terça-feira, 30 de setembro de 2025

O que a mídia pensa | Editoriais / Opiniões

Fachin acerta ao pregar Supremo longe da política

Por O Globo

Novo presidente do STF faz bem em fugir dos holofotes, mas não poderá se esquivar de questões espinhosas

Na cerimônia de posse como novo presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), o ministro Edson Fachin deu o tom que pretende imprimir a sua gestão. “Assumo não um Poder, mas um dever: respeitar a Constituição e apreender limites. Buscaremos cultivar a virtude do discernimento”, afirmou. “Ao Direito, o que é do Direito. À política, o que é da política.” A tônica de seu discurso foi a institucionalidade e o chamado ao diálogo republicano entre os Poderes, sem que o Judiciário fique submetido a populismos. Sua discrição já ficara nítida quando ele recusou qualquer badalação e festa de celebração. É sem dúvida positivo que tente desviar do Supremo os holofotes que, nem sempre com razão, se voltam para a Corte e seus ministros. Mas será preciso agir com determinação quando necessário. O STF não pode se esquivar de enfrentar questões espinhosas que volta e meia acabam por desaguar lá.

Desde a Constituição de 1988, sindicatos, partidos políticos ou ocupantes de altos cargos públicos podem acionar o STF por motivos variados. Na maioria dos países, os processos precisam começar em instâncias inferiores e trilhar longo caminho até o topo, e a maioria das Cortes Supremas costuma exercer apenas controle de constitucionalidade. O arranjo brasileiro é distinto. O Supremo é constantemente chamado a decidir sobre questões as mais diversas, além de funcionar como tribunal penal para as autoridades com prerrogativa de foro. Como presidente do STF, o poder de Fachin está na definição do ritmo daquilo que será votado.

Ele deve exercê-lo com equilíbrio e sensatez. De um lado, como pregou, precisa evitar que o Supremo assuma competências estranhas a seus deveres constitucionais, trilhando o caminho arriscado do ativismo judicial. De outro, é preciso não ser omisso diante das tarefas que se impõem. A mais imediata será a conclusão dos julgamentos relativos à tentativa de golpe de Estado, num momento em que o Judiciário brasileiro é alvo de sanções descabidas dos Estados Unidos. Alas do Congresso têm também lançado desafios constantes ao Supremo. É um quadro que exige temperança e, ao mesmo tempo, firmeza. Foi o que prometeu.

Nos últimos dez anos, Fachin construiu uma reputação de magistrado sério e discreto, em especial pelo papel que assumiu em casos de destaque, como a Operação Lava-Jato ou a ADPF das Favelas. “Fachin é uma pessoa de grande integridade pessoal, preparo técnico e idealismo. O país tem muita sorte de tê-lo na presidência”, afirmou o agora ex-presidente do Supremo Luís Roberto Barroso. “Ele fala por meio dos autos, é um homem muito institucional e que a vida inteira pregou, inclusive em seus votos, uma preocupação muito grande com a proteção do indivíduo”, diz o jurista Álvaro Jorge, da FGV Direito Rio.

Não há como esquecer o protagonismo do STF na defesa da democracia brasileira, antes e depois do 8 de Janeiro. Em 2022, ano das últimas eleições presidenciais, Fachin ocupou a presidência do Tribunal Superior Eleitoral por seis meses e teve papel importante no combate à desinformação sobre as urnas eletrônicas. O tom de sua gestão dependerá em grande parte das circunstâncias. Em qualquer situação, sua missão deverá ser aquela com que se comprometeu e que se espera de todo presidente do Supremo: a defesa da Constituição.

Governo deve cumprir decisão do TCU sobre meta fiscal, e não contestá-la

Por O Globo

Tribunal chamou a atenção para o óbvio: objetivo a perseguir é déficit zero, não o limite de tolerância

O governo precisa parar de usar subterfúgios para cumprir a meta fiscal deste ano. O Tribunal de Contas da União (TCU) emitiu na semana passada um alerta para um fato óbvio que, infelizmente, o Executivo tem esquecido em seus cálculos e projeções: a meta fiscal estipulada na Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) é zero, e não o déficit primário de pouco mais de R$ 30 bilhões, ou 0,25% do PIB, permitido pelo limite de tolerância.

De acordo com o TCU, as bandas criadas em torno do centro da meta, para mais ou para menos, se justificam apenas para acomodar situações imprevistas. Não podem ser um artifício para o governo deixar de se esforçar para atingir o objetivo com que se comprometeu. Não há nenhum motivo extraordinário — como houve no ano passado, com as enchentes do Rio Grande do Sul — que justifique encerrar o ano no vermelho.

