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Constituição maltratada
O Estado de S. Paulo
Ao emendar a Carta e mexer no sistema tributário por imperativos eleitorais, sem pensar no futuro, Brasil cria insegurança e desestimula investimentos
Em um país onde 33,1 milhões de
pessoas passam fome diariamente, a obsessão de Jair Bolsonaro com os
combustíveis já seria suficientemente ofensiva. Para além do fato de que a
proposta de reduzir impostos para conter preços é altamente regressiva, a forma
que o governo escolheu para colocar seu plano populista em prática representa
um ataque à Constituição e ajuda a explicar as razões pelas quais o País não
cresce há tantos anos. Mirando nos combustíveis, um governo que foi eleito sob
o discurso “mais Brasil, menos Brasília” está disposto a ferir de morte o pacto
federativo, arranjo institucional que garantiu aos Estados autonomia para
definir um tributo que representa sua principal fonte de arrecadação, e, em
reação previsível, parlamentares apresentaram uma Proposta de Emenda à
Constituição (PEC) para garantir compensação aos Estados.
A Constituição não é obra pronta e
certamente está sujeita a atualizações. Tanto é verdade que deputados e
senadores promulgaram 122 emendas constitucionais entre 1988 e 2022. Foram 22
nos três anos e meio de Jair Bolsonaro – um fenômeno, considerando o rito de
tramitação e o quórum qualificado que as PECs exigem. Mas esse mesmo governo
que conta com maioria no Congresso foi incapaz de aprovar as necessárias
reformas para destravar a economia.
Propostas que visam a uma ampla reforma tributária na Câmara (PEC 45/2019) e no Senado (PEC 110/2019) repousam nos escaninhos do Congresso. A construção de texto que dê fim ao manicômio tributário que vigora no País passa por um acordo entre União, Estados e municípios, mas pontes importantes que poderiam ser utilizadas na busca de um imposto único sobre bens e serviços foram queimadas pelo governo federal ao impor o teto do Imposto de Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS) na marra. A reforma administrativa (PEC 32/2020) permanece intocada desde que saiu de uma comissão especial em setembro do ano passado, sem qualquer perspectiva de ir à votação no plenário da Câmara. Por outro lado, articulações entre Senado e Judiciário apontam apoio ao retorno do anacrônico quinquênio a ser cristalizado na maltratada Constituição, e voltou a circular no Legislativo uma proposta que tira o poder das agências reguladoras. A quem e para que tem servido essa maioria parlamentar?
A forma como o mundo privado interpreta e
reage a esses movimentos varia conforme os setores. Aqueles mais diretamente
afetados pela imposição de um teto para o ICMS sobre bens essenciais, por
exemplo, anseiam por sua aprovação. Com a inflação nos níveis em que está,
qualquer migalha pode representar um alívio momentâneo na inadimplência e
contribuir com as receitas de empresas que já atuam no País há muitos anos. É
uma visão de curto prazo e focada em extrair benefícios próprios em um momento
politicamente conturbado. Por outro lado, o Brasil está fora do mapa mundial
das grandes transformações e do avanço tecnológico pós-pandemia. Estudo
divulgado pelo Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getulio Vargas
(Ibre/FGV) aponta que a taxa de investimentos no Brasil deve ficar em 18,4% do
PIB neste ano, menor que a registrada em 139 países. O mundo investirá US$ 140
bilhões nos próximos dois anos para resolver o problema global da escassez de
semicondutores, talvez o item mais importante para a indústria atualmente, mas
segundo reportagem publicada pelo Estadão, nenhum quinhão foi reservado ao
Brasil.
Investimentos relevantes para a economia
são decididos de olho em um horizonte de médio e longo prazos. Estabilidade é
condição mínima para convencer investidores a aportar recursos em qualquer
país, bem como o respeito ao marco jurídico, legal e regulatório.
