O Estado de S. Paulo
Não resta alternativa ao governo Lula senão estabelecer um canal de alto nível com a Casa Branca
O relacionamento entre o Brasil e os EUA
passa por um momento de grandes desafios com os desdobramentos da opção feita
por Trump de utilizar a lei de emergência econômica (International Emergency
Economic Power Act - Ieepa) como fundamento das tarifas aplicadas aos produtos
nacionais.
Trump assinou na semana passada ordem executiva baseada na Ieepa que dá poderes ao presidente norte-americano para tomar medidas de modo a afastar as ameaças à economia dos EUA e à segurança nacional. Essa lei tem sido usada como justificativa para as tarifas de todos os países, mas está tendo desdobramentos políticos internos com o Brasil. Por outro lado, para alguns outros países, a base legal para a aplicação das tarifas está amparada pela Seção 232 do Trade Expansion Act de 1962, que trata a questão da segurança nacional sob o ângulo comercial, sem declaração de emergência. No caso da China, a legislação invocada foi a Seção 301 do Trade Act de 1974.
É importante entender a diferença entre as
duas legislações. Enquanto a Seção 232 e a 301 são implementadas pelos órgãos
técnicos de comércio exterior, a lei de emergência econômica é aplicada pelo
Departamento de Estado e pelo Tesouro, sem consulta ao Congresso, e é utilizada
como meio de pressão diplomática com caráter extraterritorial, como foi o caso
da Lei Magnitsky e, na semana passada, a pesada nota da embaixada dos EUA. A
Ieepa pode alcançar empresas ou indivíduos no Brasil. As empresas podem ser
afetadas por bloqueios bancários, encerramento de linhas de crédito
internacional, exclusão de fornecedores de peças e equipamentos e até sanções
secundárias, quando transacionam com outros países, como foi o caso da Índia,
por comprar petróleo da Rússia.
A política tarifária em relação ao Brasil tem
uma característica única por abrir a possibilidade de tratar questões políticas
e diplomáticas mais amplas e que, espera-se, estejam sendo objeto de exame e
consideração mais cuidadosos pelo governo em Brasília. As ações do Departamento
de Estado, diante da atitude antagônica de Marco Rubio em relação ao Brasil,
são inaceitáveis. O risco e a ameaça são claros e vão requerer uma defesa da
soberania e do interesse nacional mais sofisticada e responsável.
Os desdobramentos dessa medida já estão
começando a aparecer. Foi aberta uma investigação no âmbito da seção 301 da lei
de comércio exterior para apurar medidas restritivas contra produtos
norte-americanos, serviços financeiros (Pix) e até o desmatamento da Floresta
Amazônica.
Além dessa investigação, o Congresso dos EUA
está examinando um projeto de lei que autoriza recursos financeiros a órgãos de
inteligência para, entre outras áreas de interesse para os EUA, avaliar e
preparar relatório sobre os investimentos da China no setor agrícola do Brasil.
O Intelligence Authorization Act, se aprovado, financiará a Agência Central de
Inteligência (CIA) e a Agência de Segurança Nacional (NSA) para o combate às
ameaças à segurança nacional dos EUA.
No tocante ao relacionamento entre o Brasil e
a China, esses órgãos de informação deverão elaborar “avaliação e relatório
sobre investimentos da China no setor agrícola no Brasil, após consulta com o
Departamento de Estado e a Secretaria da Agricultura” e avaliar “o nível de
envolvimento do presidente Xi Jinping, ou por ele ordenado, com autoridades
brasileiras, com foco no setor agrícola do Brasil”. O relatório deverá também
incluir análise sobre “o nível de envolvimento da China com o setor agrícola do
Brasil” e “as intenções estratégicas do possível envolvimento do presidente Xi
ou por ele ordenado, para investimento no setor agrícola do Brasil”. O
relatório deverá examinar “o número de entidades com sede na China ou de
propriedade do país com investimentos no setor agrícola do Brasil, incluindo
joint ventures com empresas brasileiras” e listar “os impactos sobre a cadeia
de suprimentos, o mercado global e a segurança alimentar gerados por
investimentos ou pelo controle do setor agrícola brasileiro pela China”.
As tensões entre os EUA e a China,
considerada pelo governo de Washington como inimiga, podem respingar em outros
países com forte relacionamento com Pequim. O Brasil é um parceiro estratégico
da China, especialmente na área agrícola, e por isso atraiu as atenções
estratégicas dos órgãos de inteligência.
O governo brasileiro tem de definir
claramente seu objetivo em relação às medidas restritivas já tomadas e outras
que poderão ser adotadas contra o Brasil. Não convêm ao interesse nacional a
posição defensiva e uma narrativa para fins de política interna.
O impasse atual, com as dificuldades e as
diferenças de caráter político e ideológico, tem de ser superado para o avanço
das negociações comerciais. À luz da tendência da escalada
político-diplomática, não resta alternativa ao governo Lula senão estabelecer
um canal de alto nível com a Casa Branca por meio de um telefonema de Lula a Trump
ou a ida do vice-presidente, Geraldo Alckmin, para um encontro com JD Vance.
A China e a Índia, que, junto com o Brasil,
são os países com as tarifas mais altas, com possíveis novas medidas
restritivas, continuam a negociar com Trump, de forma pragmática e deixando de
lado a ideologia. •
Nenhum comentário:
Postar um comentário