Fachin acerta ao pregar Supremo longe da política
Por O Globo
Novo presidente do STF faz bem em fugir dos
holofotes, mas não poderá se esquivar de questões espinhosas
Na cerimônia de posse como novo presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), o ministro Edson Fachin deu o tom que pretende imprimir a sua gestão. “Assumo não um Poder, mas um dever: respeitar a Constituição e apreender limites. Buscaremos cultivar a virtude do discernimento”, afirmou. “Ao Direito, o que é do Direito. À política, o que é da política.” A tônica de seu discurso foi a institucionalidade e o chamado ao diálogo republicano entre os Poderes, sem que o Judiciário fique submetido a populismos. Sua discrição já ficara nítida quando ele recusou qualquer badalação e festa de celebração. É sem dúvida positivo que tente desviar do Supremo os holofotes que, nem sempre com razão, se voltam para a Corte e seus ministros. Mas será preciso agir com determinação quando necessário. O STF não pode se esquivar de enfrentar questões espinhosas que volta e meia acabam por desaguar lá.
Desde a Constituição de 1988, sindicatos,
partidos políticos ou ocupantes de altos cargos públicos podem acionar o STF
por motivos variados. Na maioria dos países, os processos precisam começar em
instâncias inferiores e trilhar longo caminho até o topo, e a maioria das
Cortes Supremas costuma exercer apenas controle de constitucionalidade. O
arranjo brasileiro é distinto. O Supremo é constantemente chamado a decidir
sobre questões as mais diversas, além de funcionar como tribunal penal para as
autoridades com prerrogativa de foro. Como presidente do STF, o poder de Fachin
está na definição do ritmo daquilo que será votado.
Ele deve exercê-lo com equilíbrio e sensatez.
De um lado, como pregou, precisa evitar que o Supremo assuma competências
estranhas a seus deveres constitucionais, trilhando o caminho arriscado do
ativismo judicial. De outro, é preciso não ser omisso diante das tarefas que se
impõem. A mais imediata será a conclusão dos julgamentos relativos à tentativa
de golpe de Estado, num momento em que o Judiciário brasileiro é alvo de
sanções descabidas dos Estados Unidos. Alas do Congresso têm também lançado
desafios constantes ao Supremo. É um quadro que exige temperança e, ao mesmo
tempo, firmeza. Foi o que prometeu.
Nos últimos dez anos, Fachin construiu uma
reputação de magistrado sério e discreto, em especial pelo papel que assumiu em
casos de destaque, como a Operação Lava-Jato ou a ADPF das Favelas. “Fachin é
uma pessoa de grande integridade pessoal, preparo técnico e idealismo. O país
tem muita sorte de tê-lo na presidência”, afirmou o agora ex-presidente do
Supremo Luís Roberto Barroso. “Ele fala por meio dos autos, é um homem muito
institucional e que a vida inteira pregou, inclusive em seus votos, uma
preocupação muito grande com a proteção do indivíduo”, diz o jurista Álvaro
Jorge, da FGV Direito Rio.
Não há como esquecer o protagonismo do STF na
defesa da democracia brasileira, antes e depois do 8 de Janeiro. Em 2022, ano
das últimas eleições presidenciais, Fachin ocupou a presidência do Tribunal
Superior Eleitoral por seis meses e teve papel importante no combate à
desinformação sobre as urnas eletrônicas. O tom de sua gestão dependerá em
grande parte das circunstâncias. Em qualquer situação, sua missão deverá ser
aquela com que se comprometeu e que se espera de todo presidente do Supremo: a
defesa da Constituição.
Governo deve cumprir decisão do TCU sobre meta
fiscal, e não contestá-la
Por O Globo
Tribunal chamou a atenção para o óbvio:
objetivo a perseguir é déficit zero, não o limite de tolerância
O governo precisa parar de usar subterfúgios
para cumprir a meta fiscal deste ano. O Tribunal de Contas da União (TCU)
emitiu na semana passada um alerta para um fato óbvio que, infelizmente, o
Executivo tem esquecido em seus cálculos e projeções: a meta fiscal estipulada
na Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) é zero, e não o déficit primário de
pouco mais de R$ 30 bilhões, ou 0,25% do PIB, permitido pelo limite de
tolerância.