Lamentavelmente o Brasil colhe o que planta quando a Constituição é alterada ao
sabor dos interesses eleitorais, as alíquotas de um dos impostos mais
relevantes do sistema tributário são definidas na base do grito e as reformas
estruturais ficam para as calendas. Sem crescimento, até problemas que pareciam
superados como a fome voltam a assombrar o País.
Uma frustrante Cúpula das Américas
O Estado de S. Paulo
Longe de integrar política e economicamente as Américas, a Cúpula expôs a desagregação causada peloisolacionismo dos EUA e o populismo latino-americano
Quando os EUA promoveram a primeira Cúpula
das Américas, em 1994, em Miami, o país era o parceiro econômico dominante de
uma América Latina na crista da onda da redemocratização e oxigenada por uma
lufada de liberalismo. Na pauta, um pacote ambicioso de acordos comerciais
culminando com a Área de Livre Comércio das Américas (Alca) que se entenderia
do Alasca à Terra do Fogo. Quase três décadas depois, na segunda Cimeira
recebida pelos EUA, em Los Angeles, o contraste não poderia ser maior.
Não por falta de desafios: a recuperação
pós-pandemia, os retrocessos democráticos e a resposta à crescente insegurança
alimentar resultante da guerra de Vladimir Putin exigiam engajamento e unidade
das lideranças nas Américas.
Mas nas semanas que antecederam a Cúpula,
ao invés de intensas rodadas de discussões, o que se viu foi o anfitrião
pelejando para confirmar a lista de convidados sob as promessas vagas de uma
“Parceria para a Prosperidade Econômica” e uma declaração de imigração.
Esta última, do ponto de vista doméstico
dos EUA, era a mais relevante. Mas malogrou com o boicote de Honduras, El
Salvador, Guatemala – o Triângulo do Norte, de onde sai a maioria dos
imigrantes – e, sobretudo, do México, devido à insatisfação do presidente
Manuel López Obrador com a recusa dos EUA de convidar Cuba, Nicarágua e
Venezuela.
Outro tema do qual se passou ao largo é o
narcotráfico. A América Latina é a maior fonte de cocaína do mundo. Na
pandemia, um surto da economia ilegal empoderou o crime organizado, que cada
vez mais transforma presídios em enclaves, agravando a violência e a corrupção.
A ausência do México – que, além de ser a
principal porta da imigração ilegal e das drogas, é também o principal aliado e
parceiro comercial dos EUA na região – é o sinal maior do declínio da influência
econômica e política dos EUA na América Latina.
Destroços do naufrágio da Alca poderiam ser
utilizados – como foram por Colômbia, Chile ou Peru – para articular condições
favoráveis para a troca de bens, serviços e talentos, criando a estabilidade
institucional que os investidores esperam. Mas o maior “sucesso” da Cúpula foi
uma declaração protocolar sobre práticas regulatórias, assinada por apenas 14
países. Hoje, é a China o principal parceiro comercial da região, e sua
participação tende a crescer.
Ainda mais esvaziada que a pauta comercial
é a da infraestrutura. Os EUA, que frequentemente denunciam a opacidade dos
contratos chineses, tinham a oportunidade de discutir as condições para
restabelecer a participação do setor privado norte-americano na infraestrutura
latino-americana e fazer uma contraoferta. Mas também isso ficou no ar.
Se a ausência do México sinalizou a
debilidade dos EUA na região, a participação de Jair Bolsonaro sinalizou a
debilidade do presidente Joe Biden.
Em tese, ambos conseguiram o que queriam em
seu primeiro encontro bilateral. Biden evitou a ausência da maior economia e
democracia da América Latina. Bolsonaro conseguiu uma foto para provar à
opinião pública brasileira que não está isolado no palco global.
Na prática, Bolsonaro revelou mais uma vez
sua falta de credenciais diplomáticas e desídia pelos interesses nacionais.
