terça-feira, 12 de agosto de 2025

O espaço da política: entre o ódio e o medo - Paulo Fábio Dantas Neto*

Uma amiga pernambucana, lendo o editorial de O Estado de São Paulo, de 27.07.25 (“A internacional golpista de Trump”), lembrou-se de um slogan de campanha do senador pernambucano Marcos Freire, de saudosa memória, tragicamente morto em 1987, quando era ministro da Reforma Agrária. Aos 56 anos de idade, estava no pleno vigor de um patamar ascendente de uma carreira política temperada pela combinação de firmeza e moderação, típica da política da unidade democrática do tempo mais duro da ditadura, anterior à transição. “Sem ódio e sem medo” havia sido a partitura pela qual chegara à cena nacional, como membro do “grupo autêntico” do MDB, precisamente em 1974, ano em que os eleitores de Pernambuco reconheceram o valor do artesanato político da paciência democrática e o elegeram senador, na memorável eleição que marcou, em todo o país, o começo da inflexão da ditadura.

Considerados os distintos contextos e os respectivos públicos daquele discurso democrático de então e do referido editorial de agora, pode-se mesmo notar uma complementaridade positiva. O tom pluralista, adotado como conceito de fundo pelo Estadão, reduz o atual teor de medo que paralisa ambientes conservadores diante da ingerência despótica de Trump na política brasileira, com a associação espúria e subalterna do bolsonarismo, facção interna da extrema-direita mundial. A firmeza atual de um jornal liberal moderado, insuspeito de ter indisposição com os EUA, tem sentido positivo análogo ao que tinha, há 50 anos, a pregação daquele oposicionista autêntico que, a partir de um lugar de esquerda, pregava a unidade antiditatorial com os liberais e se dedicava a dissipar o teor de ódio polarizante que havia em setores progressistas mais radicalizados, atuantes no mesmo lugar que ele, naquela geográfica política.

Ódio e medo são componentes de implicações corrosivas num contexto critico como o que atualmente se mostra nas relações entre a resiliência das instituições políticas brasileiras e o ímpeto do governo Trump em erodir as próprias instituições norte-americanas e em impor ao mundo - e ao Brasil, em particular -, regras arbitrárias de um poder sem regras. Ambos são ameaçadores em suas manifestações explícitas e também nos disfarces com que muitas vezes se apresentam.

O ódio explicito já foi suficientemente documentado e flagrado em ato, para que não se tenha dúvida sobre de onde assumidamente parte, como programa de ação. É ventania que sopra da extrema-direita. A ela cabem os direitos autorais e na sua conta deve-se debitar as maiores agruras e os temores do momento. Já o ódio reativo, assim como o dissimulado, não é privativo desse ponto cardeal da geografia política da polarização extrema. O jogo retórico de acusação e vitimização é reciproco, como são as denúncias e queixas de perseguição.  O efeito cada vez mais visível desse jogo é cansaço social e moral, mas não se pode subestimar, dentre eles, a violência política, que pode passar de latente a corrente.

No plano da dissimulação, ou mitigação racional do ódio, merecem atenção dos democratas armadilhas como a demagogia patrioteira da direita, assim como o nacionalismo ideológico anacrônico, revivido como tática eleitoral pela esquerda oficial e suas ramificações mais à esquerda. Essas formas mais ou menos simuladas de discurso polarizador tendem a desaguar, no fim das suas linhas de argumentação, agitação e propaganda, em ódio líquido, crônico, disseminado por toda parte; e em soberanismo populista de uma das partes, que usará o fator externo para obter poder interno às custas do pluralismo político. São dessa natureza o vale-tudo para salvar um líder de facção do braço da Justiça e a pretensão de blindagem do Chefe do Executivo, ou do STF, contra críticas e mesmo sugestões de conduta. Num dos polos pretende-se, para o extremista ameaçado de prisão, a liberdade para delinquir contra o estado democrático de direito, em nome do povo soberano e de uma particular acepção de democracia encarnada num chefe. Noutro polo, menos radical, pretende-se conferir a um dos poderes constituídos (para alguns, o Executivo, através do seu chefe institucional, para outros o Judiciário, por seu quadro mais conspícuo) a prerrogativa de encarnar toda a República, na condição prática de soberano benigno, ou na de guardião intransigente da democracia nacional ameaçada por uma conspiração externa.

