Considerados os distintos contextos e os respectivos públicos daquele discurso democrático de então e do referido editorial de agora, pode-se mesmo notar uma complementaridade positiva. O tom pluralista, adotado como conceito de fundo pelo Estadão, reduz o atual teor de medo que paralisa ambientes conservadores diante da ingerência despótica de Trump na política brasileira, com a associação espúria e subalterna do bolsonarismo, facção interna da extrema-direita mundial. A firmeza atual de um jornal liberal moderado, insuspeito de ter indisposição com os EUA, tem sentido positivo análogo ao que tinha, há 50 anos, a pregação daquele oposicionista autêntico que, a partir de um lugar de esquerda, pregava a unidade antiditatorial com os liberais e se dedicava a dissipar o teor de ódio polarizante que havia em setores progressistas mais radicalizados, atuantes no mesmo lugar que ele, naquela geográfica política.
Ódio e medo são componentes de implicações corrosivas
num contexto critico como o que atualmente se mostra nas relações entre a
resiliência das instituições políticas brasileiras e o ímpeto do governo Trump
em erodir as próprias instituições norte-americanas e em impor ao mundo - e ao
Brasil, em particular -, regras arbitrárias de um poder sem regras. Ambos são
ameaçadores em suas manifestações explícitas e também nos disfarces com que
muitas vezes se apresentam.
O ódio explicito já foi suficientemente
documentado e flagrado em ato, para que não se tenha dúvida sobre de onde
assumidamente parte, como programa de ação. É ventania que sopra da
extrema-direita. A ela cabem os direitos autorais e na sua conta deve-se
debitar as maiores agruras e os temores do momento. Já o ódio reativo, assim
como o dissimulado, não é privativo desse ponto cardeal da geografia política
da polarização extrema. O jogo retórico de acusação e vitimização é reciproco,
como são as denúncias e queixas de perseguição.
O efeito cada vez mais visível desse jogo é cansaço social e moral, mas
não se pode subestimar, dentre eles, a violência política, que pode passar de
latente a corrente.
No plano da dissimulação, ou mitigação
racional do ódio, merecem atenção dos democratas armadilhas como a demagogia
patrioteira da direita, assim como o nacionalismo ideológico anacrônico,
revivido como tática eleitoral pela esquerda oficial e suas ramificações mais à
esquerda. Essas formas mais ou menos simuladas de discurso polarizador tendem a
desaguar, no fim das suas linhas de argumentação, agitação e propaganda, em
ódio líquido, crônico, disseminado por toda parte; e em soberanismo populista de
uma das partes, que usará o fator externo para obter poder interno às custas do
pluralismo político. São dessa natureza o vale-tudo para salvar um líder de
facção do braço da Justiça e a pretensão de blindagem do Chefe do Executivo, ou
do STF, contra críticas e mesmo sugestões de conduta. Num dos polos pretende-se,
para o extremista ameaçado de prisão, a liberdade para delinquir contra o
estado democrático de direito, em nome do povo soberano e de uma particular
acepção de democracia encarnada num chefe. Noutro polo, menos radical,
pretende-se conferir a um dos poderes constituídos (para alguns, o Executivo, através
do seu chefe institucional, para outros o Judiciário, por seu quadro mais conspícuo)
a prerrogativa de encarnar toda a República, na condição prática de soberano
benigno, ou na de guardião intransigente da democracia nacional ameaçada por uma
conspiração externa.
Assim com o ódio, o medo também pode se
mostrar explícito ou sob o biombo de alguma racionalização. Aquele que salta à
vista sem precisar de lentes de aumento é o que se estampa, mais uma vez, na atitude
de políticos da facção mais radicalizada da direita, quando trabalham contra os
interesses do país para tentar deixar seu chefe fora do alcance da Justiça. Só
o pânico pessoal desse último com a provável prisão e os temores de sua família
e parceiros políticos mais íntimos de perderem poder, liberdade e bens
materiais podem explicar conduta politicamente tão inconsequente e civicamente
tão desprezível. Mas se no caso do ódio explicitado, a extrema-direita é
imbatível e solitária na sua radicalidade, no caso do medo explicitado, ou
flagrado, ela tem companhia em outros quadrantes do espectro político.
É o que demonstra a tibieza de lideranças e
partidos de oposição e até de fora dela, que são flagrados atuando como
cooperadores práticos do extremismo e da ingerência estrangeira, como se viu
nas cenas ocorridas no Congresso Nacional.