De acordo com o TCU, as bandas criadas em
torno do centro da meta, para mais ou para menos, se justificam apenas para
acomodar situações imprevistas. Não podem ser um artifício para o governo
deixar de se esforçar para atingir o objetivo com que se comprometeu. Não há
nenhum motivo extraordinário — como houve no ano passado, com as enchentes do
Rio Grande do Sul — que justifique encerrar o ano no vermelho.
É certo que a maior parte do Orçamento é
engessada por gastos obrigatórios. Mas isso é uma justificativa frágil para a
postura frouxa com a responsabilidade fiscal. O déficit fiscal estrutural do
Estado brasileiro tem sido estimado entre 2% e 3% do PIB. Para reduzi-lo, é
essencial adotar medidas de caráter duradouro, como desvincular as
aposentadorias e benefícios previdenciários do salário mínimo ou revisar pisos
obrigatórios de despesas. Em vez disso, porém, o governo tem insistido, sempre
que possível, em tentar excluir novas despesas do cálculo das metas.
Ainda que não disponha de vontade política
para promover ajustes estruturais, é evidente que o governo poderia fazer mais
para conter os gastos livres do Orçamento. Até agora, não promoveu nenhum
contingenciamento orçamentário, apenas um bloqueio de R$ 12,1 bilhões,
mecanismo usado para remanejamento de verbas, sem afetar o resultado final das
contas públicas. O Congresso é também sócio da incúria, já que controla, por
meio de emendas parlamentares, mais de um quinto dos gastos livres do
Orçamento, patamar que não encontra paralelo em nenhum outro país do mundo.
Cortes nas emendas são fundamentais.
Todo aumento de despesa não coberto pela receita tributária se converte em dívida pública. Quando o atual governo tomou posse, em janeiro de 2023, ela estava em 71,7% do PIB, pelo critério do Fundo Monetário Internacional (FMI). Em julho deste ano, já atingia 77,6% do PIB. E não para de crescer. Quando o gasto resulta em dívida crescente, o mercado de títulos públicos exige rendimento mais alto, contribuindo para pressionar os juros. Não é outro o motivo para o Brasil exibir juros reais entre os mais altos do mundo. Se o governo zelasse pelas metas fiscais sem artifícios, permitiria a queda sustentável dos juros, trazendo maior dinamismo à economia. Por isso, em vez de recorrer da decisão do TCU como anunciou, o governo deveria cumpri-la.
Plano de paz de Trump eleva pressão sobre o
Hamas
Por Folha de S. Paulo
Aceitas por Israel, propostas incluem de
imediato suspensão de operações militares e devolução dos reféns
Republicano diz que caso o Hamas não aceite o
acordo, o Estado judeu terá seu apoio para destruir a ameaça; futuro de Gaza
gera dúvidas
O americano Donald Trump apresentou
nesta segunda (29) um plano para
encerrar os dois anos da guerra entre Israel e o Hamas na Faixa de Gaza.
Dadas as extensas garantias à segurança de seu país, o primeiro-ministro
israelense, Binyamin Netanyahu, que se reuniu com Trump na Casa Branca,
concordou até mesmo com termos que antes rejeitara.
A paz, entretanto, dependerá da aceitação da
parte omissa nesse quarto encontro entre os dois líderes em Washington. O Hamas,
que governa Gaza à base de truculência desde 2006, alegou não ter sido
informado sobre as condições que envolvem seu esvaziamento político e militar.
O grupo terrorista terá 72 horas, contadas a
partir da adesão pública de Netanyahu ao acordo, para responder com uma ação
efetiva: a devolução de reféns vivos e mortos feitos no ataque de 7 de outubro
de 2023 a Israel.