É certo que a maior parte do Orçamento é engessada por gastos obrigatórios. Mas isso é uma justificativa frágil para a postura frouxa com a responsabilidade fiscal. O déficit fiscal estrutural do Estado brasileiro tem sido estimado entre 2% e 3% do PIB. Para reduzi-lo, é essencial adotar medidas de caráter duradouro, como desvincular as aposentadorias e benefícios previdenciários do salário mínimo ou revisar pisos obrigatórios de despesas. Em vez disso, porém, o governo tem insistido, sempre que possível, em tentar excluir novas despesas do cálculo das metas.

Ainda que não disponha de vontade política para promover ajustes estruturais, é evidente que o governo poderia fazer mais para conter os gastos livres do Orçamento. Até agora, não promoveu nenhum contingenciamento orçamentário, apenas um bloqueio de R$ 12,1 bilhões, mecanismo usado para remanejamento de verbas, sem afetar o resultado final das contas públicas. O Congresso é também sócio da incúria, já que controla, por meio de emendas parlamentares, mais de um quinto dos gastos livres do Orçamento, patamar que não encontra paralelo em nenhum outro país do mundo. Cortes nas emendas são fundamentais.

Todo aumento de despesa não coberto pela receita tributária se converte em dívida pública. Quando o atual governo tomou posse, em janeiro de 2023, ela estava em 71,7% do PIB, pelo critério do Fundo Monetário Internacional (FMI). Em julho deste ano, já atingia 77,6% do PIB. E não para de crescer. Quando o gasto resulta em dívida crescente, o mercado de títulos públicos exige rendimento mais alto, contribuindo para pressionar os juros. Não é outro o motivo para o Brasil exibir juros reais entre os mais altos do mundo. Se o governo zelasse pelas metas fiscais sem artifícios, permitiria a queda sustentável dos juros, trazendo maior dinamismo à economia. Por isso, em vez de recorrer da decisão do TCU como anunciou, o governo deveria cumpri-la.

Plano de paz de Trump eleva pressão sobre o Hamas

Por Folha de S. Paulo

Aceitas por Israel, propostas incluem de imediato suspensão de operações militares e devolução dos reféns

Republicano diz que caso o Hamas não aceite o acordo, o Estado judeu terá seu apoio para destruir a ameaça; futuro de Gaza gera dúvidas

O americano Donald Trump apresentou nesta segunda (29) um plano para encerrar os dois anos da guerra entre Israel e o Hamas na Faixa de Gaza. Dadas as extensas garantias à segurança de seu país, o primeiro-ministro israelense, Binyamin Netanyahu, que se reuniu com Trump na Casa Branca, concordou até mesmo com termos que antes rejeitara.

A paz, entretanto, dependerá da aceitação da parte omissa nesse quarto encontro entre os dois líderes em Washington. O Hamas, que governa Gaza à base de truculência desde 2006, alegou não ter sido informado sobre as condições que envolvem seu esvaziamento político e militar.

O grupo terrorista terá 72 horas, contadas a partir da adesão pública de Netanyahu ao acordo, para responder com uma ação efetiva: a devolução de reféns vivos e mortos feitos no ataque de 7 de outubro de 2023 a Israel.

A contrapartida do Estado judeu será a suspensão das operações militares em Gaza, com a posterior retirada de suas forças, e a libertação de quase 2.000 palestinos presos. Tel Aviv ainda promete ajuda humanitária e anistia aos integrantes do Hamas que depuserem armas e aceitarem a existência de Israel.

Trump disse acreditar que o Hamas aceitará o acordo, mas que, em caso contrário, Netanyahu terá seu apoio "para fazer o trabalho de destruir a ameaça".

Seja por ambições pessoais ou convicção de que o conflito foi longe demais, como já explicitou, Trump costurou o aval das lideranças de nações árabes e muçulmanas a seu plano. Terceirizou, dessa forma, a tarefa de convencer o Hamas a dissolver-se.

Entretanto a baixa densidade dos tópicos do acordo sobre a futura governança e a reconstrução da Faixa de Gaza dá margem a potenciais recuos do Hamas e de Israel. Nesses pontos, o texto ainda é uma carta de intenções.

Não há compromisso de Israel e dos EUA de reconhecimento do Estado Palestino nem garantia de Tel Aviv de não expandir sua ocupação da Cisjordânia por meio de assentamentos.

Há exigências à Autoridade Nacional Palestina, governante da Cisjordânia, de reconhecer o Estado de Israel e reformar-se —eufemismo para combater a corrupção interna— antes de assumir a gestão temporária de Gaza.