O medo de serem alcançados por processos judiciais leva esses atores a
facilitarem a interdição do funcionamento do Poder que integram, na expectativa
de barganhar o salvamento das suas peles num acordo para a desobstrução. O
êxito ainda não consumado desse acordo é factível diante da fragilidade agora
desnudada do comando das duas casas – especialmente da Câmara – cujos titulares
eram tidos, até alguns dias atrás, como os mais poderosos políticos do país.
Nada como um dia depois do outro para desmentir uma lenda cujas raízes estão no
sentimento antiparlamentar que leva as melhores famílias a superestimarem o poder
efetivo dessas lideranças sobre seus liderados. Espera-se que diante do sucedido há poucos
dias, não se cometa, outra vez, o equívoco de se ver conspiração golpista como
traço dominante geral no comportamento dos parlamentares. O golpismo e o
extremismo explicam os passos de uma facção minoritária que, embora ruidosa,
mal se acomoda no PL. O resto é medo e
desejo de salvar carreiras que, paradoxalmente, não terão futuro sem
democracia.
Em outros agentes, políticos e empresariais,
é possível encontrar medos sob disfarces mais sofisticados. É o caso do
interesse mal compreendido de agentes econômicos crentes em que uma eventual
aceitação dos termos em que Trump explicitou suas exigências de ordem política
levaria a uma mitigação importante ou mesmo a uma suspensão do tarifaço. O
embaixador Rubens Ricúpero tem ofertado, no debate público, senhas bem
informadas, realistas e politicamente afirmativas, que poderiam ser mais
consideradas por esses agentes capitulantes. Elas são desprovidas do viés “sul-globalizante”
do colega Celso Amorim, cujo pensamento cabe no molde da cabeça do presidente
Lula embora se apresente em público como suposto alter ego muy amigo da
diplomacia institucional do Itamaraty. Mas as falas de Ricúpero são igualmente
um antidoto cético contra uma ingênua resignação aos comandos imperativos de
Trump. É uma abordagem retoricamente moderada, mas também distinta de uma
renúncia prática à nossa soberania externa - uma legitima ambição - e à
experiência negociadora da nossa diplomacia.
Na mesma categoria dos medos racionalmente
dissimulados está o uso vão da palavra prudência para dissimular a hesitação
política de atores, fora da direita, na defesa do país contra os ataques de
Trump. A raiz dessas hesitações é, na verdade, a desconfiança quanto às
intenções e o modo de operação política do presidente Lula. É óbvio, para todo
analista isento, que Lula é, de fato, um ator político que tende a agir de modo
circunscrito à racionalidade média da pequena política. Dele não se pode
esperar atitudes de um estadista que enxerga além do seu interesse pessoal para
cuidar, também dele, sim, mas numa escala de médio e longo prazo, compatível
com uma atenção igual a interesses de natureza política e social mais ampla. Há
sempre, da parte de seus assessores e correligionários, um esforço de
construção de imagem oposta, no Brasil e no exterior, mas as chances de persuasão
desses esforços são hoje, ao menos no plano interno, bem menores do que foram
no passado. Contudo, a compreensão realista dessa limitação pessoal da maior
liderança política do país não desobriga ninguém de reconhecer a posição
institucional que Lula ocupa, nem justifica que se opere também com a mesma
limitação dele à pequena política, como no comentado caso dos governadores de
oposição. O medo do animal político precisa ser vencido para não expor a
sociedade a desamparo, por timidez e estreiteza coletiva da elite política. A
prudência manda ser firme no apoio institucional neste momento, inclusive para
poder interpelar o presidente, se ele quiser dirigir o trem da reeleição como
se fosse um trator.
Utopia e distopia
A promessa necessária é a de abrir uma
alameda nova, indo além dos limites de um pragmatismo tosco e de curto fôlego.
Por mais utópica que essa demanda possa parecer diante da má qualidade
ético-política do material humano de que as instituições republicanas hoje
dispõem, seu teor de improbabilidade é menor do que o de imaginar que se possa
levar o país a algum lugar minimamente seguro prosseguindo nessa confrontação
distópica, no obscurantismo de becos facciosos e corporativos.
A estreiteza política converteu-se em endemia.
A sociedade já não mais lida com ela com surpresa ou temor e passa a substituir
a crítica cidadã por uma indignação difusa, raivosa e rouca, cada vez mais
entregue, no plano das convicções pessoais, aos impulsos da repulsa visceral ou
da hipocrisia verbal. Esse é o terreno em que a demagogia prospera e é
exportada do mundo político para o tecido social. É nesse terreno que medo
passivo e ódio ativo celebram o pacto conformista que envenena a democracia.