A contrapartida do Estado judeu será a
suspensão das operações militares em Gaza, com a posterior retirada de suas
forças, e a libertação de quase 2.000 palestinos presos. Tel Aviv ainda promete
ajuda humanitária e anistia aos integrantes do Hamas que depuserem armas e
aceitarem a existência de Israel.
Trump disse acreditar que o Hamas aceitará o
acordo, mas que, em caso contrário, Netanyahu terá seu apoio "para fazer o
trabalho de destruir a ameaça".
Seja por ambições pessoais ou convicção de
que o conflito foi longe demais, como já explicitou, Trump costurou o aval das
lideranças de nações árabes e muçulmanas a seu plano. Terceirizou, dessa forma,
a tarefa de convencer o Hamas a dissolver-se.
Entretanto a baixa densidade dos tópicos do
acordo sobre a futura governança e a reconstrução da Faixa de Gaza dá margem a
potenciais recuos do Hamas e de Israel. Nesses pontos, o texto ainda é uma
carta de intenções.
Não há compromisso de Israel e dos EUA de
reconhecimento do Estado Palestino nem garantia de Tel Aviv de não expandir sua
ocupação da Cisjordânia por
meio de assentamentos.
Há exigências à Autoridade Nacional Palestina,
governante da Cisjordânia, de reconhecer o Estado de Israel e reformar-se
—eufemismo para combater a corrupção interna— antes de assumir a gestão
temporária de Gaza.
Não é tranquilizadora a previsão de que
caberá a Trump elaborar o plano de desenvolvimento do enclave, depois de sua
proposta de transformá-lo
em uma "Riviera do Oriente Médio". O mesmo vale para a
Força Internacional de Estabilização, a ser criada e presidida pelo
republicano.
Na Casa Branca, Netanyahu afirmou ter
alcançado, com Trump, "o impossível". Até a tarde de quinta (2),
porém, o plano de paz não passará de uma curta trégua, certamente bem-vinda
para os palestinos
famélicos e movidos, sob a mira de soldados israelenses, por uma
Faixa de Gaza em ruínas. Acabar com o ódio e ressentimentos na região será
tarefa de prazo muito mais longo.
Estado mais enxuto para menos professores
temporários
Por Folha de S. Paulo
Aumento desse tipo de contratação é sintoma
de orçamentos engessados e regime de servidores arcaico
A contratação de temporários pelas redes de
ensino estaduais subiu 42% entre 2017 e 2023; é preciso agilizar a reforma
administrativa
Mais uma pesquisa constata aumento expressivo
de professores temporários nas redes de ensino, além da precarização
trabalhista.
O fenômeno, contudo, tende a persistir sem
mudanças profundas na burocracia estatal brasileira, dado que sua origem está
nos orçamentos engessados e numa gestão pública arcaica e onerosa.
Segundo levantamento do Movimento Pessoas à
Frente, organização sem fins lucrativos, a contratação de temporários pelos
governos estaduais subiu 42%
entre 2017 e 2023. Entre os 26 estados mais o Distrito Federal, só
em 5 não houve crescimento: Ceará, Rio Grande do Norte, Amazonas, Minas Gerais
e Paraná.
De acordo com pesquisa da ONG Todos
Pela Educação,
feita a partir de dados do Ministério da Educação, a taxa de temporários
(51,6%) nas redes estaduais superou a de efetivos (46,5%) em 2023, ante 31,1% e 68,4%, respectivamente, em 2013 —o restante
era terceirizado ou CLT.
Ademais, 43,6% dos temporários trabalhavam há
ao menos 11 anos, quando esse tipo de contratação deveria atender a uma
necessidade transitória e durar até no máximo dois anos.
O estudo do Movimento Pessoas à Frente também
mostra que esses professores recebem cerca de 51% a menos do que os efetivos e
que estados falham na garantia de direitos trabalhistas.
Licença-maternidade é ofertada em 10 deles, e
apenas 2 asseguram estabilidade à gestante; licenças para tratamento de saúde
são permitidas em 9; só 4 oferecem auxílio-alimentação; férias remuneradas não
são garantidas em 6, e em 7 não há 13º salário.