Assim com o ódio, o medo também pode se mostrar explícito ou sob o biombo de alguma racionalização. Aquele que salta à vista sem precisar de lentes de aumento é o que se estampa, mais uma vez, na atitude de políticos da facção mais radicalizada da direita, quando trabalham contra os interesses do país para tentar deixar seu chefe fora do alcance da Justiça. Só o pânico pessoal desse último com a provável prisão e os temores de sua família e parceiros políticos mais íntimos de perderem poder, liberdade e bens materiais podem explicar conduta politicamente tão inconsequente e civicamente tão desprezível. Mas se no caso do ódio explicitado, a extrema-direita é imbatível e solitária na sua radicalidade, no caso do medo explicitado, ou flagrado, ela tem companhia em outros quadrantes do espectro político.

É o que demonstra a tibieza de lideranças e partidos de oposição e até de fora dela, que são flagrados atuando como cooperadores práticos do extremismo e da ingerência estrangeira, como se viu nas cenas ocorridas no Congresso Nacional.  O medo de serem alcançados por processos judiciais leva esses atores a facilitarem a interdição do funcionamento do Poder que integram, na expectativa de barganhar o salvamento das suas peles num acordo para a desobstrução. O êxito ainda não consumado desse acordo é factível diante da fragilidade agora desnudada do comando das duas casas – especialmente da Câmara – cujos titulares eram tidos, até alguns dias atrás, como os mais poderosos políticos do país. Nada como um dia depois do outro para desmentir uma lenda cujas raízes estão no sentimento antiparlamentar que leva as melhores famílias a superestimarem o poder efetivo dessas lideranças sobre seus liderados.  Espera-se que diante do sucedido há poucos dias, não se cometa, outra vez, o equívoco de se ver conspiração golpista como traço dominante geral no comportamento dos parlamentares. O golpismo e o extremismo explicam os passos de uma facção minoritária que, embora ruidosa, mal se acomoda no PL.  O resto é medo e desejo de salvar carreiras que, paradoxalmente, não terão futuro sem democracia.

Em outros agentes, políticos e empresariais, é possível encontrar medos sob disfarces mais sofisticados. É o caso do interesse mal compreendido de agentes econômicos crentes em que uma eventual aceitação dos termos em que Trump explicitou suas exigências de ordem política levaria a uma mitigação importante ou mesmo a uma suspensão do tarifaço. O embaixador Rubens Ricúpero tem ofertado, no debate público, senhas bem informadas, realistas e politicamente afirmativas, que poderiam ser mais consideradas por esses agentes capitulantes. Elas são desprovidas do viés “sul-globalizante” do colega Celso Amorim, cujo pensamento cabe no molde da cabeça do presidente Lula embora se apresente em público como suposto alter ego muy amigo da diplomacia institucional do Itamaraty. Mas as falas de Ricúpero são igualmente um antidoto cético contra uma ingênua resignação aos comandos imperativos de Trump. É uma abordagem retoricamente moderada, mas também distinta de uma renúncia prática à nossa soberania externa - uma legitima ambição - e à experiência negociadora da nossa diplomacia.

Na mesma categoria dos medos racionalmente dissimulados está o uso vão da palavra prudência para dissimular a hesitação política de atores, fora da direita, na defesa do país contra os ataques de Trump. A raiz dessas hesitações é, na verdade, a desconfiança quanto às intenções e o modo de operação política do presidente Lula. É óbvio, para todo analista isento, que Lula é, de fato, um ator político que tende a agir de modo circunscrito à racionalidade média da pequena política. Dele não se pode esperar atitudes de um estadista que enxerga além do seu interesse pessoal para cuidar, também dele, sim, mas numa escala de médio e longo prazo, compatível com uma atenção igual a interesses de natureza política e social mais ampla. Há sempre, da parte de seus assessores e correligionários, um esforço de construção de imagem oposta, no Brasil e no exterior, mas as chances de persuasão desses esforços são hoje, ao menos no plano interno, bem menores do que foram no passado. Contudo, a compreensão realista dessa limitação pessoal da maior liderança política do país não desobriga ninguém de reconhecer a posição institucional que Lula ocupa, nem justifica que se opere também com a mesma limitação dele à pequena política, como no comentado caso dos governadores de oposição. O medo do animal político precisa ser vencido para não expor a sociedade a desamparo, por timidez e estreiteza coletiva da elite política. A prudência manda ser firme no apoio institucional neste momento, inclusive para poder interpelar o presidente, se ele quiser dirigir o trem da reeleição como se fosse um trator.

