segunda-feira, 29 de junho de 2020

Engrenagem de abusos perseguiu, matou, torturou e saiu impune

Comissão da Verdade apontou 434 mortos e desaparecidos, além de milhares de denúncias de abusos; Anistia descartou responsabilizar culpados

Bruno Boghossian | Folha de S. Paulo (28/6/2020)

BRASÍLIA - Dois dias após o golpe de 1964, o ex-sargento Gregório Bezerra foi preso no Recife. Dirigente do PCB, ele foi amarrado pelo pescoço e puxado pelas ruas da cidade, enquanto um oficial incentivava a população a linchá-lo.

Exibidas na TV local, as cenas simbolizaram a inauguração de um regime que adotou a repressão violenta como método. Pesquisadores retratam Bezerra como a primeira vítima de tortura do período.

Os casos registrados nos meses iniciais da ditadura foram tratados por integrantes do governo militar como um reflexo do "calor da hora". A prática, porém, foi adotada como ferramenta para interrogar e combater opositores, em especial personagens considerados subversivos.

A partir de 1968, a repressão violenta formatou uma estrutura dedicada a tortura, mortes e desaparecimento —até o início da abertura, na segunda metade dos anos 1970.

Os números da repressão são pouco precisos, uma vez que a ditadura nunca reconheceu esses episódios. Auditorias da Justiça Militar receberam 6.016 denúncias de tortura.

Estimativas feitas no terceiro Programa Nacional de Direitos Humanos, aprovado no governo Dilma Rousseff (PT), apontam para 20 mil casos.

Presos relataram terem sido pendurados em paus de arara, submetidos a choques elétricos, estrangulamento, tentativas de afogamento, golpes com palmatória, socos, pontapés e outras agressões. Em alguns casos, a sessão de tortura levava à morte.

Em 2014, a Comissão Nacional da Verdade (CNV) listou 191 mortos e o desaparecimento de 210 pessoas. Outros 33 desaparecidos tiveram seus corpos localizados posteriormente, num total de 434 pessoas.

Ditaduras que dominaram países vizinhos superaram os dados brasileiros. No Chile (1973-1989), o governo registrou mais de 3.000 mortos. Já na Argentina (1976-1983) foram acima de 30 mil vítimas."

Isso é tido, às vezes, como indicação de que a ditadura brasileira teria sido menos feroz ou absoluta. Não é verdade. A razão desse número é o absoluto controle que o governo tinha do processo repressivo", diz o advogado Pedro Dallari, que coordenou a CNV em 2013 e 2014.

Quando os primeiros casos de tortura foram registrados, ainda em 1964, a cúpula do regime adotou atitude tolerante.

Naquele ano, o presidente Castello Branco (1964-1967) determinou investigação. O chefe do gabinete militar, Ernesto Geisel, declarou que a repressão violenta ocorria em números reduzidos e havia parado. Ninguém foi punido.

"Quanto mais lenientes eram os comandos, mais se consolidava essa prática", diz a historiadora e cientista política Heloisa Starling. "Não era coisa de loucos, era um método."

Os atos violentos eram atribuídos a oficiais da "linha dura" que atuava nos porões da ditadura, especialmente nos Dops (Departamentos Estaduais de Ordem Política e Social) das polícias estaduais.

O regime estruturou um aparato para executar a repressão. O SNI (Serviço Nacional de Informações), criado em 1964 para coordenar atividades de inteligência, executava espionagem e monitorava atividades subversivas. As prisões e a tortura ficavam principalmente a cargo do CIE (Centro de Informações do Exército), de 1967.

Num passo para ampliar a violência, o AI-5, no ano seguinte, suspendeu a garantia de habeas corpus para suspeitos de crimes políticos contra a segurança nacional. Facilitou o trabalho de torturadores, que podiam manter inimigos do regime sob custódia.

O então coronel João Batista Figueiredo, que seria o último presidente da ditadura (1979-1985), resumia assim o ato: "Os erros da revolução foram se acumulando e, agora, só restou ao governo 'partir para a ignorância'".

O governo inaugurou também, em 1969, um núcleo para coordenar as ações de segurança. Criada em São Paulo, a Oban (Operação Bandeirante) tinha apoio financeiro de empresários paulistas.