Já se pode até dispensar uma régua porque, de
tão ostensiva e renitente, a miséria da política atual já está suficientemente
medida. Duas massas cinzentas de ar
envenenado pelo ódio e pelo medo partem de pontos opostos, no rumo de um
entrechoque agonístico. O que se faz urgente é setores e quadros da elite
política mais comprometidos com interesses públicos lançarem mão de um compasso
para traçar uma elipse que extrapole o campo estrito da guerra. Isso poderá ser
feito enquanto ainda for possível encontrar eixos de gravidade centrípeta entre
os terrenos expansivos do ódio e do medo centrifugados. Que os campos políticos
segurem seus radicais! Se as duas massas de ar envenenado capturarem todo o
espaço ainda existente entre elas, esmagarão qualquer esboço de dois necessários
pontos de referência moderadora, de onde o compasso da grande política possa desenhar
seu arco da promessa. A elipse do pluralismo político é demanda emergencial
para evitar o eclipse da política pelos populismos.
O STF
Um ingrediente a complicar mais o cenário são
as linhas sinuosas pelas quais o STF tem escrito suas decisões no exercício de
sua prerrogativa de acertar ou errar por último. O senso de autocontenção está
sumido. Com a aproximação do ano
eleitoral, comícios de togados do quilate do que se deu na sua sede, no último
dia 7 de agosto, durante sessão de reabertura dos trabalhos do tribunal, podem
ter efeito bumerangue parecido com o da passeata do "elle não" em
2018. Para estigmas lançados pela extrema-direita no intuito de desmoralizar o
tribunal assumirem ares de profecia não será sequer preciso, como pretexto,
juiz fazendo gestos obscenos em estádios. Já se fala que do interior do próprio
colegiado podem partir defecções como a do ministro que atualmente o preside,
que estaria cogitando renunciar à toga pela frustação de esforços para alterar
a rota de processos decisórios monocráticos que se repetem.
Há quem naturalize e até elogie a intensa
politização da persona pública do ministro Alexandre de Moraes,
interpretando-o, em lugar de Lula, como o polo mais forte da polarização. Ele
não assume isso, mas é perceptível a conexão, ainda que alegórica, desse tipo
de percepção com o tema da sucessão presidencial. A politização do STF é
encarada como empoderamento político. Uma mesma coisa como uma coisa e como
outra coisa também. É impossível prever até onde a carruagem em uso pode nos
levar. Tem havido comparações entre imaginadas ambições de Moraes e as afinal
provadas pretensões de Sergio Moro. Nada de concreto sugere que o poderoso
ministro queira tomar, agora ou adiante, um banho de urna. Ele parece candidato
a exercer um poder guardiânico longevo. Parece a própria encarnação do
"povo-juiz", de que nos fala Rosanvallon, ao destrinchar a ideia de contrademocracia.
Se essa conjectura ganhar vida nos fatos subsequentes, Lula e o PT devem
colocar suas barbas de molho. Moraes tem perfil adequado para contentar uma
opinião pública de direita pós-bolsonarista. Talvez por isso o mesmo ethos
guardiànico esteja sendo ensaiado pelo ministro Flavio Dini, quadro de
esquerda.
Supremacia e soberania
Outro ingrediente perturbador da conjuntura é
o uso ilimitado do termo soberania. Há, em seu benefício, no léxico da
confrontação política, uma secundarização, ou mesmo liquefação súbita, veloz e
contundente de qualquer outro argumento ou valor. Confunde-se com soberania o protagonismo
exercido pelo presidente da República no sistema político, de modo
compartilhado com o Congresso, bem como o caráter supremo do tribunal que
abriga a cúpula do Judiciário. Alarga-se, assim, o conceito de soberania para
além das duas acepções em que ele é adotado na nossa Constituição, qual sejam a
da capacidade de um estado nacional de exercer o poder no seu território sem
interferência estrangeira e a do exercício, pelo Estado, como um todo, através
do conjunto harmônico de seus três poderes, da suprema autoridade desse
conjunto de instituições sobre esse território e sua população.