Considerando que 83,6% dos alunos do ensino
médio estão na rede estadual e que essa etapa apresenta os piores indicadores
da educação básica, a precarização do trabalho de fato preocupa.
Mas a contratação de temporários vem da
necessidade de conter a alta de gastos permanentes, dados o déficit dos
sistemas previdenciários e o envelhecimento da população. Orçamentos engessados
dificultam a empreitada, ainda mais com um regime de servidores que atravanca
gestões flexíveis, modernas e racionais.
É preciso
apressar uma reforma administrativa que, entre outras medidas,
elimine a estabilidade em carreiras que não são de Estado e institua avaliações
de desempenho, a serem usadas para melhorar o serviço oferecido, elevar
remunerações ou promover substituição de profissionais.
Assim, só exigir mais concursos para efetivos e aumento salarial não ataca o cerne do problema. Para isso, é imperativo abandonar posturas corporativistas.
Investimento em infraestrutura desacelera
quando é mais necessário
Por Valor Econômico
Os investimentos em infraestrutura vão
aumentar neste ano pouco mais de 4%, menos da metade dos 9,6% registrados em
2024
Depois de terem surpreendido positivamente em
2024, os investimentos em infraestrutura devem desacelerar neste ano. Juros
altos, desaquecimento da economia, insegurança jurídica com a possibilidade de
tributação das debêntures incentivadas e problemas de gerenciamento do Novo
PAC, o Programa de Aceleração do Crescimento, desestimulam os negócios. A
Inter.B Consultoria Internacional de Negócios estima que os investimentos em
infraestrutura vão aumentar neste ano pouco mais de 4%, menos da metade dos
9,6% registrados em 2024, quando atingiram R$ 266,8 bilhões. Eles poderão
chegar perto de R$ 278 bilhões.
Um dos setores mais dinâmicos da
infraestrutura e o que lidera em investimentos, com mais de R$ 100 bilhões
aplicados anualmente desde 2022, a energia elétrica deve tirar o pé do
acelerador. No ano passado, investiu R$ 112,8 bilhões e deve ficar pouco acima
neste ano, em R$ 113,2 bilhões. O setor vem passando por elevado estresse. As
fontes de energia renovável eólica e solar, que se desenvolveram para enfrentar
o problema da redução da geração de energia hidroelétrica em momentos de
escassez hídrica, inclusive por meio do estímulo à proliferação de painéis
fotovoltaicos nos tetos das casas, acabou causando o paradoxo do excesso de
energia durante o dia e risco de apagão à noite, que pode levar ao acionamento
das sempre mais caras térmicas (Valor,
22/9).
O descompasso já quase provocou blecautes
nacionais em abril e em agosto de 2025. Para evitar o risco, o Operador
Nacional do Sistema (ONS) obriga o desligamento temporário de parques solares e
eólicos — o chamado “curtailment” —, causando perdas financeiras às usinas.
Mais que um problema técnico de controle da operação, serão necessárias
mudanças de política pública e de incentivos econômicos. Enquanto isso não
ocorre, os investimentos são desestimulados.
A área de transportes, que fica em segundo
lugar, deve apresentar maior dinamismo, com crescimento de 6% nos investimentos
em infraestrutura, de R$ 84,6 bilhões para R$ 90 bilhões, metade dos quais em
rodovias. Um dos destaques na área foi o recentemente leiloado Túnel
Santos-Guarujá, o primeiro imerso da América Latina, cuja construção ficará a
cargo da construtora portuguesa Mota-Engil, que tem a chinesa CCCC como
acionista. O empreendimento exigirá investimentos de R$ 6,8 bilhões, divididos
entre o governo federal e o estadual.
Em terceiro lugar vem o setor de saneamento,
que deve investir R$ 46 bilhões neste ano, 12% acima dos R$ 41,1 bilhões de
2024, segundo a Inter.B, percentual superior aos registrados pelos demais
segmentos. Influenciado pelo Novo Marco Legal do Saneamento Básico, o setor
dobrou o volume de investimentos nos últimos dois anos. Apesar disso, ainda não
atingiu o patamar necessário para a universalização do serviço previsto no
marco.