Utopia e distopia

A promessa necessária é a de abrir uma alameda nova, indo além dos limites de um pragmatismo tosco e de curto fôlego. Por mais utópica que essa demanda possa parecer diante da má qualidade ético-política do material humano de que as instituições republicanas hoje dispõem, seu teor de improbabilidade é menor do que o de imaginar que se possa levar o país a algum lugar minimamente seguro prosseguindo nessa confrontação distópica, no obscurantismo de becos facciosos e corporativos. 

A estreiteza política converteu-se em endemia. A sociedade já não mais lida com ela com surpresa ou temor e passa a substituir a crítica cidadã por uma indignação difusa, raivosa e rouca, cada vez mais entregue, no plano das convicções pessoais, aos impulsos da repulsa visceral ou da hipocrisia verbal. Esse é o terreno em que a demagogia prospera e é exportada do mundo político para o tecido social. É nesse terreno que medo passivo e ódio ativo celebram o pacto conformista que envenena a democracia.

Já se pode até dispensar uma régua porque, de tão ostensiva e renitente, a miséria da política atual já está suficientemente medida.  Duas massas cinzentas de ar envenenado pelo ódio e pelo medo partem de pontos opostos, no rumo de um entrechoque agonístico. O que se faz urgente é setores e quadros da elite política mais comprometidos com interesses públicos lançarem mão de um compasso para traçar uma elipse que extrapole o campo estrito da guerra. Isso poderá ser feito enquanto ainda for possível encontrar eixos de gravidade centrípeta entre os terrenos expansivos do ódio e do medo centrifugados. Que os campos políticos segurem seus radicais! Se as duas massas de ar envenenado capturarem todo o espaço ainda existente entre elas, esmagarão qualquer esboço de dois necessários pontos de referência moderadora, de onde o compasso da grande política possa desenhar seu arco da promessa. A elipse do pluralismo político é demanda emergencial para evitar o eclipse da política pelos populismos.

O STF

Um ingrediente a complicar mais o cenário são as linhas sinuosas pelas quais o STF tem escrito suas decisões no exercício de sua prerrogativa de acertar ou errar por último. O senso de autocontenção está sumido.  Com a aproximação do ano eleitoral, comícios de togados do quilate do que se deu na sua sede, no último dia 7 de agosto, durante sessão de reabertura dos trabalhos do tribunal, podem ter efeito bumerangue parecido com o da passeata do "elle não" em 2018. Para estigmas lançados pela extrema-direita no intuito de desmoralizar o tribunal assumirem ares de profecia não será sequer preciso, como pretexto, juiz fazendo gestos obscenos em estádios. Já se fala que do interior do próprio colegiado podem partir defecções como a do ministro que atualmente o preside, que estaria cogitando renunciar à toga pela frustação de esforços para alterar a rota de processos decisórios monocráticos que se repetem.  

Há quem naturalize e até elogie a intensa politização da persona pública do ministro Alexandre de Moraes, interpretando-o, em lugar de Lula, como o polo mais forte da polarização. Ele não assume isso, mas é perceptível a conexão, ainda que alegórica, desse tipo de percepção com o tema da sucessão presidencial. A politização do STF é encarada como empoderamento político. Uma mesma coisa como uma coisa e como outra coisa também. É impossível prever até onde a carruagem em uso pode nos levar. Tem havido comparações entre imaginadas ambições de Moraes e as afinal provadas pretensões de Sergio Moro. Nada de concreto sugere que o poderoso ministro queira tomar, agora ou adiante, um banho de urna. Ele parece candidato a exercer um poder guardiânico longevo. Parece a própria encarnação do "povo-juiz", de que nos fala Rosanvallon, ao destrinchar a ideia de contrademocracia. Se essa conjectura ganhar vida nos fatos subsequentes, Lula e o PT devem colocar suas barbas de molho. Moraes tem perfil adequado para contentar uma opinião pública de direita pós-bolsonarista. Talvez por isso o mesmo ethos guardiànico esteja sendo ensaiado pelo ministro Flavio Dini, quadro de esquerda.

Supremacia e soberania

Outro ingrediente perturbador da conjuntura é o uso ilimitado do termo soberania. Há, em seu benefício, no léxico da confrontação política, uma secundarização, ou mesmo liquefação súbita, veloz e contundente de qualquer outro argumento ou valor. Confunde-se com soberania o protagonismo exercido pelo presidente da República no sistema político, de modo compartilhado com o Congresso, bem como o caráter supremo do tribunal que abriga a cúpula do Judiciário. Alarga-se, assim, o conceito de soberania para além das duas acepções em que ele é adotado na nossa Constituição, qual sejam a da capacidade de um estado nacional de exercer o poder no seu território sem interferência estrangeira e a do exercício, pelo Estado, como um todo, através do conjunto harmônico de seus três poderes, da suprema autoridade desse conjunto de instituições sobre esse território e sua população.

