CartaCapital
Os delírios de um Projeto de Lei no Senado
vão criar esquizofrenia no circuito monetário financeiro nacional
O senador Oriovisto Guimarães (PSDB–PR)
propõe um Projeto de Lei para estabelecer um limite à dívida pública federal.
Em sua proposta, ultrapassado o teto de 80% da dívida pública em relação ao
Produto Interno Bruto, o governo federal estaria sujeito a penalização de um
ajuste primário extra na despesa de 25% nos primeiros quatro meses após o
estouro da meta. Hoje seria, por exemplo, entre cerca de 150 bilhões e 200
bilhões de reais a mais no orçamento federal.
Seria interessante observar as relações entre a dívida pública e a dívida privada ao longo dos ciclos de expansão e contração da atividade econômica. O endividamento de empresas e famílias expande-se nos períodos de crescimento e “confiança”. Os bancos, sob a supervisão e regulação dos Bancos Centrais, emprestam às empresas e às famílias “gastadoras”.
No movimento de ampliação da renda e da
riqueza, as empresas recorrem aos mercados financeiros para emitir títulos de
dívida e direitos de propriedade (ações), assim como as instituições
financeiras bancárias e não bancárias emitem títulos nos mercados monetários de
curto prazo, para capturar as poupanças e os saldos monetários das empresas e
famílias, valores acumulados ao longo dos sucessivos circuitos de gasto–emprego–renda
e lucros.
Uma queda acentuada dos gastos do
investimento e do consumo afeta negativamente a formação da renda e dos lucros,
atirando ao buraco as expectativas empresariais. As políticas anticíclicas
destinam-se a defender os fluxos de produção, os preços dos ativos e a validade
das dívidas, sustentando a liquidez e o lucro. Visam preservar as condições
patrimoniais e de risco, inclusive tornando possíveis os movimentos de
portfólio na direção de maior liquidez.
Uma conjuntura de redução dos gastos de
investimento e consumo só poderá ser contida com a intervenção do Estado,
habilitado a incorrer em déficit e dívida pública. Nas recessões e, mais ainda,
nas depressões, a dívida pública invade os portfólios das instituições
financeiras para garantir o valor e a liquidez da riqueza dos privados. Salvos
da desvalorização dos ativos e das carteiras de dívida que carregavam, os
bancos privados e outros intermediários financeiros salvaguardam seus
patrimônios, incorporando títulos públicos com rendimentos reduzidos, mas valor
assegurado. O Estado, como gestor da moeda (e da dívida), susta uma
desvalorização desastrosa da riqueza.
Na Seção II da Lei de Diretrizes
Orçamentárias da Lei Complementar de 2000, da Lei de Responsabilidade Fiscal,
diz o seguinte:
§ 4º A mensagem que encaminhar o projeto
da União apresentará, em anexo específico, os objetivos das políticas
monetária, creditícia e cambial, bem como os parâmetros e as projeções para
seus principais agregados e variáveis, e ainda as metas de inflação, para o
exercício subsequente.
§ 5º No caso da União, o Anexo de Metas
Fiscais do Projeto de Lei de Diretrizes Orçamentárias conterá também: (Incluído
pela Lei Complementar nº 200, de 2023) Vigência
I – As metas anuais para o exercício a
que se referir e para os 3 (três) seguintes, com o objetivo de garantir
sustentabilidade à trajetória da dívida pública; (Incluído pela Lei
Complementar nº 200, de 2023) Vigência
II – O marco fiscal de médio prazo, com
projeções para os principais agregados fiscais que compõem os cenários de
referência, distinguindo-se as despesas primárias das financeiras e as
obrigatórias daquelas discricionárias; (Incluído pela Lei Complementar nº
200, de 2023) Vigência
III – O efeito esperado e a
compatibilidade, no período de 10 (dez) anos, do cumprimento das metas de
resultado primário sobre a trajetória de convergência da dívida pública,
evidenciando o nível de resultados fiscais consistentes com a estabilização da
Dívida Bruta do Governo Geral (DBGG) em relação ao Produto Interno Bruto (PIB).
Pelo idioma pátrio, o português, parece óbvio
que já existe na lei um dispositivo de controle sobre a dívida pública federal.
Parece óbvio que já existe na lei um
dispositivo de controle sobre a dívida pública federal
Os delírios desse Projeto de Lei no Senado
Federal vão criar esquizofrenia no circuito monetário financeiro nacional. As
Letras Financeiras do Tesouro Nacional (LFTs), consideradas um ativo livre de
risco, que possui liquidez imediata e garantia de recompra pelo Tesouro, nobre
senador, é uma moeda remunerada à taxa de juro. Falamos de uma moeda com juro
diário que representa quase 48% da composição da dívida pública mobiliária
federal.
Não custa avisar: os fundos de pensão e
seguridade, sejam públicos, privados, abertos e fechados, carregam em suas
carteiras Notas do Tesouro Nacional Tipo B (NTN–B), que hoje representam ao
redor de 28% do total da dívida pública. Senador, se o senhor tiver tempo, que
deve ser escasso no dia a dia do Senado Federal, dê uma olhada nos ativos dos
bancos nacionais: nas carteiras das instituições financeiras os títulos
públicos são os ativos de última instância, derradeira garantia nos episódios
de crise. A dívida pública é o lastro de todo o sistema de crédito nacional.
Cerca de 90% da dívida pública federal está nas mãos de credores nacionais,
seguradoras, fundos de investimento, bancos e fundos de pensão.
A crise financeira de 2008 ofereceu a
oportunidade de se examinar a resposta da política econômica à desorganização e
ao pânico dos mercados. O Federal Reserve mobilizou o Quantitative Easing (QE),
que trouxe à tona o que se movia nos subterrâneos: a articulação estrutural
entre o sistema de crédito, a acumulação financeira-produtiva das empresas e a
gestão monetária e fiscal do Estado norte-americano.
O QE ressaltou, ademais, a importância da
expansão da dívida pública para o saneamento e recuperação dos balanços das
instituições financeiras. Salvos da desvalorização dos ativos podres que
carregavam e agora empanturram o balanço dos Bancos Centrais, os bancos
privados e outros intermediários financeiros garantiram a qualidade de suas
carteiras e salvaguardaram seus patrimônios, carregando títulos públicos com
rendimentos reduzidos, mas valor assegurado. Os títulos dos Tesouros com
rendimentos pífios não cessavam de atrair a volúpia dos investidores
apavorados.
Publicado na edição n° 1384 de CartaCapital, em 22 de outubro de 2025.
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