Previsivelmente, foi o último a chegar e o primeiro a sair e, ao invés de
aproveitar o encontro para conquistar ganhos concretos – como a revisão das restrições
à importação de aço impostas por seu ídolo Donald Trump –, transformou-o em
mais um palanque eleitoral para criticar as políticas sanitárias dos
governadores, insinuar dúvidas sobre o sistema eleitoral e conjurar seus
fantasmas sobre a soberania da Amazônia. Biden, o homem mais poderoso do mundo,
teve de se restringir a elogios genéricos à proteção da Amazônia e à democracia
brasileira – ambas degradadas por Bolsonaro.
Esse “diálogo de surdos”, como definiu o
ex-embaixador em Washington Rubens Barbosa, foi a expressão maior de uma cúpula
cada vez mais esvaziada por uma combinação do isolacionismo norte-americano,
dos neopopulismos latino-americanos e da presença cada vez maior de
Pequim.
Perde-se muita água num país carente
O Estado de S. Paulo
Desperdício de 40% da água tratada impõe custos para todos e retarda o cumprimento de metas do saneamento
A crescente preocupação mundial com o
risco de escassez de água e o acúmulo de dados sobre o desperdício no Brasil da
água tratada não têm sido suficientes para mudar uma preocupante tendência dos
sistemas de saneamento básico no País. A perda de água nos sistemas de
abastecimento cresce há anos e não há sinais de que isso esteja mudando. A
produção atual já seria mais do que suficiente para abastecer toda a população
brasileira se a rede de distribuição cobrisse integralmente todas as áreas que
podem ser atendidas e, sobretudo, se não houvesse tantas perdas.
Em 2016, estimava-se em 38,1% o volume de
água tratada que se perdia no processo de distribuição; o índice cresceu e, no
ano passado, alcançou 40,1%. São números
do levantamento patrocinado pelo Instituto Trata Brasil. A gradual
redução desses índices impõe desafios e exigências de maior eficiência ao setor
de saneamento básico.
O volume que se perde seria suficiente para
abastecer regularmente mais 66 milhões de brasileiros. Como as estatísticas
mostram que 35 milhões de pessoas não contam com água encanada nem para lavar
as mãos, vê-se que o País já produz mais do que o suficiente para atender 100%
da população. Mas não consegue alcançar essa meta por deficiências no sistema
de distribuição.
É como se, nessa questão, o País andasse em
sentido contrário às exigências crescentes do mundo. Impulsionadas pela
percepção da sociedade dos impactos das mudanças climáticas e das incertezas a
respeito dos ciclos das chuvas, as autoridades na maioria dos países dedicam
atenção especial à poupança e ao uso controlado da água potável.
Desperdícios como os observados no Brasil –
maiores do que os de países como Camarões (39,5%), África do Sul (33,7%), Etiópia
(29%) e Reino Unido (20,5%) – impõem custos adicionais para todos. Na América
Latina, reconheça-se, há países em situação pior do que a do Brasil. Mesmo
assim, se o País reduzisse as perdas para 25%, o volume poupado seria
suficiente para abastecer cerca de 40 milhões de brasileiros. E, do ponto de
vista do impacto ambiental, o volume economizado da água retirada da natureza
ajudaria a manter cheios os rios e reservatórios.
O estudo considera como perdas o volume de
água produzido que deixa de ser faturado por fraudes na medição ou por
vazamentos e outras deficiências da rede de distribuição. A presidente do
Instituto Trata Brasil, Luana Siewert Pretto, diz que os novos dados deixam
evidente que “não foram implantadas soluções eficientes para resolver a
questão”.
Há consequências pesadas. Como lembrou a presidente do Instituto, investem-se bilhões em estações de tratamento de água e de adutoras que não precisariam ser construídas se as perdas fossem reduzidas. Também a meta de universalização do fornecimento de água tratada seria alcançada mais facilmente. E, sobretudo, mais brasileiros passariam a contar com esse serviço essencial para lhes assegurar condições de habitação e de preservação da saúde, sobretudo das crianças, mais condizentes com o século 21.