Na atual conjuntura crítica,  a saúde democrática da república requer ainda mais que os dirigentes de instituições, especialmente os de partidos políticos democráticos, não confundam a defesa da soberania nacional com alinhamento político ao governo, ou a estratégias eleitorais do presidente - como se à frente daquele estivesse um soberano - ou ainda a incursões do STF em assuntos políticos, por mais que elas ocorram, de hábito, pontualmente e por solicitação de agentes de outros poderes do Estado ou da sociedade civil.  No caso do tribunal, trata-se de supremacia em relação a outras instâncias de poder constituído e não de soberania. Não há como compatibilizar uma hipótese de soberania interna de qualquer poder constituído do Estado com as regras estipuladas na Constituição, destinadas a promover equilíbrios e freios recíprocos entre esses poderes e a reconhecer o povo, e não eles, como soberano.

Riscos de golpe e a tese do golpe continuado

Um argumento corrente é o de que ainda vivemos sob risco de golpe, numa conjuntura de incerteza para o estado de direito, na qual a instabilidade é a tônica. Forçoso reconhecer esse perigo, na nova conjuntura das agressões de Trump. Importante considerar que pelo menos um dos decisivos fatores que impediram, entre novembro e dezembro de 2022, um golpe sangrento contra a posse dos eleitos em outubro não se apresenta mais. Ali ficou claro – em boa parte pela inequívoca posição democrática do governo norte-americano - a ausência de apoio internacional a um eventual governo golpista. Isso consolidou o perfilamento dos comandos das Forças Armadas à ordem constitucional. Hoje a situação é oposta, constituindo-se em indicador de perigo. Admitir Isso é diferente de comprar a tese do "golpe continuado", dada de barato em alguns ambientes da esquerda. Não se pode perder pontes com o Brasil real, que vive agruras cotidianas enquanto facções opostas das elites políticas, econômicas e culturais envolvem-se em guerras próprias, usando a soberania como se fosse um esperanto. O advérbio “ainda”, presente no alerta de risco que povoa várias colunas de análise política, deve ser bem ponderado.

Durante pelo menos dois anos (2023 e 2024) não havia Trump no governo americano, o bolsonarismo estava recuado, a democracia revigorada e, no entanto, o STF seguiu tratando as coisas com a premissa da excepcionalidade, conduta da qual o poder monocrático do ministro Moraes foi a maior evidência.  E o governo, principalmente o presidente, seguiu emitindo sinais dúbios. Ora falava em frente ampla, ora reafirmava um discurso de frente de esquerda. Haddad tentava fazer uma política econômica realista, mas sofria fogo amigo de viés populista e várias vezes foi posto em saia justa pelo próprio Lula. O discurso do presidente elegia sucessivas genis, como Campos Neto, a Faria Lima e, mais recentemente, o Congresso, a Geni das genis. E na política externa a animação retórica correu solta, não faltando desqualificação da ONU e críticas ásperas ao governo Biden. O morde-assopra foi uma tática frequente de uma estratégia obscura. E sempre que os discursos recebiam críticas em maior grau, aí usava-se o discurso do perigo de golpe tentando fazer perdurar os ecos da conjuntura de 2022.

Convergência e clarividência

Nada disso justifica negar ao governo e ao presidente o apoio necessário numa hora difícil que não se pode dizer, idoneamente, que ele desejou ou provocou. Engajamento cívico e ceticismo político são uma combinação razoável de otimismo da vontade (de defender o país e sua economia) e de pessimismo da razão, que não faz vistas grossas ao risco da lógica eleitoral se sobrepor, mais uma vez, à pauta governamental. A deputada Tábata Amaral, num vídeo de quatro minutos divulgado em suas redes sociais, em 24.07.2025, mostrou que essa postura é possível e pode se tornar discurso persuasivo.

