No modo de ver as coisas dos que se querem realistas quando, no centro democrático e na centro-esquerda, aceitam como definitiva a bipolarização hoje fotografada por pesquisas, subjaz certa preocupação em não se atrasar para o embarque no navio lulista, apresentado como uma espécie de arca de Noé. Afinal, a eleição presidencial não é solteira e estão em jogo mandatos de governador e senador, o que recomenda atenção imediata à formação de coalizões nos estados. Além disso, o espectro de gente do centrão costeando o alambrado da arca também recomenda agilidade aos candidatos a deputado ainda não alinhados. Porém, noves fora essa compreensível ansiedade pragmática, se bem analisados os argumentos públicos usados nesse campo, fica curioso ver admitir-se que Bolsonaro pode derreter e, ao mesmo tempo, justificar-se o apoio antecipado a Lula como se fosse um imperativo democrático pois, sem ele no segundo turno, a reeleição seria praticamente certa. Vejo motivos para avaliar como imprudente o pragmatismo implícito nessa confusa conduta proativa.
Antecipei, na
coluna passada (“A política entre universos paralelos”, de
08.05), que “na mão oposta à das previsões fatalistas, penso estar se
configurando, no universo da política sistêmica, uma aceleração de movimentos
de convergência para oferecer, às forças que se despregam, ou podem se
despregar, do combo bolsonarista, uma alternativa eleitoral que não as afaste
do eleitorado afim ao seu posicionamento político”. Chamei esse campo
de liberal, ou centro-direita. Agora tentarei ser mais explícito.
Na
adjetivação ideológica que usei se inclui o antipetismo. Fora dessa adjetivação
(mas próximo a ela, especialmente na pauta econômica) vinha estando um
conservadorismo social básico que convive de forma tensa com uma visão liberal
dos costumes e das relações sociais. Esses movimentos convergentes têm conexões
empresariais economicamente relevantes, mas também uma crescente aceitação numa
classe média e de trabalhadores mais jovens do setor privado menos tradicional.
Seu peso eleitoral tem se mostrado grande, desde 2014, em eleições nacionais,
estaduais e municipais.
Forçando
um pouco a mão, diria que esse campo tende a uma polarização de novo tipo com a
percepção da esquerda mais enraizada no eleitorado, que é a do PT, a qual,
graças a Lula, não deverá perder a sua posição hegemônica até 2022. Por
contraste, no campo oposto à esquerda, do qual estou falando, não há predomínio
partidário claro, mas nota-se, há mais de uma década, movimentos de capacitação
do DEM para ocupar esse lugar. A escassa maturidade do processo não permite
afirmar que 2022 será o do salto a esse patamar. Mas não deve passar
despercebido que o DEM dispõe, para uma eventual composição na eleição
presidencial, de quadros para o caso de uma articulação que se dirija ao
centro, tangenciando mesmo a centro-esquerda, ou para uma solução dissidente do
esquema governista, que eventualmente possa herdar boa parte do espólio
bolsonarista, em caso de derretimento da popularidade do chefe
Independentemente
das suas preferências políticas, quem se preocupa com a saúde da democracia
será levado a saudar o surgimento de uma opção de centro-direita capaz de
deslocar Bolsonaro da posição de polo. Isso, inclusive, induziria Lula a disputar
o centro também pela via do discurso político, em vez de apenas semear cunhas
nos bastidores enquanto fala como salvador da pátria e propagandeia seu paraíso
passado. A busca, por atores da centro-direita, de uma opção não governista
alternativa à de Lula fará bem ao país, ganhem ou percam a eleição para ele. O
PSD de Kassab – autêntico ator de pequena política - tanto pode ficar nela e cumprir
o papel de dissidente do centrão embarcado na arca de Noé, quanto o de aliado
do DEM na busca dessa opção de centro-direita, que, sem deixar de ser filha da
pequena política, poderá ir além e apontar uma saída que considere seu umbigo,
mas não se resuma a ele. Como a política não é a seara do mero desejo, é bom
ponderar que, enquanto a fortuna eleitoral de Bolsonaro não se definir, possibilidades
de uma articulação como essa dar certo não ficarão explícitas.
A
conservação ou o desgaste do capital eleitoral do presidente é, assim, a
variável central a determinar maior ou menor largueza do horizonte do chamado
centro. É óbvio que se essa variável decisiva se comportar na direção da
reanimação de Bolsonaro (em linha com a agitação crescente no seu universo
político paralelo dos comícios, lives, marchas, inaugurações e provocações) a
resultante é a confirmação das versões fatalistas que apontam para a
polarização entre ele e Lula. Mas em caso da variável tomar a direção oposta,
indo do atual desgaste à erosão e dela à evaporação eleitoral do mito, cabe uma
reflexão sobre o timing. Quanto mais cedo um desgaste irreversível se
der, mais os agentes políticos próximos ao palácio (como o PSD e outras áreas
do centrão) e um partido independente, como o DEM, tendem a ser o centro de
gravidade de uma opção competitiva que procure se apresentar como centrista,
assim como fará Lula na centro-esquerda. Quanto mais o desgaste de Bolsonaro for
incremental – como tem sido – mais espaço haverá para uma solução política mais
ampla, que aponte a uma candidatura de fato centrista e frentista, com um
candidato de perfil liberal democrático e um programa de viés
social-democrático. Nessa hipótese, a possível repercussão sobre o script de
Lula seria a de levá-lo a prestar mais atenção na sua retaguarda à esquerda,
que poderá ser fustigada por um candidato de centro menos marcado com o carimbo
“eles”, tão ao gosto do petismo para ter conforto. Nesse enquadramento
analítico pode-se discutir agora o possível papel do PSDB, partido de larga
história e presente estreito.