Não é tranquilizadora a previsão de que caberá a Trump elaborar o plano de desenvolvimento do enclave, depois de sua proposta de transformá-lo em uma "Riviera do Oriente Médio". O mesmo vale para a Força Internacional de Estabilização, a ser criada e presidida pelo republicano.

Na Casa Branca, Netanyahu afirmou ter alcançado, com Trump, "o impossível". Até a tarde de quinta (2), porém, o plano de paz não passará de uma curta trégua, certamente bem-vinda para os palestinos famélicos e movidos, sob a mira de soldados israelenses, por uma Faixa de Gaza em ruínas. Acabar com o ódio e ressentimentos na região será tarefa de prazo muito mais longo.

Estado mais enxuto para menos professores temporários

Por Folha de S. Paulo

Aumento desse tipo de contratação é sintoma de orçamentos engessados e regime de servidores arcaico

A contratação de temporários pelas redes de ensino estaduais subiu 42% entre 2017 e 2023; é preciso agilizar a reforma administrativa

Mais uma pesquisa constata aumento expressivo de professores temporários nas redes de ensino, além da precarização trabalhista.

O fenômeno, contudo, tende a persistir sem mudanças profundas na burocracia estatal brasileira, dado que sua origem está nos orçamentos engessados e numa gestão pública arcaica e onerosa.

Segundo levantamento do Movimento Pessoas à Frente, organização sem fins lucrativos, a contratação de temporários pelos governos estaduais subiu 42% entre 2017 e 2023. Entre os 26 estados mais o Distrito Federal, só em 5 não houve crescimento: Ceará, Rio Grande do Norte, Amazonas, Minas Gerais e Paraná.

De acordo com pesquisa da ONG Todos Pela Educação, feita a partir de dados do Ministério da Educação, a taxa de temporários (51,6%) nas redes estaduais superou a de efetivos (46,5%) em 2023, ante 31,1% e 68,4%, respectivamente, em 2013 —o restante era terceirizado ou CLT.

Ademais, 43,6% dos temporários trabalhavam há ao menos 11 anos, quando esse tipo de contratação deveria atender a uma necessidade transitória e durar até no máximo dois anos.

O estudo do Movimento Pessoas à Frente também mostra que esses professores recebem cerca de 51% a menos do que os efetivos e que estados falham na garantia de direitos trabalhistas.

Licença-maternidade é ofertada em 10 deles, e apenas 2 asseguram estabilidade à gestante; licenças para tratamento de saúde são permitidas em 9; só 4 oferecem auxílio-alimentação; férias remuneradas não são garantidas em 6, e em 7 não há 13º salário.

Considerando que 83,6% dos alunos do ensino médio estão na rede estadual e que essa etapa apresenta os piores indicadores da educação básica, a precarização do trabalho de fato preocupa.

Mas a contratação de temporários vem da necessidade de conter a alta de gastos permanentes, dados o déficit dos sistemas previdenciários e o envelhecimento da população. Orçamentos engessados dificultam a empreitada, ainda mais com um regime de servidores que atravanca gestões flexíveis, modernas e racionais.

É preciso apressar uma reforma administrativa que, entre outras medidas, elimine a estabilidade em carreiras que não são de Estado e institua avaliações de desempenho, a serem usadas para melhorar o serviço oferecido, elevar remunerações ou promover substituição de profissionais.

Assim, só exigir mais concursos para efetivos e aumento salarial não ataca o cerne do problema. Para isso, é imperativo abandonar posturas corporativistas.

Investimento em infraestrutura desacelera quando é mais necessário

Por Valor Econômico

Os investimentos em infraestrutura vão aumentar neste ano pouco mais de 4%, menos da metade dos 9,6% registrados em 2024

Depois de terem surpreendido positivamente em 2024, os investimentos em infraestrutura devem desacelerar neste ano. Juros altos, desaquecimento da economia, insegurança jurídica com a possibilidade de tributação das debêntures incentivadas e problemas de gerenciamento do Novo PAC, o Programa de Aceleração do Crescimento, desestimulam os negócios. A Inter.B Consultoria Internacional de Negócios estima que os investimentos em infraestrutura vão aumentar neste ano pouco mais de 4%, menos da metade dos 9,6% registrados em 2024, quando atingiram R$ 266,8 bilhões. Eles poderão chegar perto de R$ 278 bilhões.

