segunda-feira, 29 de junho de 2020

Sergio Lamucci - O derretimento da demanda privada

- Valor Econômico

Garantir uma trajetória fiscal sustentável será essencial para manter os juros em níveis baixos, um trunfo decisivo para a retomada

O primeiro semestre chega ao fim com a certeza de que 2020 vai registrar o maior tombo do Produto Interno Bruto (PIB) da história brasileira, e com muitas dúvidas sobre as perspectivas de recuperação da atividade. Há grande incerteza sobre a reação de famílias e empresas, muitas das quais vão sair machucadas da crise, num cenário marcado pela resposta desastrosa do governo federal à pandemia da covid-19 e pelo relaxamento prematuro do isolamento social por vários Estados e municípios. Além disso, o cenário político segue outra fonte de incerteza.

As medidas para combater os efeitos da doença levarão a uma forte piora das contas públicas, necessária num quadro de forte retração da economia, mas que terá de ser enfrentada a partir do ano que vem. O déficit primário deve superar 10% do PIB, e a dívida bruta tende a encostar em 100% do PIB. Será preciso retomar o ajuste fiscal a partir de 2021, obviamente não de modo abrupto, mas de maneira a indicar a sustentabilidade das contas públicas. Com isso, os juros poderão continuar baixos, o que será essencial para estimular a demanda e facilitar a dinâmica do endividamento do setor público e do setor privado, como ressalta o economista-chefe da corretora Tullett Prebon, Fernando Montero.

Em suas análises, Montero tem afirmado que o baque na economia não decorre tanto da perda de rendas na pandemia que, “ao contrário, são mais que substituídas por despesas e transferências públicas financiadas com endividamento público”. Segundo ele, “foi a propensão ao gasto privado - o consumo e o investimento - que derreteu, antes que sua renda”. É claro que há muitos casos de perda de renda durante a crise, mas Montero avalia que o tamanho total da expansão de despesas e transferências é superior a essa queda. “Haverá aumento no endividamento líquido de parte da sociedade, que gastará mais que sua renda. Mas haverá outra parte que gastará menos.”

Montero considera que o aumento do déficit primário (não inclui gastos com juros) vai injetar mais dinheiro na economia do que a crise vai subtrair. Segundo ele, o déficit primário do setor público consolidado deverá sair de R$ 64 bilhões nos 12 meses até março para cerca de R$ 800 bilhões nos 12 meses até dezembro. “Isso comporta de abril a dezembro de 2020 uma piora de R$ 736 bilhões em relação a esses meses de 2019”, observa ele. “Esse é o adicional de gastos e transferências líquidas de rendas públicas no remanescente deste ano.” No mesmo período, o PIB nominal deverá cair R$ 373 bilhões. Com isso, a política fiscal injetará R$ 736 bilhões a mais de gastos e rendas líquidas nos três últimos trimestres de 2020 em relação a 2019, num PIB nominal que cairá algo como metade disso.

Para Montero, “a retração não é um problema primordialmente de oferta, que derruba a renda dos trabalhadores, levando consigo o seu consumo; fosse isso, os programas emergenciais resolveriam”. Economia, diz ele, é circulação. “No pós-pandemia, o que a política econômica precisa retomar é a propensão a gastar.”

Essa conjuntura não vai registrar apenas a maior queda histórica do PIB, mas também a maior e mais rápida piora fiscal, escreve Montero. “A combinação diz respeito a uma quebra na demanda privada interna a todas as luzes atroz. A economia vai demorar a recuperar essa demanda privada e, pior, precisará fazê-lo com a retirada desse fortíssimo estímulo fiscal.” Esse é o tamanho do desafio, que não pode prescindir do ajuste das contas públicas a partir de 2021, segundo Montero. “Mas é precisamente esse vento de frente, vindo da necessidade de ancorar o fiscal, que abre o espaço e a necessidade de continuar testando os limites da política monetária”, acrescenta. Ele vê espaço para os juros, hoje em 2,25% ao ano, caírem para 1,5%. E, para que as taxas sigam em níveis baixos, será preciso retirar os estímulos fiscais.

Na visão de Montero, o melhor retrato para o resultado primário está nas contas do secretário do Tesouro, Mansueto Almeida, cuja estimativa de um corte contratado de despesas em 2021, “em obediência ao teto de gastos, deve já alcançar os R$ 400 bilhões”. Para sair do buraco, serão necessárias políticas agressivas de juros e de crédito, assim como a retomada da agenda de reformas, avalia ele. “À medida que as âncoras fiscais se sustentem, o espaço e a necessidade para menos juros crescem muito”, diz Montero, reiterando que “a política monetária poderá não ser a condição suficiente, mas será absolutamente a condição necessária”. Para ele, estratégias alternativas de retomada que questionem essas âncoras fiscais, hoje resumidas especialmente no teto de gastos, precisariam compensar os impactos das incertezas sobre a curva de juros e o risco-país, o que exigiria “promessas de multiplicadores fiscais poderosíssimos, difíceis de enxergar”. Ou seja, aumentos de despesas públicas teriam que provocar um efeito muito forte sobre a economia para contrabalançar os impactos negativos sobre os juros futuros e os prêmios de risco.

A saída da crise será complicada, a começar pelo fato de a reabertura precoce da economia poder levar ao recrudescimento da doença, exigindo a adoção de novas medidas rigorosas de isolamento mais à frente. O desemprego deve subir com força e muitas empresas de menor porte tendem a quebrar, por não conseguir acesso ao crédito.

Tornar permanente o auxílio emergencial de R$ 600 por mês é insustentável, mas ele deve ser estendido por alguns meses com valores menores, e há discussões para a adoção de um programa de transferência de renda mais amplo que o Bolsa Família, uma medida bem-vinda. Seria importante financiá-lo com o fim de subsídios e com a tributação maior da renda dos mais ricos, mas não é uma tarefa politicamente simples.

A política fiscal não terá como ser expansionista em 2021. O teto de gastos, que limita o crescimento das despesas da União, é um mecanismo que pode ser aperfeiçoado, mas mexer nele agora traz riscos que podem ser contraproducentes. O investimento público caiu para níveis muito baixos, que não cobrem nem a depreciação do estoque de capital do setor público. É importante encontrar espaço para aumentá-lo, enfrentando a rigidez dos gastos obrigatórios, como os de pessoal. Mas o investimento público não vai crescer com força de uma hora para outra, por causa da dificuldade de execução de projetos pelo setor público e dos limites do orçamento. Garantir uma trajetória sustentável para as contas públicas será essencial para manter os juros em níveis baixos, um trunfo decisivo para a retomada, ainda que não seja suficiente, como diz Montero.

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