Faz
tempo – a rigor desde que Fernando Henrique Cardoso deixou o governo e o PT o
ocupou e lá se vão quase vinte anos – que o PSDB se desloca cada vez mais ao
campo liberal em economia e ao da centro-direita em política. Isso em termos
práticos, não programáticos. Desse modo, não é estranho que não disponha, nesse
momento, de um nome com perfil sequer aproximado ao da origem do partido. O
nome que de fato está à sua disposição tem perfil diverso.
A
desconfortável performance do governador João Dória, em pesquisas dentro
do seu estado, parece estar levando a que desista de vez da reeleição e a apostar
numa fuga para a frente. No seu estilo fortemente obstinado e autocentrado de
fazer política, desafia a má vontade do partido e segue buscando a indicação
para a candidatura presidencial, como quem trabalha com a linha do menor
desgaste para a sua imagem. Essa conduta é possível não só pela obstinação, ou
pelo fato de dispor de recursos de persuasão e pressão inerentes a quem governa
São Paulo. Resulta também do cada vez mais claro fato de que não há no partido nome
para concorrer com o seu. Sem discutir aqui méritos pessoais do governador
Eduardo Leite ou do senador Tasso Jereissati, uma observação realista da cena
não pode desconsiderar que são políticos com mandatos a renovar em 2022.
Desistir de uma reeleição provável em seus estados para embarcar numa
empreitada presidencial é uma decisão incomum no mundo real da política, a
menos que haja largo conforto nas previsões de chances de vitória, o que não é bem
o caso.
Nessas
condições não se pode ver como animadora, para o PSDB, a perspectiva das
prévias marcadas para outubro. Caso ocorram mesmo, dificilmente cumprirão o
papel de derrotar João Dória. A opção, para evitar o nome do governador - objetivo
que une em coalizão de veto praticamente todas as lideranças históricas do
partido (por menos próximas e apaziguadas que estejam elas entre si) -, só pode
ser a de propor uma política nacional de alianças diferente da que tem seguido
desde quando foi, em 2002, deslocado para a oposição. Em resumo, não ter
candidato e tornar-se centro fiador de uma frente. Para construir uma canoa
dessa é preciso paus de boa cepa que têm sido queimados nas fumaças que emanam
do ninho tucano. De há muito tem-se a impressão incômoda de que ali o
ex-presidente Fernando Henrique prega no deserto. Mas os fragmentos históricos ainda
podem influir, se vencerem as idiossincrasias que os dispersam e prodigamente
dilapidam o capital político da legenda. Ao menos eleitoralmente, esse capital
continua relevante, como ficou claro nas eleições municipais de 2020. O que tem
faltado é liderança de grande política, capaz de sintonizar os interesses do
partido com os do país.
Nas
três eleições presidenciais seguintes à derrota de 2002 (em 2006, 2010 e 2014) o
PSDB foi o polo que reuniu, em segundos turnos, as oposições ao PT. Em 2018 não
foi capaz de trocar os pneus em plena viagem. Desertou do papel político que
assumira como núcleo articulador do impeachment de Dilma Rousseff. Em
vez de se apresentar ao eleitorado como principal força política responsável
pelo governo de transição, procurou desvincular sua imagem daquele governo, tática
malsucedida diante da óbvia e gritante coincidência entre as suas pautas e as
daquele. O drible de corpo cobrou seu preço nas urnas, não obstante a dignidade
do seu candidato. As três derrotas acumuladas, a saída do PT do governo e a intensa
pressão da lava jato sobre o conjunto da política “tradicional”, fazendo
emergir o bolsonarismo, somaram-se a essa miopia política para levar à perda da
antiga condição de polo. O PSDB dilui-se, hoje, numa nuvem mais ou menos
invertebrada que tenta se identificar como centro. De incontestada segunda via
tornou-se uma entre as incertas opções de uma terceira.