Os investimentos em infraestrutura vêm sendo
garantidos pelo setor privado, que contribuiu com 2,4 vezes mais do que o
volume de recursos canalizados pela área pública, relação que sobe neste ano
para 2,6 vezes. Um bom exemplo das limitações da atuação do setor público na
infraestrutura é o PAC.
Lançado há dois anos com a promessa de
investir R$ 1,3 trilhão até 2026 em infraestrutura em sentido amplo, incluindo
de estradas a escolas e hospitais, o novo PAC é a principal vitrine do governo
Lula nessa área. Mas nem todos os recursos comprometidos foram liberados, o que
indica volume significativo de obras que podem atrasar. Entre 2023 e 2025, o
governo de Lula reservou R$ 111 bilhões para o programa, dos quais pagou R$
94,3 bilhões. Mas R$ 16,7 bilhões restantes não foram desembolsados por não
haver comprovação de que o empreendimento foi concluído.
Esses projetos empacados são equipamentos
públicos importantes para as pessoas, como hospitais, policlínicas, postos de
saúde, escolas e creches, a maioria deles sugerida por prefeitos e governadores
no chamado PAC Seleções. Por isso, preocupam o governo do ponto de vista
político.
Além disso, o Tribunal de Contas da União
(TCU) apontou problemas críticos de falta de transparência na seleção de
projetos do PAC, na atuação da Casa Civil, no acompanhamento das obras e de clareza
das informações divulgadas no site do Novo PAC, e pediu que as falhas sejam
sanadas. Apesar de o PAC ser um programa que existiu em outros governos do PT,
as informações exigidas pelo TCU são básicas. O TCU pede, de projetos
financiados por investimentos privados, os valores totais, cronogramas,
percentuais de execução, etapas concluídas e previsão de término,
esclarecimento das fontes de financiamento, indicadores de desempenho para se
avaliar o progresso das obras e cumprimento de prazos e do orçamento.
A desaceleração do investimento ocorre quando se precisaria de mais avanços. Segundo Claudio Frischtak, sócio da Inter.B, para atender as mudanças climáticas, que vão pôr em xeque as redes de saneamento e de energia, por exemplo, e a modernização das instalações existentes, o investimento necessário é de 4,65% do PIB durante as próximas duas décadas, o dobro dos 2,19% previstos para este ano.
Novo Código Civil demole a ordem jurídica
Por O Estado de S. Paulo
Travestindo populismo jurídico de
modernização, proposta amplia o arbítrio judicial, incentiva a judicialização e
mina a segurança jurídica. Catastrófica e irremediável, precisa ser arquivada
O Senado instalou em setembro a comissão
temporária encarregada de analisar o Projeto de Lei (PL) n.º 4/2025, que
pretende reformar o Código Civil de 2002. O movimento ocorre em meio a uma onda
de críticas sem precedentes. Não é para menos: longe de modernizar as bases
jurídicas do País, ele ameaça dilapidá-las.
Sob o pretexto de atualização, a proposta,
gestada por uma comissão presidida pelo ministro do Superior Tribunal de
Justiça (STJ) Luis Felipe Salomão, altera quase 900 artigos, acrescenta 300,
redesenha a estrutura e a linguagem do código e, na prática, fabrica um novo
ordenamento civil – tudo produzido em apenas oito meses, sem debate público
minimamente proporcional à magnitude da empreitada. Trata-se de uma artimanha:
um novo Código Civil travestido de mera “revisão técnica”. O açodamento e a
falta de pactuação social revelam não apenas imprudência, mas ilegitimidade.
Os riscos não são abstratos. O texto
multiplica conceitos vagos que funcionam como verdadeiros coringas judiciais –
“confiança”, “simetria”, “paridade”, “dignidade” –, franqueando ao Judiciário
poder discricionário para decidir conforme a interpretação do momento. Em lugar
de previsibilidade, cria-se um convite à judicialização. O resultado será a
fragmentação de entendimentos, decisões contraditórias e a degradação daquilo
que distingue um Estado de Direito de um regime arbitrário: regras claras,
universais e estáveis.
