O Estado de S. Paulo
Nunca descobri quem teve a ideia de fazer
do poema de Verlaine a senha da maior e mais secreta operação militar
Já devo ter dito aqui que considero 6 de
junho de 1944 o dia mais importante da história da humanidade. O nascimento de
Jesus, pule de dez na maioria das escolhas, ainda suscita controvérsias, ao
passo que o Dia D tem data certa; comprovadamente aconteceu na madrugada do
sexto dia do sexto mês do penúltimo ano da 2ª. Guerra
Mundial, quando as forças aliadas invadiram a Europa pela Normandia
e apressaram o fim do Reich nazista.
Há toda uma mitologia em torno da invasão
sobre a qual não me canso de ler, ouvir em arquivos radiofônicos da internet e
ver em imagens. Foi a Operação Overlord que fez das quatro primeiras e ominosas
notas da Quinta Sinfonia de Beethoven (sol-sol-sol-fá) as mais famosas
do repertório clássico e celebrizou no mundo inteiro a poesia de Paul Verlaine
– noves fora as fotos tiradas pelo húngaro Robert Capa durante o
desembarque em Omaha Beach, parcialmente danificadas por uma suposta
barbeiragem dos laboratoristas da revista Life.
O Mais Longo dos Dias, épico multiestrelar produzido pela Fox em 1962, ajudou a popularizar ainda mais o tchan-tchan-tchan-tchan da Quinta e a primeira estrofe da Chanson de l’Automne. Gerações anteriores à minha, brasileiros inclusive, sabiam-na de cor. Carlos Heitor Cony era um deles. Nunca descobri quem teve a ideia de fazer do poema de Verlaine, publicado em 1866, a senha da maior e mais secreta operação militar de todos os tempos. Por que uma canção outonal se a invasão da Normandia ocorreria, como ocorreu, na primavera? Por que não “as neves de antanho” de François Villon, por exemplo? Minha primeira e única suspeita: em 1944 comemorava-se o centenário de Verlaine.
Quando O Mais Longo dos Dias foi
lançado no Rio, Cony, meu colega de redação no jornal Correio da Manhã, pegou
o hábito de passar por minha mesa, tirar o cachimbo da boca, e, sem alterar o
passo, declamar: “Les sanglots longs/des violons/de l’automne” (Os longos
lamentos dos violões do outono). E eu, sem tirar os olhos da máquina de
escrever, emendava automaticamente: “Blessent mon coeur/ d’une longueur
monotone” (enchem meu coração de um torpor monótono). Seria uma plaisanterie
privada se quase toda a redação já não tivesse assistido ao filme.
Fiel à transmissão daqueles versos pela Rádio Londres, instalada na BBC e único elo da França ocupada com a França Livre, exilada na capital britânica, assimilei até o “je répète” usado pelo locutor alsaciano Franck Bauer entre as estrofes, duas vezes repetidas, conforme combinado com os integrantes da Resistência. Conheço seis traduções brasileiras da Canção do Outono. Alphonsus de Guimaraens, Onestaldo de Pannafort e Guilherme de Almeida assinaram as três primeiras. Gosto especialmente dos “violões lentos” de Paulo Mendes Campos e Antonio Cícero. Todas acessíveis pelo Google.
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