Um dos setores mais dinâmicos da infraestrutura e o que lidera em investimentos, com mais de R$ 100 bilhões aplicados anualmente desde 2022, a energia elétrica deve tirar o pé do acelerador. No ano passado, investiu R$ 112,8 bilhões e deve ficar pouco acima neste ano, em R$ 113,2 bilhões. O setor vem passando por elevado estresse. As fontes de energia renovável eólica e solar, que se desenvolveram para enfrentar o problema da redução da geração de energia hidroelétrica em momentos de escassez hídrica, inclusive por meio do estímulo à proliferação de painéis fotovoltaicos nos tetos das casas, acabou causando o paradoxo do excesso de energia durante o dia e risco de apagão à noite, que pode levar ao acionamento das sempre mais caras térmicas (Valor, 22/9).

O descompasso já quase provocou blecautes nacionais em abril e em agosto de 2025. Para evitar o risco, o Operador Nacional do Sistema (ONS) obriga o desligamento temporário de parques solares e eólicos — o chamado “curtailment” —, causando perdas financeiras às usinas. Mais que um problema técnico de controle da operação, serão necessárias mudanças de política pública e de incentivos econômicos. Enquanto isso não ocorre, os investimentos são desestimulados.

A área de transportes, que fica em segundo lugar, deve apresentar maior dinamismo, com crescimento de 6% nos investimentos em infraestrutura, de R$ 84,6 bilhões para R$ 90 bilhões, metade dos quais em rodovias. Um dos destaques na área foi o recentemente leiloado Túnel Santos-Guarujá, o primeiro imerso da América Latina, cuja construção ficará a cargo da construtora portuguesa Mota-Engil, que tem a chinesa CCCC como acionista. O empreendimento exigirá investimentos de R$ 6,8 bilhões, divididos entre o governo federal e o estadual.

Em terceiro lugar vem o setor de saneamento, que deve investir R$ 46 bilhões neste ano, 12% acima dos R$ 41,1 bilhões de 2024, segundo a Inter.B, percentual superior aos registrados pelos demais segmentos. Influenciado pelo Novo Marco Legal do Saneamento Básico, o setor dobrou o volume de investimentos nos últimos dois anos. Apesar disso, ainda não atingiu o patamar necessário para a universalização do serviço previsto no marco.

Os investimentos em infraestrutura vêm sendo garantidos pelo setor privado, que contribuiu com 2,4 vezes mais do que o volume de recursos canalizados pela área pública, relação que sobe neste ano para 2,6 vezes. Um bom exemplo das limitações da atuação do setor público na infraestrutura é o PAC.

Lançado há dois anos com a promessa de investir R$ 1,3 trilhão até 2026 em infraestrutura em sentido amplo, incluindo de estradas a escolas e hospitais, o novo PAC é a principal vitrine do governo Lula nessa área. Mas nem todos os recursos comprometidos foram liberados, o que indica volume significativo de obras que podem atrasar. Entre 2023 e 2025, o governo de Lula reservou R$ 111 bilhões para o programa, dos quais pagou R$ 94,3 bilhões. Mas R$ 16,7 bilhões restantes não foram desembolsados por não haver comprovação de que o empreendimento foi concluído.

Esses projetos empacados são equipamentos públicos importantes para as pessoas, como hospitais, policlínicas, postos de saúde, escolas e creches, a maioria deles sugerida por prefeitos e governadores no chamado PAC Seleções. Por isso, preocupam o governo do ponto de vista político.

Além disso, o Tribunal de Contas da União (TCU) apontou problemas críticos de falta de transparência na seleção de projetos do PAC, na atuação da Casa Civil, no acompanhamento das obras e de clareza das informações divulgadas no site do Novo PAC, e pediu que as falhas sejam sanadas. Apesar de o PAC ser um programa que existiu em outros governos do PT, as informações exigidas pelo TCU são básicas. O TCU pede, de projetos financiados por investimentos privados, os valores totais, cronogramas, percentuais de execução, etapas concluídas e previsão de término, esclarecimento das fontes de financiamento, indicadores de desempenho para se avaliar o progresso das obras e cumprimento de prazos e do orçamento.

A desaceleração do investimento ocorre quando se precisaria de mais avanços. Segundo Claudio Frischtak, sócio da Inter.B, para atender as mudanças climáticas, que vão pôr em xeque as redes de saneamento e de energia, por exemplo, e a modernização das instalações existentes, o investimento necessário é de 4,65% do PIB durante as próximas duas décadas, o dobro dos 2,19% previstos para este ano.

Novo Código Civil demole a ordem jurídica

Por O Estado de S. Paulo

Travestindo populismo jurídico de modernização, proposta amplia o arbítrio judicial, incentiva a judicialização e mina a segurança jurídica. Catastrófica e irremediável, precisa ser arquivada

O Senado instalou em setembro a comissão temporária encarregada de analisar o Projeto de Lei (PL) n.º 4/2025, que pretende reformar o Código Civil de 2002. O movimento ocorre em meio a uma onda de críticas sem precedentes. Não é para menos: longe de modernizar as bases jurídicas do País, ele ameaça dilapidá-las.

