terça-feira, 12 de agosto de 2025

A arte dos sambistas de Mangueira mora na filosofia - Alvaro Costa e Silva

Folha de S. Paulo

As relações de Carlos Cachaça e Heráclito, Nelson Cavaquinho e Sêneca, Cartola e Montaigne

"A gente compunha assim: a letra vinha com a música, um monstro que íamos aperfeiçoando. Com o Carlos Cachaça tudo dava certo", explicou Cartola.

Adolescente ao chegar a Mangueira, ele conheceu o parceiro seis anos mais velho que se tornaria amigo da vida inteira. Juntos fizeram mais de 50 sambas, mas boa parte se perdeu. Destacam-se três obras-primas: "Alvorada", "Quem me Vê Sorrindo" e "Não Quero mais Amar a Ninguém". Menos conhecida, "Silêncio de um Cipreste" espanta pela simplicidade e complexidade: "Todo mundo tem o direito/ De viver cantando/ O meu único defeito/ É viver pensando".

Nos anos 1940 —quando Cartola se afastou de Mangueira—, Carlos Cachaça e Nelson Cavaquinho dividiram um barraco no morro. A esperada parceria não engrenou. Os dois só se cruzavam de manhã, quando o primeiro saía para trabalhar e o segundo voltava da farra, dedilhando no violão um samba novo, do qual não se lembraria ao acordar no meio da tarde.

"O desprendimento dele com a própria música era coisa de outro mundo. Jamais compôs pensando em gravar. Fazia samba para o tempo e o esquecimento", me disse Carlos Cachaça numa entrevista no Buraco Quente e, desde então, agradeço o milagre de "Luz Negra" e "Rugas" terem escapado do olvido.

Eliete Eça Negreiros desvenda os três mangueirenses em um livro recém-lançado, "Nelson Cavaquinho & Cartola & Carlos Cachaça: Caminho da Existência", no qual os artistas populares são analisados à luz de conceitos filosóficos. Escritos com clareza, livres de pedantismo ou chutes acadêmicos, os ensaios apontam combinações surpreendentes entre Carlos Cachaça e Heráclito, Nelson Cavaquinho e Sêneca, Cartola e Montaigne.

A velhice e a morte, a simplicidade da vida, a fragilidade diante do destino —em Nelson. As relações amorosas, a delicadeza dos sentimentos, o sonho —em Cartola. A nobreza de atitudes, o ritmo do mundo, o desejo de eternidade —em Carlos. A arte de fazer samba sintetizada no verso "Semente de amor sei que sou desde nascença".

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