Contra preços, inépcia
Folha de S. Paulo
Ofensiva de Bolsonaro fica mais cara e
tosca, incluindo apelo aos supermercados
A carestia de alimentos e energia é
problema social e econômico grave. Estados cobram impostos excessivos sobre
combustíveis e eletricidade; o ICMS é um tributo de normas caóticas. A receita
do governo federal e dos estados de fato cresceu, em parte por causa justamente
da escalada da inflação.
Com base nesse diagnóstico óbvio, Jair
Bolsonaro (PL) e aliados no Congresso propõem
medidas ineptas com objetivo de mascarar os problemas até o fim
deste ano. Pretendem reduzir impostos federais e, na marra, estaduais.
De modo ainda mais tosco, Bolsonaro e seu
ministro da Economia, Paulo Guedes, exortaram
supermercados a conterem margens de lucro e preços até o fim
deste 2022.
As soluções aventadas, demagógicas,
constituem uma espécie de pedalada fiscal em sentido amplo. Isto é, gasta-se
agora e alguém paga a conta depois, sabe-se lá como.
O pacote de impostos implica, em princípio,
a perda de ao menos R$ 60 bilhões apenas neste ano e pode, de fato, provocar
alguma redução de preços. Parte do alívio tributário encerra-se no final do
ano.
Em 2023, no entanto, os impostos voltam, o
que terá impacto na inflação e mais problemas para que o Banco Central cumpra
sua meta, com efeito altista nas taxas de juros. Caso o desconto tributário
persista, a dívida pública aumentará —o governo já é deficitário e toma
empréstimos até para pagar despesas correntes.
A desoneração tributária também estimula o
consumo desses bens escassos. Há risco de falta mundial de diesel, perigo
agravado no Brasil por causa das pressões contra reajustes da Petrobras. A
certo preço, importadores deixam de comprar o produto.
A medida, por fim, é socialmente injusta.
Bolsonaro fará dívida extra para beneficiar também os mais ricos, que por sua
vez financiarão o déficit extra do governo a taxas de juros ora crescentes.
A receita de todos os níveis de governos
tem crescido muito, mas o fenômeno é temporário. Cresce o risco, portanto, de
se gestar nova crise dos estados, como se viu a partir de 2015. Decerto, muito
governo estadual gasta mal, mas abrir súbitos rombos em suas contas não é um
bom plano de reforma.
Essas políticas casuísticas e as pressões
demagógicas para que empresas contenham preços, enfim, desacreditam a
administração pública, prejudicam o crédito do país e reduzem investimentos.
Ainda que naufraguem, tais projetos podem
servir à propaganda oficial. É costume de Bolsonaro se eximir de
responsabilidades e de atribuir a outrem problemas causados por sua
negligência. Se os preços não baixarem, a culpa será atribuída aos
governadores, como na pandemia, ou aos empresários.
Jogo truncado
Folha de S. Paulo
Impasse para a criação de liga expõe atraso
organizacional do futebol brasileiro
Há décadas o futebol brasileiro debate-se
com graves problemas de gestão. Em contraste com sua capacidade de revelar
talentos e seu histórico vitorioso em Copas do Mundo e disputas internacionais
de diversas categorias, o Brasil no quesito organizacional é um fiasco.
Clubes endividados, jogadores transferidos
para a Europa antes mesmo de se estabelecerem nos torneios locais, sobreposição
irracional de competições, corrupção e amadorismo persistente atestam a
inoperância de parte significativa de dirigentes e entidades.
É verdade que, aos trancos e barrancos,
alguns passos importantes têm sido dados, como o Brasileiro no sistema de
pontos corridos e o investimento de clubes —nem sempre de forma responsável,
diga-se— em centros de treinamento e arenas modernas.
Mais recentemente, em agosto do ano
passado, nova lei criou um meio de transformar clubes em empresas, a Sociedade
Anônima do Futebol (SAF), e vai se desenhando a possibilidade da fundação de
uma liga de clubes, que assumiria a administração e a comercialização de
torneios, nos moldes do que se observa na Europa.