Sob o pretexto de atualização, a proposta, gestada por uma comissão presidida pelo ministro do Superior Tribunal de Justiça (STJ) Luis Felipe Salomão, altera quase 900 artigos, acrescenta 300, redesenha a estrutura e a linguagem do código e, na prática, fabrica um novo ordenamento civil – tudo produzido em apenas oito meses, sem debate público minimamente proporcional à magnitude da empreitada. Trata-se de uma artimanha: um novo Código Civil travestido de mera “revisão técnica”. O açodamento e a falta de pactuação social revelam não apenas imprudência, mas ilegitimidade.

Os riscos não são abstratos. O texto multiplica conceitos vagos que funcionam como verdadeiros coringas judiciais – “confiança”, “simetria”, “paridade”, “dignidade” –, franqueando ao Judiciário poder discricionário para decidir conforme a interpretação do momento. Em lugar de previsibilidade, cria-se um convite à judicialização. O resultado será a fragmentação de entendimentos, decisões contraditórias e a degradação daquilo que distingue um Estado de Direito de um regime arbitrário: regras claras, universais e estáveis.

Na seara contratual, a reforma transforma em letra morta a segurança dos negócios. O recurso indiscriminado à “função social” da propriedade e dos contratos – cujas referências aumentaram em 450% – abre margem para invalidar cláusulas a critério dos juízes, estimulando litígios intermináveis. A responsabilidade civil, por sua vez, é dilatada de modo caótico: deixa de se limitar ao dano ilícito para assumir funções punitivas, pedagógicas e moralizantes. O dever de indenizar passa a ser um jogo de azar, regido por máximas vagas e pelo gosto de quem julga.

Em carta aberta, a Federação Nacional dos Institutos dos Advogados foi categórica: o projeto é irremediável e deveria ser arquivado. Além de expor cidadãos e empresas à insegurança, fragiliza liberdades fundamentais e cria obstáculos adicionais à atividade econômica. No campo digital, por exemplo, propõe um marco regulatório sem paralelo em democracias avançadas, com restrições a plataformas virtuais que podem gerar retaliações internacionais e colocar o Brasil em rota de colisão com seus principais parceiros comerciais.

Juristas, entidades e veículos de imprensa convergem na denúncia de que o PL 4/2025 institucionaliza um populismo jurídico: promete proteger os vulneráveis, mas mina a previsibilidade das regras, encarece contratos e transfere ao juiz – e não ao legislador democraticamente eleito – o poder de definir os rumos da sociedade. O projeto mistura regras gerais de Direito Civil com proteção especial ao consumidor, propõe experimentos sociais temerários no direito de família e ignora leis recentes.

Mais grave, fragiliza o próprio Estado de Direito. O que está em jogo não é apenas a técnica legislativa, mas o equilíbrio institucional. Ao multiplicar conceitos indeterminados, o novo código legitima o ativismo judicial e reforça a concentração de poder em instâncias que já se mostram alarmantemente propensas ao arbítrio. A República não pode se dar ao luxo de ser alicerçada sobre a areia.

O Brasil não precisa de aventuras legislativas açodadas. O Código Civil, fruto de décadas de debates, permanece sólido em seus fundamentos. Reformas focadas, calibradas e, sobretudo, legitimamente consensuadas, são sempre possíveis; demolir o edifício inteiro, em nome de uma pretensa modernização, é irresponsabilidade.

O Senado tem agora a oportunidade – e a obrigação – de frear esta marcha da insensatez. Só há um caminho responsável: arquivar o PL 4/2025 e abrir, no futuro, um debate sério, amplo e transparente sobre ajustes que de fato se mostrem necessários. Qualquer outra solução será capitulação diante do arbítrio e convite ao caos jurídico.

Golpistas não merecem perdão

Por O Estado de S. Paulo

Rever punições desproporcionais aos bagrinhos do golpe é justo, mas anistiar os líderes da conspiração contra a República, ou abrandar suas penas, seria trair a Constituição e premiar o crime

O Senado cumpriu sua obrigação de enterrar a infame PEC da Bandidagem, tentativa sem-vergonha de conceder aos próprios parlamentares o poder de decidir se poderiam ou não ser investigados por suspeita de crimes. Agora, cabe à Câmara dos Deputados, se pretende reaver algum resquício de decência, rejeitar de forma igualmente inequívoca o projeto de lei que busca anistiar os golpistas condenados pelo Supremo Tribunal Federal (STF), em especial o principal instigador e beneficiário da sedição, o ex-presidente Jair Bolsonaro.