Na seara contratual, a reforma transforma em
letra morta a segurança dos negócios. O recurso indiscriminado à “função social”
da propriedade e dos contratos – cujas referências aumentaram em 450% – abre
margem para invalidar cláusulas a critério dos juízes, estimulando litígios
intermináveis. A responsabilidade civil, por sua vez, é dilatada de modo
caótico: deixa de se limitar ao dano ilícito para assumir funções punitivas,
pedagógicas e moralizantes. O dever de indenizar passa a ser um jogo de azar,
regido por máximas vagas e pelo gosto de quem julga.
Em carta aberta, a Federação Nacional dos
Institutos dos Advogados foi categórica: o projeto é irremediável e deveria ser
arquivado. Além de expor cidadãos e empresas à insegurança, fragiliza
liberdades fundamentais e cria obstáculos adicionais à atividade econômica. No
campo digital, por exemplo, propõe um marco regulatório sem paralelo em
democracias avançadas, com restrições a plataformas virtuais que podem gerar
retaliações internacionais e colocar o Brasil em rota de colisão com seus
principais parceiros comerciais.
Juristas, entidades e veículos de imprensa
convergem na denúncia de que o PL 4/2025 institucionaliza um populismo
jurídico: promete proteger os vulneráveis, mas mina a previsibilidade das
regras, encarece contratos e transfere ao juiz – e não ao legislador
democraticamente eleito – o poder de definir os rumos da sociedade. O projeto
mistura regras gerais de Direito Civil com proteção especial ao consumidor,
propõe experimentos sociais temerários no direito de família e ignora leis
recentes.
Mais grave, fragiliza o próprio Estado de
Direito. O que está em jogo não é apenas a técnica legislativa, mas o
equilíbrio institucional. Ao multiplicar conceitos indeterminados, o novo
código legitima o ativismo judicial e reforça a concentração de poder em
instâncias que já se mostram alarmantemente propensas ao arbítrio. A República
não pode se dar ao luxo de ser alicerçada sobre a areia.
O Brasil não precisa de aventuras
legislativas açodadas. O Código Civil, fruto de décadas de debates, permanece
sólido em seus fundamentos. Reformas focadas, calibradas e, sobretudo, legitimamente
consensuadas, são sempre possíveis; demolir o edifício inteiro, em nome de uma
pretensa modernização, é irresponsabilidade.
O Senado tem agora a oportunidade – e a
obrigação – de frear esta marcha da insensatez. Só há um caminho responsável:
arquivar o PL 4/2025 e abrir, no futuro, um debate sério, amplo e transparente
sobre ajustes que de fato se mostrem necessários. Qualquer outra solução será
capitulação diante do arbítrio e convite ao caos jurídico.
Golpistas não merecem perdão
Por O Estado de S. Paulo
Rever punições desproporcionais aos bagrinhos
do golpe é justo, mas anistiar os líderes da conspiração contra a República, ou
abrandar suas penas, seria trair a Constituição e premiar o crime
O Senado cumpriu sua obrigação de enterrar a
infame PEC da Bandidagem, tentativa sem-vergonha de conceder aos próprios
parlamentares o poder de decidir se poderiam ou não ser investigados por
suspeita de crimes. Agora, cabe à Câmara dos Deputados, se pretende reaver
algum resquício de decência, rejeitar de forma igualmente inequívoca o projeto
de lei que busca anistiar os golpistas condenados pelo Supremo Tribunal Federal
(STF), em especial o principal instigador e beneficiário da sedição, o
ex-presidente Jair Bolsonaro.
A anistia aos golpistas não é apenas um
disparate jurídico e político. É, sobretudo, um inaceitável retrocesso civilizatório.
A Constituição consagra o Estado Democrático de Direito desde o seu preâmbulo.
