sábado, 28 de março de 2009

Partidos vazios

Marco Aurélio Nogueira
DEU EM O ESTADO DE S. PAULO


Se prestarem atenção nos dados divulgados pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE) semana passada, os partidos políticos têm bons motivos para se preocupar.

Em janeiro de 2008, cerca de 90% dos eleitores brasileiros não pertenciam a nenhuma legenda. Um ano depois, esse índice subiu para 91,6%. São 119,7 milhões de eleitores sem vínculos partidários. A comparação chama ainda mais a atenção quando se vê que o colégio eleitoral cresceu cerca de 2,9 milhões nesse período, ao passo que o número de não filiados aumentou 4,3 milhões.

A tendência é consistente. Afeta todas as legendas e ocorre em todas as unidades da Federação. A única exceção foi o PRB, partido próximo à Igreja Universal do Reino de Deus, que conseguiu passar de 121 mil para 157 mil filiados. Só o PMDB, maior partido do País, perdeu 14% de seus aderentes (cerca de 300 mil), porcentagem próxima à do PSDB, do DEM e do PT. Mesmo os micropartidos ideológicos, tipo PSTU e PCO, retrocederam cerca de 3%.

Como explicar isso? Estarão os partidos decepcionando os eleitores ou são estes que encontraram outra maneira de encaminhar suas reivindicações? O problema é institucional, pode ser resolvido com uma legislação eleitoral e partidária mais justa e adequada? Ou é de ordem moral, derivado do "excesso de corrupção" e dos "altos salários" que desgastariam a imagem dos políticos entre a população, como alega uma complicada corrente de opinião que vai da direita ultraconservadora à extrema-esquerda "revolucionária"?

Não há resposta cabal para o fato, mas é fácil visualizar suas consequências. O enfraquecimento da relação entre partidos e eleitores é um indício de que se afrouxaram os laços entre a sociedade e o sistema político. Pode ser que os cidadãos já não se importem tanto com o modo como são governados e prefiram se distanciar da democracia representativa. Sem eles, no entanto, a representação soluça e termina sob monopólio dos partidos, que se tornam seus únicos protagonistas, "donos" de suas regras e de seus resultados. Com isso, a política representativa se converte em atividade de profissionais que não são "vistos" pela sociedade e não se importam em trazê-la para o centro do palco.

A questão é delicada porque a democracia representativa continua sempre mais vital em sociedades complexas e multiétnicas como são as nossas. Nela, o fundamental papel de dar operacionalidade à política, às reivindicações sociais e às decisões de governo tem cabido aos partidos, que foram inventados precisamente para isso.

Os partidos se dedicam a organizar a chegada ao governo ou a oposição ao governo. Encarregam-se de criar condições para que os interesses parciais desta ou daquela classe evoluam, se encontrem com os interesses parciais de outras classes e deem origem a algum denominador comum que represente mais fielmente o conjunto. Mesmo as organizações de esquerda, que sempre se recusaram a limitar sua ação ao plano estrito do parlamento,
representam grupos sociais, dão voz a eles e podem agir como construtores de hegemonia, de novas orientações culturais. São os partidos e a luta entre eles dentro e fora do parlamento que possibilitam o processamento democrático das demandas e a estruturação de uma agenda de políticas.

Se os cidadãos os ignoram, temos um sinal de alerta, que soa forte quando percebemos que são ralas as chances da sociedade se autorrepresentar ou de resolver seus problemas pela via da "participação direta".

Para entender melhor a questão, temos de olhar para o modo como se vive. O esvaziamento dos partidos tem que ver com uma mudança profunda que está abalando a ordem social. Alguns sociólogos costumam usar a metáfora da "vida líquida" para se referir a isso, salientando a exacerbação de um antigo processo de "derretimento" que estaria a afetar tudo aquilo que há de "sólido" e instituído. Em decorrência, a incerteza e a insegurança tenderiam a amortecer o desejo de participação política dos cidadãos. Outros falam de "sociedade em rede" e dão destaque às tecnologias de informação, que, ao se tornarem experiência cotidiana, alteram a comunicação, o trabalho e a formação da consciência. Embaralhando os fluxos de decisão, numa dinâmica em que o econômico se sobrepõe ao político, a "sociedade em rede" faz com que os centros (os governos, os Estados, os partidos) percam potência e não consigam mais controlar espaços e pessoas, que, frustradas, deles se desinteressam.

Tais configurações casam com a individualização e a democratização típicas da nossa época, que "soltam" os indivíduos de seus grupos de referência e os incentivam a "pensar com a própria cabeça", ou seja, a agir e a decidir autonomamente, mesmo que segundo padrões definidos pela mídia ou pelo mercado. Perversas e sutis formas de controle se generalizam num ambiente onde tudo parece fora de controle. A obsessão por controlar (das pessoas à própria vida) convive paradoxalmente com o desejo ilimitado de liberdade.

As sociedades deixam assim de produzir adesões e lealdades simples, automáticas, tumultuando as identidades. Dá para imaginar como isso rebate na política.

Não precisamos levar essas hipóteses ao pé da letra, pois as mudanças sociais são assimétricas, espalham-se por tempos longos e demoram a ser captadas pelas instituições. Mas se tais explicações têm alguma serventia, é a de nos alertar para o que ocorre nos rios profundos que movem as sociedades. Servem para nos dizer que as instituições precisam mudar, que as práticas não podem permanecer rotinizadas, que a linguagem política tem de ser renovada dia a dia, independentemente de credos, livros ou heróis.

Ou a política democrática honra seu compromisso com a secularização e abandona os deuses que porventura já não falam a língua do tempo, ou arrisca-se a perder valor inapelavelmente.

Marco Aurélio Nogueira é professor titular de Teoria Política da Unesp.

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