Folha de S. Paulo
O problema do mal não tem resposta e essa é a
resposta mais honesta
Se você só conhece os conservadores
brasileiros —quase sempre mais reacionários que conservadores—, que tal olhar
para fora? Que tal olhar para Kemi
Badenoch, a líder dos Tories no Reino Unido?
É mulher. É negra. É ateia, como explicou
recentemente à BBC. Acreditar em Deus deixou de ser uma opção depois do caso
judicial de Joseph Fritzl,
confessou ela.
Relembro —em 2008, Fritzl, então com 73 anos,
foi preso na Áustria e condenado à prisão perpétua por manter a própria filha
no porão durante 24 anos. Apesar das preces contínuas da vítima, foram 24 anos
de cativeiro e abusos sexuais que geraram sete filhos. Um morreu, três viveram
com a mãe no porão e os outros três com o avô.
Como acreditar em Deus diante de tamanha maldade? Como justificar o Seu silêncio?
Boas perguntas. Recorrentes perguntas na
história da teologia e da filosofia. Se Deus é onipresente, onisciente e
benevolente, como explicar a existência do mal? Mais do que isso, como explicar
o sofrimento de inocentes que nada fizeram para merecer tal destino?
Para o ateu, a resposta é curta e grossa: o
mal existe porque esse Deus superpoderoso não existe. Ou, numa variação, Deus
não existe, o mal existe —e uma coisa não tem nada a ver com a outra.
A posição agnóstica é mais cautelosa:
reconhece os limites do conhecimento humano. Quem não sabe se Deus existe
também não sabe por que o mal acontece.
E mesmo admitindo a possibilidade da
existência de Deus, isso não implica necessariamente que Ele seja todo-poderoso
ou totalmente bom. A hipótese de um Deus limitado —ou até maligno— não pode ser
descartada.
No fundo, o ceticismo serve tanto para assuntos terrenos quanto celestiais.
E para o crente? Aqui não há resposta única.
Santo Agostinho explicava a presença do mal como consequência da liberdade
humana —na visão dele, Deus criou criaturas livres, e somos nós que, por
escolha própria, nos afastamos da luz. Depois da Queda, não nos cabe imputar a
Deus as falhas que escolhemos cometer.
Mas e quando o mal não depende de nós? Como
explicar os humores da natureza e a destruição que ela é capaz de causar
—terremotos, enchentes, pandemias?
Leibniz confiava num plano divino invisível:
somos demasiado limitados para compreender a totalidade da providência. E
talvez certos males cotidianos sejam mesmo necessários para que um bem maior se
realize.
Confesso —o otimismo de Leibniz,
ridicularizado com precisão por Voltaire, nunca me convenceu. Também não deve
ter convencido a filha de Joseph Fritzl, encerrada na masmorra, sem acesso a
esse plano geral da providência.
A verdade é que não tenho resposta para o
problema do mal. E essa ausência de resposta é a minha resposta mais honesta,
que aprendi cedo, demasiado cedo, por obra e graça de um brasileiro.
Eu devia ter uns 16 anos, não mais, quando
deparei com "A Máquina do
Mundo", de Carlos Drummond de Andrade. É talvez o único poema
brasileiro que sei de cor, porque o recito, internamente, quando o meu mundo
treme ou desaba. Camões que me perdoe, mas a minha máquina do mundo é essa.
Então caminho com o poeta por uma estrada
pedregosa de Minas, "no fecho da tarde", quando soa "um sino
rouco".
Subitamente, a máquina do mundo se abre,
"majestosa e circunspecta", disposta a revelar o segredo último das
coisas —a "total explicação da vida", "tudo que define o ser
terrestre", "as paixões e os impulsos e os tormentos", "a
memória dos deuses".
Mas o homem prossegue o seu caminho:
"baixei os olhos, incurioso, lasso,/ desdenhando colher a coisa oferta/
que se abria gratuita a meu engenho".
Há quem veja nos versos de Drummond a
renúncia ao conhecimento, a desistência, a desesperança. Pessimismo em estado
puro. Discordo. Sempre os vi como a afirmação mais bela e sábia de que não
devemos exigir sentido para todas as experiências.
Quando o li, numa casa em luto, senti que
Drummond me trazia de volta à superfície com essa lição tão aparentemente
simples: o mistério nada nos deve se nós nada devermos ao mistério.
Para usar a linguagem da geopolítica, é uma
espécie de coexistência pacífica —ou, pelo menos, um pacto de não agressão.
A senhora Kemi Badenoch, apesar de
conservadora, exige demais. Exige tudo. Não admira que se desiluda tão
profundamente quando a "máquina do mundo" não se abre para ela.
Nenhum comentário:
Postar um comentário