Os princípios basilares do regime das liberdades foram alçados à condição de
cláusulas pétreas. Logo, perdoar aqueles que atentaram desabridamente contra a
ordem constitucional democrática significa, na prática, demolir a própria
fundação estrutural que sustenta esta República.
É verdade que a Procuradoria-Geral da
República e o STF, talvez no afã de impor exemplaridade na coerção de condutas
inéditas na história recente do País, puniram desproporcionalmente muitos dos
idiotas úteis que serviram de massa de manobra no 8 de Janeiro. Casos como o da
cabeleireira condenada a 14 anos de prisão por pichar com batom a estátua da
Justiça em frente à sede do Supremo merecem revisão criteriosa. O sistema penal
não pode ser um instrumento de vingança nem tampouco pode operar em desalinho
com os atos que pretende coibir. Mas essa necessária correção de rumos não
pode, em hipótese alguma, se estender aos líderes de uma conspiração, sejam
civis ou militares, que tramaram e executaram uma tentativa de golpe de Estado.
À luz do direito comparado, a legislação
pátria já é bastante branda com crimes contra o Estado Democrático de Direito.
O Código Penal prevê penas de 4 a 8 anos de reclusão para abolição violenta do
Estado Democrático de Direito (art. 359-L) e de 4 a 12 anos para golpe de
Estado (359-M). No cotejo internacional, essas sanções são quase prêmios aos
golpistas. Alemanha, Argentina, Canadá, França e Reino Unido, por exemplo,
preveem prisão perpétua para quem tenta um golpe de Estado. A Espanha
estabelece 25 anos de cárcere. Nos Estados Unidos e no México, são até 20 anos
de cadeia para os insurgentes. Só a Itália, com pena máxima de cinco anos de
reclusão, é menos gravosa que o Brasil.
Ou seja, mesmo sem anistia, a punição aos
golpistas brasileiros já é leve. Reduzi-la ainda mais não só nos afastaria do
padrão civilizatório estabelecido por democracias mais maduras, como
transmitiria à sociedade uma mensagem para lá de infeliz: por aqui, tentar
subverter o resultado legítimo de uma eleição não seria crime tão grave. Ora,
se os golpistas tivessem tido sucesso em seu intento, decerto não haveria
qualquer complacência com os legalistas. É ocioso relembrar aqui o destino
reservado por regimes de exceção aos dissidentes e opositores.
O Brasil deu um passo histórico ao condenar,
pela primeira vez, um ex-presidente e altas autoridades civis e militares por
conspirarem contra a democracia. Esse precedente é um marco institucional que precisa
ser preservado, não enfraquecido, pelo Congresso. O Judiciário tem cumprido sua
parte ao impor aos golpistas a devida responsabilização. Cabe ao Legislativo
não apagar esse legado.
As manifestações no dia 21 passado foram
eloquentes. A sociedade bradou “não” à PEC da Bandidagem e também à anistia aos
golpistas. Ambas as iniciativas nasceram de um mesmo pacote de impunidade
gestado nos corredores do Congresso, em total divórcio com o melhor interesse
público. O governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas, afirmou que o grito
das ruas revelou a “desconexão” entre sociedade e Parlamento. É verdade. Mas
convém lembrar que seu partido, o Republicanos, votou maciçamente pela PEC da
Bandidagem. Ademais, Tarcísio encarna pessoalmente a defesa da anistia que as
ruas também repeliram.
Rever excessos cometidos contra os bagrinhos
da intentona é legítimo. Já abrandar ou perdoar as penas dos articuladores do
golpe é inconcebível. Seria um salvo-conduto para que, no futuro, velhos ou
novos conspiradores se assanhem.
Mais promessas para o Tietê
Por O Estado de S. Paulo
Enquanto rios como o Sena, na França, e o
Chicago, nos EUA, são revitalizados, o Rio Tietê segue poluído
No Dia do Rio Tietê, 22 de setembro, o
governo do Estado de São Paulo abriu consulta pública para uma Parceria
Público-Privada (PPP) de R$ 9,5 bilhões. A ideia é utilizar os recursos para
bancar um programa com duração prevista de 15 anos para a limpeza e a
revitalização do rio. Investimentos para um novo parque, o Salesópolis, e na
manutenção e no paisagismo nas margens do maior rio do Estado também foram
anunciados.