A criação da liga, contudo, esbarra em
desavenças sobre a distribuição dos recursos, que já provocaram uma acirrada
divisão entre as principais agremiações das séries A e B do campeonato
nacional.
Embora exista a expectativa de que o
entendimento e o bom senso venham a prevalecer, não se pode descartar um
fracasso, em se tratando de um meio que tem dado provas continuadas de
incapacidade de se profissionalizar.
Os diagnósticos sobre as deficiências já
foram produzidos e o mapa do que precisa ser feito é sobejamente conhecido. As
providências elementares são a elaboração de um calendário racional, que
respeite a integridade física dos atletas e as chamadas datas Fifa, reservadas
às disputas entre seleções.
É fundamental também adotar critérios
equilibrados de distribuição de receitas de modo a contemplar os clubes de
maior apelo, mas sem deixar ao abandono os demais.
Caso queiram superar o renitente
subdesenvolvimento num terreno em que há plenas condições para prosperar, os
dirigentes do futebol brasileiro precisam pensar a atividade como um todo,
tornando-a sustentável e lucrativa.
Lamentavelmente, muitos insistem em
disputas paroquiais e míopes, que apenas atrasam a desejável mudança de
patamar.
Seria absurdo adiar o Censo mais uma vez
O Globo
É atribuição do Judiciário mediar
conflitos, mas às vezes decisões bem-intencionadas acabam por criar impasses. É
o caso da determinação da Justiça Federal do Acre para que o Censo do Instituto
Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), previsto para começar em 1º de
agosto — com dois anos de atraso —, inclua perguntas sobre orientação sexual e identidade de gênero. O
IBGE prometeu recorrer. O Censo está novamente sob risco de adiamento. Seria
péssimo para os quase 215 milhões de brasileiros.
Os dados revelados no Censo ajudam a traçar
o mais bem-acabado retrato do país. Quantos são os brasileiros, quem são, onde
moram, como vivem, quais são suas condições de vida, o contingente de
invisíveis etc. É a partir desses dados que o governo federal, estados e
municípios formulam políticas públicas nas mais diversas áreas.
Os números servem de base também para
repasses da União a estados e municípios. São ainda fundamentais para todas as
pesquisas de opinião, eleitorais e outros tipos de trabalho científico. Não há
como ter confiança em nenhuma política que não esteja baseada nesse retrato
fiel do país.
O Censo ora mergulhado em discussões
estéreis deveria ter sido feito em 2020, respeitando o intervalo de dez anos (o
último é de 2010). Devido à pandemia, foi adiado para 2021. Por não ter sido
incluído no Orçamento do ano passado, acabou empurrado para 2022 e, mesmo
assim, só ganhou impulso por intervenção do Supremo Tribunal Federal (STF).
A decisão do juiz federal Herley da Luz
Brasil exigindo perguntas sobre identidade de gênero e orientação sexual
atendeu a uma ação do Ministério Público Federal do Acre. No pedido, o MPF
alega que fazer o Censo sem incluí-las impediria a formulação de políticas
públicas voltadas à população LGBTQIA+. É um argumento discutível, pois existem
outros critérios para a implementação dessas políticas.
Ainda que a reivindicação possa ter mérito,
é preciso considerar que o Censo não começou a ser planejado ontem. É preparado
desde 2016. Seria muito mais lógico que o problema tivesse sido levantado no
momento da confecção dos questionários, não quando os pesquisadores estão
prestes a sair às ruas. Não é difícil imaginar a complexidade de uma pesquisa
que tem como meta chegar a todos os lares de um país de dimensões continentais.
O IBGE tem toda a razão ao argumentar que uma mudança desse porte não pode ser
implementada de uma hora para outra.
Segundo o instituto, a única alternativa
para incluir novas perguntas com “técnica e metodologia responsáveis e
adequadas” e “os cuidados e o respeito que o tema e a sociedade merecem” é
adiar o Censo. Uma mudança a dois meses do início previsto significaria levar a
campo “um questionário não estudado, não testado e com equipe não devidamente
treinada”. Evidentemente, isso não interessa a ninguém.
