Folha de S. Paulo
A continuidade entre a exploração das
prefeituras na ditadura e a de agora é a cultura como forma parasitária de
existência
Há um fio de continuidade entre
determinados episódios sob o regime militar e os atuais shows de cantores ditos sertanejos, financiados por prefeituras que dilapidam os seus orçamentos precários,
desviando verbas da saúde e da educação.
Esse fio são os pagamentos astronômicos para algo que se apregoa
publicitariamente como "cultura". Na época, o "espetáculo"
não era musical, mas a reprodução em revistas coloridas das benesses auferidas
por remotos municípios nordestinos como consequência dos supostos avanços
promovidos pelo regime.
Não eram atividades mediadas por um publicitário ou um jornalista qualquer: o produtor detinha excepcionais condições de pressão, a exemplo de contatos com figuras poderosas, senão a intimidação por meio de documentos especiais, para coagir os ordenadores de despesas de pequenas localidades.
Os resultados eram edições especiais a
cores destinadas a fixar a imagem festiva da transformação das condições de
vida locais. Chantagem desse peso poderia arruinar por anos um pequeno
orçamento municipal. Mas a mediocrização autocrática justificava-se com o nome
da cultura, entendida como divulgação e entretenimento.
Um primeiro problema é que
"cultura" é noção ao mesmo tempo vital e ambígua. Classicamente,
impôs-se como o vínculo existencial que os homens mantêm entre si, articulado
como uma totalidade que desenha o espaço-tempo de uma sociedade, logo, as
funções institucionais que orientam comportamentos e atitudes.
Por complexa que pareça, essa noção
espelhou-se sempre na literatura e nas artes, ajudando a formar cívica e
espiritualmente a consciência do homem moderno. Os atos de perceber, sentir,
pensar, conhecer e fazer convergem para um "comum", que é o centro
aglutinador das instituições e o lugar de produção do sentido social. É isso
precisamente o que a modernidade tem chamado de cultura.
Essa aglutinação implica evidentemente
hegemonia, ou seja, o poder por consenso. Foi essa a porta de entrada da mídia
eletrônica para a conquista de mentes por meio da demagogia e da lógica dos grandes números. Nessa vasta
operação batizada de "soft power", as formas culturais mais
rebaixadas passaram a disputar o jogo da hegemonia. Simplificadoras,
anestesiantes, quase sempre se confundem com a propaganda do poder em
exercício.
Daí a importância de políticas culturais contra-hegemônicas articuladas com a educação e a criatividade, como no excepcional período dos "pontos de cultura" de Gilberto Gil e Juca Ferreira. Mas daí também, por efeitos perversos, o fio de continuidade protofascista entre a exploração das prefeituras no passado e a de agora: a cultura como forma parasitária de existência.
*Sociólogo, professor emérito da UFRJ,
autor, entre outras obras, de "A Sociedade Incivil" e "Pensar
Nagô".
Um comentário:
Tudo isso pra dizer que o pop-sertanejo que invadiu o Brasil não é cultura,concordo.Pegar um livro pra ler ninguém quer.
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