Folga de S. Paulo
A leitura militante da 11ª tese de Marx mais
atrapalha que ajuda
Há militância de sobra; falta quem entenda e
explique o mundo com honestidade
Comecemos com um jogo bem conhecido. Você
parte do mês de nascimento, do dia em que nasceu e da inicial do nome; o
algoritmo entrega o "título crítico" do seu projeto de pesquisa ou
artigo. Exemplo: "Epistemologias interseccionais na resistência ao racismo estrutural."
Outro: "Corpos-territórios queer na resistência à necropolítica." Ou
então: "Performatividades decoloniais na resistência à ciência eurocêntrica".
Nesse jogo de combinações dá para produzir, em série, 1.728 títulos indistinguíveis no que importa: objeto, método, evidência e novidade. São todos perfeitos para sinalizar pertencimento à tribo certa —no caso, a esquerda progressista. E ainda é fácil variar os termos, a depender do público.
O truque é simples. Primeiro, um
substantivo-selo de prestígio ("saberes", "vivências",
"epistemologias", "corpos-territórios"). Depois, o marcador
identitário ("interseccionais", "decoloniais",
"afrodiaspóricos", "queer"). Em seguida, o conectivo
providencial —"na resistência a/ao" ou equivalente—, que distingue o
autor como sujeito crítico, engajado em fazer deste um mundo melhor. Por fim,
um inimigo total ("necropolítica", "racismo estrutural",
"pacto da branquitude", "patriarcado"). Pronto: um título
blindado, cuja força está menos em dizer o que será estudado e como e mais em
informar de que lado você está e que deseja "mudar a realidade".
Em ambientes de hegemonia progressista, esses
clichês são levados a sério. Não como piada interna, mas como régua de
prestígio. O resultado é conhecido: tudo, de ideias a pessoas, passa a valer
mais pela sinalização de virtude que emite do que pelo que explica.
E, no entanto, o mundo que supostamente
queremos investigar e transformar fica cada vez mais distante. As pessoas
comuns não falam assim. Quando decifram o enigma, veem desperdício de tempo e
recursos —especialmente diante da urgência de problemas concretos: emprego,
escola que funcione, fila no posto de saúde, segurança no ônibus, serviço
público previsível.
"Mas é pensamento crítico", dirão.
É. E aqui está a parte menos engraçada. Por trás do gerador de jargões há uma
história intelectual poderosa: a glorificação da 11ª tese de Marx sobre
Feuerbach —"Os filósofos têm apenas interpretado o mundo; o que importa é
transformá-lo".
Ao longo do século 20, muita gente leu isso
como imperativo moral para converter a vida científica ou intelectual em
atividade militante. A interpretação e a explicação —que sustentam o etos
científico— passaram a ser tratadas como atividades normativamente menores,
ociosas ou cúmplices. Ideias, cursos, livros e pesquisas passaram a ser
julgados por sua capacidade declarada de "transformar o mundo"
conforme a pauta da tribo, não por sua competência em analisar a realidade.
De onde vem essa régua? Há um longo caminho
até essa atitude virar pedagogia social. A oposição, por exemplo, entre a
"teoria tradicional" a "teoria crítica" instalou a primazia
de um saber que se justifica por fins emancipatórios. Depois, a contraposição
entre "pesquisa administrativa" e crítica desenhou um mapa moral do
campo: explicar para prever, gerir e criar competências soava como projeto
cúmplice do "sistema"; explicar para desnaturalizar ganhava
prestígio.
Nos projetos pedagógicos
"críticos", a escola virou laboratório de consciência: formar
sujeitos críticos passou a importar mais do que domínio de conteúdo, método e
cumulatividade. Daí títulos, ementas e chamadas de projeto valerem mais pelo
alinhamento moral do que pela capacidade de esclarecer como o mundo funciona.
No mundo real, porém, quem ambiciona
transformar precisa, antes, dizer o que está em jogo, por quais mecanismos, com
quais evidências e em que condições a intervenção funciona. Sem isso, a pauta
"crítica" vira simplesmente outro nome para militância.
Não se trata de neutralidade perfeita, e sim
de honestidade: professores, cientistas e certos trabalhadores intelectuais,
como jornalistas, têm a obrigação de evitar que inclinações ideológicas
comprometam a qualidade do trabalho. Isso se traduz em práticas: separar
honestamente hipótese e preferência, expor métodos, aceitar refutação, ajustar
conclusões aos dados, declarar conflitos de interesse e resistir à tentação de
confundir "serve à minha causa" com "é verdadeiro".
Em tempos de hiperpolarização, esse esforço não é ornamento —é o que sustenta a confiança pública no trabalho intelectual. Gente querendo modificar o mundo não falta; o que anda em falta é mão de obra honestamente dedicada a entendê-lo e explicá-lo direito.
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