Na atual conjuntura crítica, a saúde democrática da república requer ainda
mais que os dirigentes de instituições, especialmente os de partidos políticos
democráticos, não confundam a defesa da soberania nacional com alinhamento político
ao governo, ou a estratégias eleitorais do presidente - como se à frente daquele
estivesse um soberano - ou ainda a incursões do STF em assuntos políticos, por
mais que elas ocorram, de hábito, pontualmente e por solicitação de agentes de
outros poderes do Estado ou da sociedade civil. No caso do tribunal, trata-se de supremacia em
relação a outras instâncias de poder constituído e não de soberania. Não há como
compatibilizar uma hipótese de soberania interna de qualquer poder constituído do
Estado com as regras estipuladas na Constituição, destinadas a promover equilíbrios
e freios recíprocos entre esses poderes e a reconhecer o povo, e não eles, como
soberano.
Riscos de golpe e a tese do golpe
continuado
Um argumento corrente é o de que ainda
vivemos sob risco de golpe, numa conjuntura de incerteza para o estado de
direito, na qual a instabilidade é a tônica. Forçoso reconhecer esse perigo, na
nova conjuntura das agressões de Trump. Importante considerar que pelo menos um
dos decisivos fatores que impediram, entre novembro e dezembro de 2022, um
golpe sangrento contra a posse dos eleitos em outubro não se apresenta mais.
Ali ficou claro – em boa parte pela inequívoca posição democrática do governo
norte-americano - a ausência de apoio internacional a um eventual governo
golpista. Isso consolidou o perfilamento dos comandos das Forças Armadas à
ordem constitucional. Hoje a situação é oposta, constituindo-se em indicador de
perigo. Admitir Isso é diferente de comprar a tese do "golpe
continuado", dada de barato em alguns ambientes da esquerda. Não se pode
perder pontes com o Brasil real, que vive agruras cotidianas enquanto facções
opostas das elites políticas, econômicas e culturais envolvem-se em guerras
próprias, usando a soberania como se fosse um esperanto. O advérbio “ainda”,
presente no alerta de risco que povoa várias colunas de análise política, deve
ser bem ponderado.
Durante pelo menos dois anos (2023 e 2024)
não havia Trump no governo americano, o bolsonarismo estava recuado, a
democracia revigorada e, no entanto, o STF seguiu tratando as coisas com a
premissa da excepcionalidade, conduta da qual o poder monocrático do ministro
Moraes foi a maior evidência. E o
governo, principalmente o presidente, seguiu emitindo sinais dúbios. Ora falava
em frente ampla, ora reafirmava um discurso de frente de esquerda. Haddad
tentava fazer uma política econômica realista, mas sofria fogo amigo de viés
populista e várias vezes foi posto em saia justa pelo próprio Lula. O discurso
do presidente elegia sucessivas genis, como Campos Neto, a Faria Lima e, mais
recentemente, o Congresso, a Geni das genis. E na política externa a animação
retórica correu solta, não faltando desqualificação da ONU e críticas ásperas
ao governo Biden. O morde-assopra foi uma tática frequente de uma estratégia
obscura. E sempre que os discursos recebiam críticas em maior grau, aí usava-se
o discurso do perigo de golpe tentando fazer perdurar os ecos da conjuntura de
2022.
Convergência e clarividência
Nada disso justifica negar ao governo e ao presidente
o apoio necessário numa hora difícil que não se pode dizer, idoneamente, que
ele desejou ou provocou. Engajamento cívico e ceticismo político são uma combinação
razoável de otimismo da vontade (de defender o país e sua economia) e de
pessimismo da razão, que não faz vistas grossas ao risco da lógica eleitoral se
sobrepor, mais uma vez, à pauta governamental. A deputada Tábata Amaral, num
vídeo de quatro minutos divulgado em suas redes sociais, em 24.07.2025, mostrou
que essa postura é possível e pode se tornar discurso persuasivo.
O conteúdo agregador é que dá credibilidade e
potência ao que é dito no vídeo, como exortação. Percebe-se uma sutileza política,
uma declinação bem distinta da que tem sido usual em boa parte da esquerda: Para
Tábata, Trump agride o povo brasileiro e o americano também. Para enfrenta-lo não
é preciso postura antiamericana. E é preciso suspender e não alimentar o
conflito doméstico entre esquerda e direita. Chamar toda a direita de
bolsonarista não ajuda a isolar o bolsonarismo. O desafio é ainda maior se
pensarmos além da disputa presidencial. E isso é necessário porque, se mantido
um cenário de democracia política, a tendência é se reduzir, cada vez mais, a
chance de retorno daquele tipo de presidencialismo que sempre tivemos. Os
freios ao protagonismo presidencial vieram para ficar e talvez aí resida a
chance de uma renovação democrática, mais do que na busca de uma liderança
plebiscitária nova. Digo que é desafio maior porque exigirá das forças
democráticas de centro-esquerda uma nova atitude política diante de partidos,
parlamento, sociedade civil, etc..