Lucidez
e alguma humildade não fariam mal e ajudariam aquele partido a ler corretamente
a situação. Relativos êxitos em eleições municipais não fabricam candidaturas
presidenciais competitivas. O palanque aí é plebiscitário e impõe requisitos de
carisma ausentes hoje no plantel tucano. Mas olhando ao redor é possível achar
um parceiro que possua um quadro que os atenda. Aqui não cabe fulanizar a
análise, que não pode querer ensinar pai nosso a vigário. O ponto que trago tem
a ver com virtudes do PSDB, não com suas fragilidades. É inegável que, além de
quadros políticos estaduais e municipais, o partido ainda se conserva como
referência nacional importante do eleitorado do centro democrático também pelo
fato de ter, no seu entorno, gente capaz de formular ideias compatíveis com a
qualidade da democracia política, mas também com o momento mundial de ênfase em
redirecionamento de matrizes e objetivos econômicos e de reestruturação dos
estados nacionais para mobilizar investimento robusto em políticas sociais. A
sintonia do ideário formal do partido com essas exigências mundiais
gritantemente inadiáveis para superar a crise nacional ficam evidentes na
leitura do documento “Brasil pós-pandemia: uma proposta de reconstrução do
futuro”, disponível no site do Instituto Teotônio Vilela.
Antes
que apressados protestem, digo que não estou cogitando que um partido político
qualquer possa se contentar com um papel formulador próprio de centros de
debate intelectual. Trata-se é de encontrar vocalizadores politicamente viáveis
para fazer suas melhores ideias influírem sobre decisões do eleitorado e de governo.
E o modo prático de sintonizar um partido que disponha dessa possibilidade com
as demandas da sociedade e do eleitorado é apostar numa política de alianças
compatível com o fato de que valores da primeira e necessidades do segundo
convergem, no momento, para um ideário social democrático que dorme nas
prateleiras internas do partido. Tirá-las dali para que trafeguem na política
(na grande e na pequena) só pode ser obra de grande política, capaz de ler que
o eleitorado destinatário tem votado de modo relevante na centro-direita.
O
que será mais realista? Inventar um quadro que pretenda reverter essa tendencia
do eleitorado ou oferecer à centro-direita o programa social-democrático de que
ela necessita, nessa conjuntura social e sanitária crítica, para sustentar sua
sintonia embaixo? Sem esforço, os leitores entenderão que me refiro a uma virtual
repactuação entre PSDB e DEM, com provável capacidade de atrair também o MDB,
dissuadindo-o de um vôo solo. Ao contrário de 1993/94, o contexto
2021/22 pede orientação social do Estado, em vez de liberalismo econômico. Ao
contrário do eleitorado de 1994, o viés da atitude do eleitor é a
centro-direita, em vez de centro-esquerda. No tempo em que uma frente da
centro-direita à centro-esquerda fez FHC presidente, o PFL forneceu o programa
econômico e o PSDB entrou com o quadro político capaz de realizá-lo nas
circunstâncias daquele momento. Quem duvidar disso leia o projeto detalhado que
o partido antecessor do DEM preparou para a abortada revisão constitucional de
1993 e confira com o que o governo FHC aprovou no Congresso, ou adotou no
Executivo, nos anos subsequentes. A conclusão inescapável será a de que ideias podem,
sim, conversar com a política prática. Aquele arranjo vitorioso esteve longe de
ser mera obra de pequena política.
Os
dados do mundo real estão a sugerir aos atores de centro e de centro-direita a
inversão dos termos de 1994 para produzir concertação análoga. Nenhum partido
pode elaborar com mais agilidade e profundidade que o PSDB um programa em
sintonia fina com um olhar “baideniano” sobre o Brasil e o mundo. Com amplitude
capaz de agregar segmentos da centro-esquerda e lhes garantir lugar numa composição
política para a chapa presidencial e/ou para as soluções estaduais. Por outro
lado, nenhum partido está, objetivamente, mais bem postado que o DEM, no
espectro político-eleitoral, para sediar a face externa dessa possível
agregação, porque é aquele que pode, com a sua posição, tirar o continuísmo de
tempo, ou seja, do segundo turno nessa eleição. Eventos na contramão da
agregação - como a recente captura do vice-governador de São Paulo pela tática pré-eleitoral
do governador - podem ocorrer a todo momento e precisarão ser enquadrados, digo
melhor, neutralizados, em sua miudeza, por uma perspectiva estratégica. Seria
muito bom para o Brasil. Já se será o melhor possível para o Brasil é assunto
para os eleitores decidirem em 2022. Afinal, a esquerda também estará no jogo,
com força, legitimidade e, espera-se, com proposições críveis e perspectiva
estratégica.
Para
concluir não custa relembrar a variável decisiva, que é a popularidade de
Bolsonaro. Cooperar para derretê-la é questão de sobrevivência comum, nacional
e social. Mas a escolha do método é questão em aberto. Quem quiser que se
forme, como alternativa a ele e à esquerda, uma aliança mais conservadora, deve
se apressar para tirá-lo do caminho logo e capturar dissidentes. Quem, dentro
do espectro do chamado centro democrático, quiser apostar em solução mais
ampla, capaz de sensibilizar também um eleitorado de centro-esquerda, precisará
reunir grande e pequena política em vez de priorizar um tiro ao alvo imediato e
cego contra o capitão. Precisará mais de uma ambiciosa paciência do que de
espetáculos arrojados e projetos de heróis. Concertação demora, mas sua obra
dura.
*Cientista político e professor da UFBa.
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