quarta-feira, 8 de outubro de 2025

Não está na hora de criticar o pensamento crítico? Por Wilson Gomes

Folga de S. Paulo

A leitura militante da 11ª tese de Marx mais atrapalha que ajuda

Há militância de sobra; falta quem entenda e explique o mundo com honestidade

Comecemos com um jogo bem conhecido. Você parte do mês de nascimento, do dia em que nasceu e da inicial do nome; o algoritmo entrega o "título crítico" do seu projeto de pesquisa ou artigo. Exemplo: "Epistemologias interseccionais na resistência ao racismo estrutural." Outro: "Corpos-territórios queer na resistência à necropolítica." Ou então: "Performatividades decoloniais na resistência à ciência eurocêntrica".

Nesse jogo de combinações dá para produzir, em série, 1.728 títulos indistinguíveis no que importa: objeto, método, evidência e novidade. São todos perfeitos para sinalizar pertencimento à tribo certa —no caso, a esquerda progressista. E ainda é fácil variar os termos, a depender do público.

O truque é simples. Primeiro, um substantivo-selo de prestígio ("saberes", "vivências", "epistemologias", "corpos-territórios"). Depois, o marcador identitário ("interseccionais", "decoloniais", "afrodiaspóricos", "queer"). Em seguida, o conectivo providencial —"na resistência a/ao" ou equivalente—, que distingue o autor como sujeito crítico, engajado em fazer deste um mundo melhor. Por fim, um inimigo total ("necropolítica", "racismo estrutural", "pacto da branquitude", "patriarcado"). Pronto: um título blindado, cuja força está menos em dizer o que será estudado e como e mais em informar de que lado você está e que deseja "mudar a realidade".

Em ambientes de hegemonia progressista, esses clichês são levados a sério. Não como piada interna, mas como régua de prestígio. O resultado é conhecido: tudo, de ideias a pessoas, passa a valer mais pela sinalização de virtude que emite do que pelo que explica.

E, no entanto, o mundo que supostamente queremos investigar e transformar fica cada vez mais distante. As pessoas comuns não falam assim. Quando decifram o enigma, veem desperdício de tempo e recursos —especialmente diante da urgência de problemas concretos: emprego, escola que funcione, fila no posto de saúde, segurança no ônibus, serviço público previsível.

"Mas é pensamento crítico", dirão. É. E aqui está a parte menos engraçada. Por trás do gerador de jargões há uma história intelectual poderosa: a glorificação da 11ª tese de Marx sobre Feuerbach —"Os filósofos têm apenas interpretado o mundo; o que importa é transformá-lo".

Ao longo do século 20, muita gente leu isso como imperativo moral para converter a vida científica ou intelectual em atividade militante. A interpretação e a explicação —que sustentam o etos científico— passaram a ser tratadas como atividades normativamente menores, ociosas ou cúmplices. Ideias, cursos, livros e pesquisas passaram a ser julgados por sua capacidade declarada de "transformar o mundo" conforme a pauta da tribo, não por sua competência em analisar a realidade.

De onde vem essa régua? Há um longo caminho até essa atitude virar pedagogia social. A oposição, por exemplo, entre a "teoria tradicional" a "teoria crítica" instalou a primazia de um saber que se justifica por fins emancipatórios. Depois, a contraposição entre "pesquisa administrativa" e crítica desenhou um mapa moral do campo: explicar para prever, gerir e criar competências soava como projeto cúmplice do "sistema"; explicar para desnaturalizar ganhava prestígio.

Nos projetos pedagógicos "críticos", a escola virou laboratório de consciência: formar sujeitos críticos passou a importar mais do que domínio de conteúdo, método e cumulatividade. Daí títulos, ementas e chamadas de projeto valerem mais pelo alinhamento moral do que pela capacidade de esclarecer como o mundo funciona.

No mundo real, porém, quem ambiciona transformar precisa, antes, dizer o que está em jogo, por quais mecanismos, com quais evidências e em que condições a intervenção funciona. Sem isso, a pauta "crítica" vira simplesmente outro nome para militância.

Não se trata de neutralidade perfeita, e sim de honestidade: professores, cientistas e certos trabalhadores intelectuais, como jornalistas, têm a obrigação de evitar que inclinações ideológicas comprometam a qualidade do trabalho. Isso se traduz em práticas: separar honestamente hipótese e preferência, expor métodos, aceitar refutação, ajustar conclusões aos dados, declarar conflitos de interesse e resistir à tentação de confundir "serve à minha causa" com "é verdadeiro".

Em tempos de hiperpolarização, esse esforço não é ornamento —é o que sustenta a confiança pública no trabalho intelectual. Gente querendo modificar o mundo não falta; o que anda em falta é mão de obra honestamente dedicada a entendê-lo e explicá-lo direito.

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