvente por duas vezes nos últimos seis meses. Três dos maiores bancos de investimento de Wall Street acabaram. O processo de desalavancagem em curso resultou em centenas de bilhões de perdas nos bancos nos EUA e na Europa.
De maneira embaraçosa, os EUA e muitos governos europeus tiveram de implantar pacotes enormes para salvar o sistema bancário. Nos EUA, o Congresso passou o Tarp. Embora não seja politicamente correto se referir ao plano como tal, é uma nacionalização parcial do sistema financeiro nos EUA. Apenas a última, mas talvez a maior embaraçosa de uma lista longa da gestão Bush.
Arrumar o sistema financeiro e curar o paciente vai ser custoso. As vagas estão sendo fechadas num ritmo muito rápido. É possível que o desemprego atinja 10%, com mais 5 milhões de pessoas perdendo empregos. As perdas nos fundos de aposentadoria estão em trilhões de dólares, e os americanos viram o valor de suas casas desabar 30% nesse período. E não há luz no fim do túnel.
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