O aparelho foi ampliado sob o general Emílio Médici (1969-1974). Em 1970, o governo fundou os DOIs (Destacamentos de Operações de Informações) e o Codi (Centro de Operações de Defesa Interna).

O binômio DOI-Codi simbolizou o combate repressivo e aprimorou a tortura. Havia celas que submetiam os presos a baixas temperaturas ou música alta. Os detidos eram imobilizados nas conhecidas "cadeiras do dragão", para a aplicação de choques elétricos.

Militante da Ação Popular (AP), a advogada Rita Sipahi foi presa em 1971. No DOI-Codi paulista, foi agredida, despida e recebeu choques na vagina. Os interrogadores queriam que ela revelasse a localização de integrantes dos movimentos de esquerda.

Pendurada no pau de arara, ela disse o endereço depois de alguns dias. "Já estava ficando com os dedos roxos. Eu me arrasei, porque não deveria falar. Mas as pessoas já tinham saído de lá, aquilo me deu força."

O uso da tortura e da violência era um dos pilares do regime após 1968. A repressão cresceu na medida em que o governo via focos de guerrilha se espalharem pelo campo e pelas cidades, com atos terroristas praticados por radicais.

A visão do enfrentamento era a justificativa dos ditadores, que se referiam à repressão como guerra ao terrorismo.

A violência da esquerda fez um número menor de vítimas. A conta é resumida por um levantamento do coronel reformado Carlos Alberto Brilhante Ustra, chefe do DOI de São Paulo nos anos 1970, acusado de torturas e assassinatos.

Ele lista 119 vítimas desses grupos, incluindo policiais e militares mortos em conflito, civis baleados em tiroteios e até casos em que a participação de opositores do regime não foi comprovada.

"Mesmo que aceitemos que havia uma guerra não convencional, existem ao menos três procedimentos violadores: torturar prisioneiros, sumir com os corpos de guerrilheiros e desencadear o terror sobre a população", diz Starling.

A máquina da repressão se especializou em aniquilar ações de guerrilha e terrorismo. Em 1969, matou Carlos Marighella, da Ação Libertadora Nacional, grupo que participou do sequestro do embaixador americano Charles Elbrick.

O regime ainda empreendeu um cerco a personagens emblemáticos, como o ex-capitão Carlos Lamarca.

Após desertar do Exército, ele se tornou protagonista da luta armada. Foi fuzilado em 1971, enquanto estabelecia base na Bahia.

A ditadura liquidou boa parte dos grupos armados. Em 1972, o Exército descobriu um foco guerrilheiro do PC do B na região do rio Araguaia.

Em duas ações, os militares derrotaram os combatentes, dois anos depois. Foram mortas ou desapareceram 63 pessoas, entre guerrilheiros e camponeses da região.

A repressão continuou com Ernesto Geisel (1974-1979). Um mês antes de assumir a Presidência, ele convidou o general Dale Coutinho para o Ministério do Exército. Numa conversa revelada décadas depois pelo jornalista Elio Gaspari, os dois discutiram o combate à subversão política.

"O negócio melhorou muito. Agora, melhorou, aqui entre nós, foi quando nós começamos a matar", afirma o futuro ministro. Geisel concorda: "Ó, Coutinho, esse troço de matar é uma barbaridade, mas acho que tem que ser".

O regime aprofundou o combate a organizações de esquerda a ponto de lotar a carceragem do DOI paulista. Para lá foi levado, em outubro de 1975, o jornalista Vladimir Herzog, militante do PCB. Encapuzado, espancado e submetido a choques elétricos, ele morreu no dia seguinte.

Os militares afirmaram que Herzog se enforcou com a "cinta do macacão" dos presos, embora os macacões do DOI não tivessem cinto.

A versão acobertava o assassinato durante tortura, com a participação de um médico legista que fraudou seu atestado de óbito, segundo acusações feitas anos depois.

A repercussão da morte de Herzog e outras figuras ampliou as cobranças pela abertura. A posição do governo dos EUA, a campanha da igreja e a oposição de entidades como a OAB pressionaram a ditadura.

A abertura foi conduzida sob o comando dos militares, com regras estabelecidas pela Lei da Anistia de 1979. Militantes de esquerda tiveram seus crimes perdoados, mas a legislação também protegeu agentes da repressão.

"É um legado de impunidade presente em nossas instituições até hoje", diz Lucas Paolo, do Instituto Vladimir Herzog.

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