O Globo
O cantor Criolo possivelmente não incluiria
em seu repertório o clássico ‘Samba do crioulo doido’, de Stanislaw Ponte Preta
Segunda-feira, 20 de novembro, é o Dia
Nacional da Consciência Negra. Negra ou preta? A polêmica é questão de tempo:
há quem veja na palavra “negro” uma carga depreciativa, associada a nigger, e “preto” seria o
politicamente correto. Afinal, black is
beautiful; a n-word,
não. Mais uma questão importada acriticamente: os grupos Cidade Negra e Raça
Negra, Jovelina Pérola Negra e Neguinho da Beija-Flor que o digam — com o
contraponto do Pretinho da Serrinha, da Preta Gil, da Banda do Zé Pretinho e do
Preto Brás (salve, Itamar Assumpção!).
Ambos os termos, preto e negro, sempre foram quase intercambiáveis no Brasil — ora de forma pejorativa, ora empoderada. Sem contar o hoje abominado “crioulo” — em sua origem, o descendente de um estrangeiro (colonizador ou escravizado), mas já nativo do lugar. Com uso figurado, há os galpões crioulos, no Sul, e as línguas crioulas, como o cabo-verdiano. Antes de virar palavrão, foi cantado por Elza Soares (“Chamego de crioula/é o melhor remédio”), Zezé Motta (“Swing é natural da raça/Crioula, crioula”) e Sandra de Sá (“A verdade é que você/tem sangue crioulo/tem cabelo duro/sarará crioulo”). Mas o cantor e compositor Criolo possivelmente não incluiria em seu repertório o clássico “Samba do crioulo doido”, de Stanislaw Ponte Preta. É o Zeitgeist.
É difícil que uma palavra seja racista.
Racista é o uso que se faz dela. Mas o problema começa de verdade é quando se
lança mão de falsas etimologias para justificar o cancelamento: “negro” viria
de nigru (“inimigo”, em grego). Falso: vem do latim nigrum, que significa... preto.
No recém-lançado “50 pseudoetimologias para
deixar de compartilhar”, o professor Rafael Gustavo Rigolon, da Universidade
Federal de Viçosa, lista uma longa série de etimologias incorretas e
anacronismos semânticos (quando o significado recente é aplicado ao passado, ou
vice-versa).
Entre as fake news popularizadas pela
militância (supostamente) antirracista (e flagrantemente antietimológica) estão
os delirantes criado-mudo, fazer nas coxas, empregada doméstica, nesse angu tem
caroço, inhaca, cecê, a dar com o pau. Todas um prato cheio para os
terraplanistas linguísticos. (A propósito, “prato cheio” não será racista? Se
meia-tigela é...)
Rigolon lembra que o Firefox trocou “senha
mestra” por “senha principal”, pois “mestra” remeteria à relação
mestre-escravo... E aponta que, se importasse o etimologicamente correto (mesmo
anacronicamente equivocado), os banidos poderiam ser:
— Boticário: do latim appothecarius — escravo
encarregado do armazém ou adega (apotheca);
— Liturgia: do latim liturgus — escravo
pertencente ao Estado, responsável por assuntos de interesse púbico;
— Pedagogia: do grego paidagogós — escravo que
conduzia as crianças para a escola;
— Monitor: do latim monitor — escravo que vigiava
o trabalho dos demais;
— Servidor: do latim servus — servo, escravo; neste
caso, deveríamos proscrever também servente, serviço, servidão de
passagem, self-service;
Quem sobreviver à avalanche de etimologias pseudorracistas do dia 20 deve esperar um pouco antes de comemorar: dia 24 vem outra rodada, com a Black Friday.
Um comentário:
Este colunista abusa da paciência dos pobres leitores. Qual será mesmo o "interesse púbico" da liturgia?? É muita bobagem reunida...
Postar um comentário