A anistia aos golpistas não é apenas um disparate jurídico e político. É, sobretudo, um inaceitável retrocesso civilizatório. A Constituição consagra o Estado Democrático de Direito desde o seu preâmbulo. Os princípios basilares do regime das liberdades foram alçados à condição de cláusulas pétreas. Logo, perdoar aqueles que atentaram desabridamente contra a ordem constitucional democrática significa, na prática, demolir a própria fundação estrutural que sustenta esta República.

É verdade que a Procuradoria-Geral da República e o STF, talvez no afã de impor exemplaridade na coerção de condutas inéditas na história recente do País, puniram desproporcionalmente muitos dos idiotas úteis que serviram de massa de manobra no 8 de Janeiro. Casos como o da cabeleireira condenada a 14 anos de prisão por pichar com batom a estátua da Justiça em frente à sede do Supremo merecem revisão criteriosa. O sistema penal não pode ser um instrumento de vingança nem tampouco pode operar em desalinho com os atos que pretende coibir. Mas essa necessária correção de rumos não pode, em hipótese alguma, se estender aos líderes de uma conspiração, sejam civis ou militares, que tramaram e executaram uma tentativa de golpe de Estado.

À luz do direito comparado, a legislação pátria já é bastante branda com crimes contra o Estado Democrático de Direito. O Código Penal prevê penas de 4 a 8 anos de reclusão para abolição violenta do Estado Democrático de Direito (art. 359-L) e de 4 a 12 anos para golpe de Estado (359-M). No cotejo internacional, essas sanções são quase prêmios aos golpistas. Alemanha, Argentina, Canadá, França e Reino Unido, por exemplo, preveem prisão perpétua para quem tenta um golpe de Estado. A Espanha estabelece 25 anos de cárcere. Nos Estados Unidos e no México, são até 20 anos de cadeia para os insurgentes. Só a Itália, com pena máxima de cinco anos de reclusão, é menos gravosa que o Brasil.

Ou seja, mesmo sem anistia, a punição aos golpistas brasileiros já é leve. Reduzi-la ainda mais não só nos afastaria do padrão civilizatório estabelecido por democracias mais maduras, como transmitiria à sociedade uma mensagem para lá de infeliz: por aqui, tentar subverter o resultado legítimo de uma eleição não seria crime tão grave. Ora, se os golpistas tivessem tido sucesso em seu intento, decerto não haveria qualquer complacência com os legalistas. É ocioso relembrar aqui o destino reservado por regimes de exceção aos dissidentes e opositores.

O Brasil deu um passo histórico ao condenar, pela primeira vez, um ex-presidente e altas autoridades civis e militares por conspirarem contra a democracia. Esse precedente é um marco institucional que precisa ser preservado, não enfraquecido, pelo Congresso. O Judiciário tem cumprido sua parte ao impor aos golpistas a devida responsabilização. Cabe ao Legislativo não apagar esse legado.

As manifestações no dia 21 passado foram eloquentes. A sociedade bradou “não” à PEC da Bandidagem e também à anistia aos golpistas. Ambas as iniciativas nasceram de um mesmo pacote de impunidade gestado nos corredores do Congresso, em total divórcio com o melhor interesse público. O governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas, afirmou que o grito das ruas revelou a “desconexão” entre sociedade e Parlamento. É verdade. Mas convém lembrar que seu partido, o Republicanos, votou maciçamente pela PEC da Bandidagem. Ademais, Tarcísio encarna pessoalmente a defesa da anistia que as ruas também repeliram.

Rever excessos cometidos contra os bagrinhos da intentona é legítimo. Já abrandar ou perdoar as penas dos articuladores do golpe é inconcebível. Seria um salvo-conduto para que, no futuro, velhos ou novos conspiradores se assanhem.

Mais promessas para o Tietê

Por O Estado de S. Paulo

Enquanto rios como o Sena, na França, e o Chicago, nos EUA, são revitalizados, o Rio Tietê segue poluído

No Dia do Rio Tietê, 22 de setembro, o governo do Estado de São Paulo abriu consulta pública para uma Parceria Público-Privada (PPP) de R$ 9,5 bilhões. A ideia é utilizar os recursos para bancar um programa com duração prevista de 15 anos para a limpeza e a revitalização do rio. Investimentos para um novo parque, o Salesópolis, e na manutenção e no paisagismo nas margens do maior rio do Estado também foram anunciados.

Para a secretária de Meio Ambiente, Infraestrutura e Logística de São Paulo, Natália Resende, a nova PPP representa um marco na recuperação do Rio Tietê. Ela também afirmou que, combinadas à universalização do saneamento, as novas medidas permitirão que a população volte a “interagir e a ter orgulho deste grande patrimônio de São Paulo que é o Tietê” até 2029.

