Folha de S. Paulo
As relações de Carlos Cachaça e Heráclito,
Nelson Cavaquinho e Sêneca, Cartola e Montaigne
"A gente compunha assim: a letra vinha
com a música, um monstro que íamos aperfeiçoando. Com o Carlos Cachaça tudo
dava certo", explicou Cartola.
Adolescente ao chegar a Mangueira, ele conheceu o parceiro seis anos mais velho que se tornaria amigo da vida inteira. Juntos fizeram mais de 50 sambas, mas boa parte se perdeu. Destacam-se três obras-primas: "Alvorada", "Quem me Vê Sorrindo" e "Não Quero mais Amar a Ninguém". Menos conhecida, "Silêncio de um Cipreste" espanta pela simplicidade e complexidade: "Todo mundo tem o direito/ De viver cantando/ O meu único defeito/ É viver pensando".
Nos anos 1940 —quando Cartola se afastou de
Mangueira—, Carlos Cachaça e Nelson Cavaquinho dividiram um barraco no morro. A
esperada parceria não engrenou. Os dois só se cruzavam de manhã, quando o
primeiro saía para trabalhar e o segundo voltava da farra, dedilhando no violão
um samba novo,
do qual não se lembraria ao acordar no meio da tarde.
"O desprendimento dele com a própria
música era coisa de outro mundo. Jamais compôs pensando em gravar. Fazia samba
para o tempo e o esquecimento", me disse Carlos Cachaça numa entrevista no
Buraco Quente e, desde então, agradeço o milagre de "Luz Negra" e "Rugas" terem escapado do olvido.
Eliete Eça Negreiros desvenda os três
mangueirenses em um livro recém-lançado, "Nelson Cavaquinho & Cartola
& Carlos Cachaça: Caminho da Existência", no qual os artistas
populares são analisados à luz de conceitos filosóficos. Escritos com clareza,
livres de pedantismo ou chutes acadêmicos, os ensaios apontam combinações
surpreendentes entre Carlos Cachaça e Heráclito, Nelson Cavaquinho e Sêneca,
Cartola e Montaigne.
A velhice e a morte, a simplicidade da vida,
a fragilidade diante do destino —em Nelson. As relações amorosas, a delicadeza
dos sentimentos, o sonho —em Cartola. A nobreza de atitudes, o ritmo do mundo,
o desejo de eternidade —em Carlos. A arte de fazer samba sintetizada no verso
"Semente de amor sei que sou desde nascença".
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