Impressões de um político realista do campo
da centro-direita, como Guilherme Kassab, são de que a sombra bolsonarista sobre
o campo da direita manterá relevância, ao menos por enquanto. É notícia ruim
para um projeto de esquerda que pense dar, já em 2026, passos para quebrar o
círculo vicioso da guerra entre populismos distintos. Muitas avaliações na
esquerda ou na centro-esquerda vão – assim como a de Kassab, para o caso da direita
e centro-direita - na linha de que, para esse fim, 2026 já foi.
Geralmente, as declarações de Kassab são
tranquilizadoras porque ele não compra diagnósticos tributários do clima de
polarização. Ao contrário, nunca confunde embates políticos com riscos
institucionais e tende a raciocinar como quem confia no predomínio, afinal, da
moderação. Ele não apenas costuma prescrever essa atitude como demonstra crença
na sua eficácia. Mas numa entrevista a O Globo, em 08.08.25, pronunciou duas
frases em outra direção. Numa, reconhece que há uma confrontação entre os
poderes e noutra se diz preocupado com os rumos da política brasileira. Vindas de Kassab, são afirmações que não
devem ser vistas como figuras de retórica.
A guerra entre elites e o cotidiano do
povo
Dentre todos os riscos, o que mais precisa
ser evitado é o da política falar para as paredes. O esticar de cordas da hora
atual pode legitimar Trump, ainda que temporariamente, perante os olhos de uma
população angustiada por privações extremas e órfã de liderança política
clarividente. Um processo, já em curso, de deterioração da confiança na
política. Ele pode se agravar até o caos autoritário ou se prolongar até a
esquerda, nocauteada, ceder o protagonismo, na luta antiautoritária, a um arco
de alianças liberal-democrático amplo, tal como no caminho que nos tirou da
ditadura e nos trouxe à democracia que temos. O país precisaria de uma força ou liderança de
esquerda que economizasse esse drama e entendesse, por reflexão própria, que
liberais são aliados permanentes, não só circunstanciais.
Vale olhar para o lado e ver o que ocorre na
Argentina, após um populismo continuado, que lidou levianamente com a
democracia representativa. No Chile, Boric, como miragem de oásis, ainda tenta
evitar desfecho análogo. Teria alguma chance, pois não tem ali o óbice do populismo
de esquerda. Mas tem de lidar com um esquerdismo atávico na sua cozinha. Tudo
indica que não conseguirá frutos, ao menos agora, embora tenha plantado boas
sementes. Se depender das esquerdas latino americanas (a nossa incluída) as
sementes ainda ficarão solteiras por um bom tempo.
Os indianos, por exemplo, para aguentarem o
tranco de Trump, poderão, se assim decidirem, recorrer à sua civilização
milenar, distinta do Ocidente e acessar a memória política e cultural de
Gandhi, apesar da repolarização do mundo. Já no Brasil - onde vozes
imprudentes, têm buscado renegar nossa origem ocidental e nossa tradição
política conciliadora - se forem queimadas essas pontes poderemos, talvez,
preservar, ao menos, a religião popular e apelar a Santo Antônio, procurador e
achador de coisas perdidas, refazendo, no cotidiano e por baixo, o caminho
nacional, para refratar o descaminho que a guerra entre facções das elites
políticas, econômicas e culturais terá traçado, se prevalecer.
Mas como se fosse sábado, pensemos também em
como a política pode cuidar de refratar o ódio e o medo, dois descaminhos que,
se prevalecerem, interditarão sonhos de pessoas comuns de comerem goiabada
cascão com muito queijo e beijo; e enfraquecerão o impulso de reagir ao frio
com a sabedoria de não rejeitar o cobertor providencial que já têm à mão. E
abrir caminhos à sociedade brasileira para dar um passo além do medo e se deter
a um passo aquém do ódio. Nisso resume-se muito da esperança de não termos de
padecer, num futuro de prazo ignorado, saudades insanáveis da nossa maloca.
Esperança de que a política faça com que marcas de origem sejam como marcas de
dendê e não saiam.
*Cientista político e professor da UFBA.
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