Não há dúvida de que um rio limpo é de grande interesse dos paulistas. Revitalizados, o Tietê e o Pinheiros serão importantes espaços de lazer e meios de transporte para os paulistas, além de uma potencial fonte de recursos econômicos para a cidade, uma vez que toda uma gama de serviços pode ser instalada ao longo dos dois rios.

Mas acreditar que tal realidade finalmente se materialize em 2029, após décadas de promessas de diferentes governos – todas olimpicamente descumpridas –, é um exercício de fé.

Ao lançar o programa de despoluição do Tietê em 1992, o então governador Luiz Antonio Fleury Filho garantiu que beberia água do rio até o fim do seu mandato. Seus sucessores, Mário Covas e Geraldo Alckmin, também prometeram um rio limpo. Mais recentemente, o atual governador, Tarcísio de Freitas, afirmou que o rio estaria despoluído até 2026. Agora, sua secretária ambiental mira em 2029.

Como bem sabe qualquer pessoa que tenha passado pelas marginais que cortam a capital paulista, o rio está longe de estar limpo, apesar dos vultosos investimentos empregados para tal fim. É verdade que a situação é bem melhor que a de décadas atrás, quando, além de exalar odor nauseante, o rio transbordava para as marginais com religiosa frequência na época das grandes chuvas.

No entanto, consumir a água do Tietê, pescar em suas águas e utilizá-lo como fonte de lazer e via de transporte continuam sendo apenas vãs ilusões para a população.

Já em outros lugares do mundo, rios que de tão poluídos chegavam até mesmo a pegar fogo, como o Chicago, nos Estados Unidos, foram plenamente revitalizados. Nas margens daquele rio há toda uma infraestrutura de lazer, que vai de restaurantes a passeio de barco. Recentemente, centenas de pessoas mergulharam nas águas do Chicago, algo inédito em quase cem anos. Em Paris, um Sena despoluído para a Olimpíada tem recebido cada vez mais nadadores, incluindo turistas.

São Paulo pode replicar as experiências de Chicago e de Paris. Mas, para isso, será preciso coordenação efetiva com os vários municípios cortados pelo Tietê. Sem isso, até mesmo atrair interessados para a PPP de limpeza do rio torna-se difícil, pois o investidor pode ficar associado à imagem de um rio que consome recursos, mas não se recupera.

A missão desafiadora de Edson Fachin no STF

Por O Povo (CE)

O comando do Supremo Tribunal Federal (STF) muda de mãos e, a partir de agora, será responsabilidade do ministro Luiz Edson Fachin liderar a Corte mais alta do nosso Judiciário. A tarefa diante dele é desafiadora pelo momento inédito de pressões e ataques, internos e externos, contra os nossos juízes.

É possível que seu perfil discreto e cuidadoso ajude no encaminhamento de saída para uma crise institucional que já parece ter demorado além do que parecia suportável. Infelizmente, parte dos problemas que temos enfrentado são atribuíveis a comportamentos dos próprios ministros. A parte menor, destaque-se.

O momento pede discrição, atitudes firmes, claro, mas que estejam circunscritas à tarefa institucional que espera alguém que integre a Corte mais alta da estrutura nacional de justiça. Qualquer movimento que vá além disso servirá pouco ao esforço de restauração da normalidade do ambiente político.

O STF cumpre uma tarefa importante no recorte histórico recente do nosso País e, inclusive, devemos a ele, como poder de Estado, a ação principal de resposta a uma tentativa de golpe contra a democracia que está configurado, não resta dúvida de que aconteceu. É corajosa e necessária a decisão de encarar as dificuldades e levar adiante uma ação que apura responsabilidades por eventos criminosos acontecidos entre os anos de 2021 e 2023.

Dos 11 ministros do Supremo, oito estão com seus vistos de entrada nos Estados Unidos suspensos, como um dos exemplos do cenário que Fachin, um dos punidos pelo governo de Donald Trump, terá pela frente. O ambiente ruim é bastante alimentado, no âmbito interno, por setores da política identificados com o ex-presidente Jair Bolsonaro, que já teve condenação confirmada em julgamento na 1ª turma por participar (até liderar) da tentativa de golpe.

Na nova fase, com Edson Fachin substituindo a Luis Roberto Barroso, espera-se, como gesto inicial, manifestações claras de apoio à postura firme de até agora quanto à tentativa de ruptura institucional, inclusive com a comprovação de planejamento e execução de ações violentas. Ao mesmo tempo, é importante que se faça uma discussão acerca da necessidade de autopreservação dos ministros, como magistrados que são, por exemplo, evitando comentários públicos acerca de temas sobre os quais podem ser chamados a decidir.