O conteúdo agregador é que dá credibilidade e potência ao que é dito no vídeo, como exortação. Percebe-se uma sutileza política, uma declinação bem distinta da que tem sido usual em boa parte da esquerda: Para Tábata, Trump agride o povo brasileiro e o americano também. Para enfrenta-lo não é preciso postura antiamericana. E é preciso suspender e não alimentar o conflito doméstico entre esquerda e direita. Chamar toda a direita de bolsonarista não ajuda a isolar o bolsonarismo. O desafio é ainda maior se pensarmos além da disputa presidencial. E isso é necessário porque, se mantido um cenário de democracia política, a tendência é se reduzir, cada vez mais, a chance de retorno daquele tipo de presidencialismo que sempre tivemos. Os freios ao protagonismo presidencial vieram para ficar e talvez aí resida a chance de uma renovação democrática, mais do que na busca de uma liderança plebiscitária nova. Digo que é desafio maior porque exigirá das forças democráticas de centro-esquerda uma nova atitude política diante de partidos, parlamento, sociedade civil, etc..

Impressões de um político realista do campo da centro-direita, como Guilherme Kassab, são de que a sombra bolsonarista sobre o campo da direita manterá relevância, ao menos por enquanto. É notícia ruim para um projeto de esquerda que pense dar, já em 2026, passos para quebrar o círculo vicioso da guerra entre populismos distintos. Muitas avaliações na esquerda ou na centro-esquerda vão – assim como a de Kassab, para o caso da direita e centro-direita - na linha de que, para esse fim, 2026 já foi.

Geralmente, as declarações de Kassab são tranquilizadoras porque ele não compra diagnósticos tributários do clima de polarização. Ao contrário, nunca confunde embates políticos com riscos institucionais e tende a raciocinar como quem confia no predomínio, afinal, da moderação. Ele não apenas costuma prescrever essa atitude como demonstra crença na sua eficácia. Mas numa entrevista a O Globo, em 08.08.25, pronunciou duas frases em outra direção. Numa, reconhece que há uma confrontação entre os poderes e noutra se diz preocupado com os rumos da política brasileira.  Vindas de Kassab, são afirmações que não devem ser vistas como figuras de retórica.

A guerra entre elites e o cotidiano do povo

Dentre todos os riscos, o que mais precisa ser evitado é o da política falar para as paredes. O esticar de cordas da hora atual pode legitimar Trump, ainda que temporariamente, perante os olhos de uma população angustiada por privações extremas e órfã de liderança política clarividente. Um processo, já em curso, de deterioração da confiança na política. Ele pode se agravar até o caos autoritário ou se prolongar até a esquerda, nocauteada, ceder o protagonismo, na luta antiautoritária, a um arco de alianças liberal-democrático amplo, tal como no caminho que nos tirou da ditadura e nos trouxe à democracia que temos.  O país precisaria de uma força ou liderança de esquerda que economizasse esse drama e entendesse, por reflexão própria, que liberais são aliados permanentes, não só circunstanciais.

Vale olhar para o lado e ver o que ocorre na Argentina, após um populismo continuado, que lidou levianamente com a democracia representativa. No Chile, Boric, como miragem de oásis, ainda tenta evitar desfecho análogo. Teria alguma chance, pois não tem ali o óbice do populismo de esquerda. Mas tem de lidar com um esquerdismo atávico na sua cozinha. Tudo indica que não conseguirá frutos, ao menos agora, embora tenha plantado boas sementes. Se depender das esquerdas latino americanas (a nossa incluída) as sementes ainda ficarão solteiras por um bom tempo.

Os indianos, por exemplo, para aguentarem o tranco de Trump, poderão, se assim decidirem, recorrer à sua civilização milenar, distinta do Ocidente e acessar a memória política e cultural de Gandhi, apesar da repolarização do mundo. Já no Brasil - onde vozes imprudentes, têm buscado renegar nossa origem ocidental e nossa tradição política conciliadora - se forem queimadas essas pontes poderemos, talvez, preservar, ao menos, a religião popular e apelar a Santo Antônio, procurador e achador de coisas perdidas, refazendo, no cotidiano e por baixo, o caminho nacional, para refratar o descaminho que a guerra entre facções das elites políticas, econômicas e culturais terá traçado, se prevalecer.

Mas como se fosse sábado, pensemos também em como a política pode cuidar de refratar o ódio e o medo, dois descaminhos que, se prevalecerem, interditarão sonhos de pessoas comuns de comerem goiabada cascão com muito queijo e beijo; e enfraquecerão o impulso de reagir ao frio com a sabedoria de não rejeitar o cobertor providencial que já têm à mão. E abrir caminhos à sociedade brasileira para dar um passo além do medo e se deter a um passo aquém do ódio. Nisso resume-se muito da esperança de não termos de padecer, num futuro de prazo ignorado, saudades insanáveis da nossa maloca. Esperança de que a política faça com que marcas de origem sejam como marcas de dendê e não saiam.

*Cientista político e professor da UFBA.

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