O IBGE afirma ainda que a mudança teria
“impacto financeiro severo” no orçamento de R$ 2,3 bilhões, obtido a duras
penas. Também aumentaria o tempo de coleta e diminuiria a produtividade do
recenseador. Mexer agora no Censo, diz o instituto, poria em “risco
considerável” a principal pesquisa do país. Por tudo isso, a decisão da Justiça
Federal do Acre precisa ser revista. Atrasar mais uma vez o Censo, prolongando
o inaceitável apagão estatístico no país, é uma aberração que a população
brasileira não merece.
É imperativo investigar cachês pagos a
artistas por prefeituras
O Globo
Ao contestar o pagamento de um cachê de R$
704 mil ao cantor sertanejo Gusttavo Lima, o Ministério Público da Bahia
despertou uma discussão relevante sobre as prioridades nos gastos públicos e a
falta de transparência nas despesas com cultura e entretenimento. Os 15 mil
habitantes de Teolândia, no sul da Bahia, estão desde o ano passado em estado
de emergência, devido à destruição provocada pelas fortes chuvas na região.
Isso não impediu que a prefeitura contratasse Lima para um show com inegáveis
conotações políticas. Para a Festa da Banana, noticiou o portal g1, estariam
ainda acertados R$ 500 mil para outros quatro shows. Nas redes sociais, a prefeita
Maria Baitinga de Santana (Progressistas), conhecida como Rosa, confessou o
sonho de conhecer Lima.
Em Roraima, o MP estadual também instaurou
investigação sobre R$ 800 mil pagos a Lima pela prefeitura de São Luiz (8 mil
habitantes), 32% deles em extrema pobreza. Procuradores fluminenses examinam as
bases do cachê de R$ 1 milhão do cantor arcado pela cidade de Magé (246 mil).
Em Conceição do Mato Dentro (17 mil), Minas Gerais, Lima estava prestes a
faturar R$ 1,2 milhão pela participação na 32ª Cavalgada do Jubileu do Senhor
Bom Jesus do Matozinhos. As partes, porém, rescindiram o contrato “de comum
acordo”. Melhor assim.
Ele está longe de ser o único beneficiado
pela prodigalidade das prefeituras. Como é ano eleitoral, a suspeita é que
parlamentares usem, para bancar cachês de artistas com afinidades políticas em
suas bases, as emendas apelidadas “Pix”, pela facilidade na liberação, dispensa
de apresentação de projetos ou prestação de contas.
A revelação despertou controvérsia na
classe artística. Do palco em Sorriso, Mato Grosso, o cantor Zé Neto fez uma
referência desairosa a Anitta dizendo que os artistas sertanejos “não dependem
da Lei Rouanet”. Fãs da cantora foram às redes sociais retrucar. A própria
Anitta revelou que fez shows contratados por municípios. Em entrevista ao
“Fantástico”, contou ter recebido pedidos para superfaturar recibos, com a
finalidade de desviar dinheiro público — e afirmou ter recusado.
A Lei Rouanet não pode ser equiparada aos
cachês pagos por prefeituras. Enquanto estes derivam do mecanismo opaco que
dispensa licitação, os recursos da Rouanet são obtidos apenas por projeto
aprovado pela Secretaria de Cultura, que passe pela Comissão Nacional de
Incentivo à Cultura (CNIC). O dinheiro não sai diretamente do bolso do
contribuinte, mas vem do apoio de empresas e pessoas físicas, que podem abater
o incentivo do seu Imposto de Renda.
Em ambos os casos, a lisura precisa ser a mesma — de artistas, empresários e produtores. Mas a Lei Rouanet é mais transparente, portanto menos sujeita a desvios de finalidade. As diversas investigações do Ministério Público sobre os cachês pagos pelas prefeituras são mais que justificadas, por tentar trazer um mínimo de transparência ao universo nebuloso que cerca o uso de dinheiro público em espetáculos com artistas milionários.
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