Precisamos de um Supremo Tribunal forte, independente e altivo. Da mesma forma que nunca o tivemos tão exposto, inclusive submetido a injustificáveis ações punitivas de um governo estrangeiro que busca, através disso, interferir em assuntos fora do seu alcance com o interesse de atender o desejo de um aliado político, Edson Fachin pode ser o nome certo, considerado o seu perfil, para o delicado momento do Brasil. 

Contra o feminicídio, não basta pena histórica

Por Correio Braziliense

Sozinho, o endurecimento das leis não é capaz de salvar vidas e famílias. A punição é tão importante quanto a prevenção e o suporte às vítimas

Na noite de 20 de agosto de 2024, em um bar no Gama, Juliana Soares foi ameaçada de morte pelo ex-namorado, na frente de amigos e de clientes, enquanto comemorava seu aniversário de 34 anos. Inconformado por não ter sido convidado, Wallison Felipe de Oliveira esperou terminar a festa para cumprir a promessa. Atropelou Juliana por três vezes enquanto ela voltava a pé para casa ao lado da mãe e da filha de 5 anos. Avó e neta foram socorridas e sobreviveram. Juliana morreu no local, vítima de múltiplas fraturas graves e de um entendimento covarde de que mulheres não podem se recusar a corresponder às expectativas dos homens.

O crime teve como punição a maior pena por feminicídio da história do país: 67 anos, seis meses e 14 dias de prisão em regime inicialmente fechado. Isso em razão da entrada em vigor da Lei nº 14.994/2024 – que tipificou o feminicídio como crime autônomo e elevou os parâmetros para a pena privativa de liberdade, que varia entre 20 e 40 anos de reclusão (antes era de 12 a 30) –, além da responsabilização pelas tentativas de homicídio contra a filha e a mãe de Juliana. Trata-se de uma condenação a ser ressaltada pelo seu valor simbólico e jurídico, mas não suficiente para frear a epidemia de execução de mulheres em curso acelerado no Brasil.

No mesmo ano do assassinato de Juliana, registrou-se, no país, um média de quatro mortes de mulheres por dia em contextos de violência doméstica, familiar ou por menosprezo e discriminação. É o maior número de feminicídios da série histórica (desde 2020), segundo o Ministério da Justiça e da Segurança Pública. Casos de estupro também chegaram ao maior patamar: 83.114 ocorrências – o equivalente a 227 vítimas a cada 24 horas, sendo 86% delas do sexo feminino. Não se pode desconsiderar as tentativas de assassinato de mulheres no mesmo período – 3.870, média de 10 por dia –, além das outras formas de violência, como a psicológica e a virtual.

Considerando que marcos legais de proteção à mulher existem há décadas – a Lei do Feminicídio completou 10 anos em março e a Lei Maria da Penha, 19 anos em agosto –, fica evidente que, sozinho, o endurecimento das leis não é capaz de salvar vidas e famílias. A punição, insistem especialistas, é tão importante quanto a prevenção e o suporte às vítimas. “São necessários a identificação precoce de situações de risco, medidas protetivas eficazes, acolhimento seguro e apoio psicológico, jurídico e econômico às vítimas, além de uma mudança cultural com educação para a igualdade de gênero e combate à misoginia”, elenca a advogada especializada em direito das mulheres Jaqueline Costa.

A lista é diversa, como precisa ser o combate integral, e efetivo, à violência de gênero. Há uma sensação perigosa de que a epidemia de feminicídios é ignorada no país. Expressa, inclusive, em estudos. Divulgada no ano passado, a pesquisa Medo, ameaça e risco: percepções e vivências das mulheres sobre violência doméstica e feminicídio, realizada pelo Instituto Patrícia Galvão e Consulting do Brasil, com apoio do Ministério das Mulheres, mostra que 66% delas acham que nada acontece com os homens que cometem violência doméstica e que 95% deles, mesmo sabendo que se trata de crime, têm convicção de que não serão punidos. E mais: 90% concordam que evitar o assassinato é mais importante do que punir o feminicida.

Mulheres estão acuadas em um sistema estrutural que desqualifica suas histórias e sem confiar nas instituições que têm a obrigação constitucional de protegê-las. A epidemia de feminicídio que toma conta do Brasil passa desenfreadamente por cima da inviolabilidade do direito à vida e à segurança. O país precisa ouvir e respeitar quem está morrendo pela ineficiência coletiva de viver sob a égide da igualdade.

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