Para a secretária de Meio Ambiente,
Infraestrutura e Logística de São Paulo, Natália Resende, a nova PPP representa
um marco na recuperação do Rio Tietê. Ela também afirmou que, combinadas à
universalização do saneamento, as novas medidas permitirão que a população
volte a “interagir e a ter orgulho deste grande patrimônio de São Paulo que é o
Tietê” até 2029.
Não há dúvida de que um rio limpo é de grande
interesse dos paulistas. Revitalizados, o Tietê e o Pinheiros serão importantes
espaços de lazer e meios de transporte para os paulistas, além de uma potencial
fonte de recursos econômicos para a cidade, uma vez que toda uma gama de
serviços pode ser instalada ao longo dos dois rios.
Mas acreditar que tal realidade finalmente se
materialize em 2029, após décadas de promessas de diferentes governos – todas
olimpicamente descumpridas –, é um exercício de fé.
Ao lançar o programa de despoluição do Tietê
em 1992, o então governador Luiz Antonio Fleury Filho garantiu que beberia água
do rio até o fim do seu mandato. Seus sucessores, Mário Covas e Geraldo
Alckmin, também prometeram um rio limpo. Mais recentemente, o atual governador,
Tarcísio de Freitas, afirmou que o rio estaria despoluído até 2026. Agora, sua
secretária ambiental mira em 2029.
Como bem sabe qualquer pessoa que tenha
passado pelas marginais que cortam a capital paulista, o rio está longe de
estar limpo, apesar dos vultosos investimentos empregados para tal fim. É
verdade que a situação é bem melhor que a de décadas atrás, quando, além de
exalar odor nauseante, o rio transbordava para as marginais com religiosa
frequência na época das grandes chuvas.
No entanto, consumir a água do Tietê, pescar
em suas águas e utilizá-lo como fonte de lazer e via de transporte continuam
sendo apenas vãs ilusões para a população.
Já em outros lugares do mundo, rios que de
tão poluídos chegavam até mesmo a pegar fogo, como o Chicago, nos Estados
Unidos, foram plenamente revitalizados. Nas margens daquele rio há toda uma
infraestrutura de lazer, que vai de restaurantes a passeio de barco.
Recentemente, centenas de pessoas mergulharam nas águas do Chicago, algo
inédito em quase cem anos. Em Paris, um Sena despoluído para a Olimpíada tem
recebido cada vez mais nadadores, incluindo turistas.
São Paulo pode replicar as experiências de Chicago e de Paris. Mas, para isso, será preciso coordenação efetiva com os vários municípios cortados pelo Tietê. Sem isso, até mesmo atrair interessados para a PPP de limpeza do rio torna-se difícil, pois o investidor pode ficar associado à imagem de um rio que consome recursos, mas não se recupera.
A missão desafiadora de Edson Fachin no STF
Por O Povo (CE)
O comando do Supremo Tribunal Federal (STF)
muda de mãos e, a partir de agora, será responsabilidade do ministro Luiz Edson
Fachin liderar a Corte mais alta do nosso Judiciário. A tarefa diante dele é
desafiadora pelo momento inédito de pressões e ataques, internos e externos,
contra os nossos juízes.
É possível que seu perfil discreto e
cuidadoso ajude no encaminhamento de saída para uma crise institucional que já
parece ter demorado além do que parecia suportável. Infelizmente, parte dos
problemas que temos enfrentado são atribuíveis a comportamentos dos próprios
ministros. A parte menor, destaque-se.
O momento pede discrição, atitudes firmes,
claro, mas que estejam circunscritas à tarefa institucional que espera alguém
que integre a Corte mais alta da estrutura nacional de justiça. Qualquer
movimento que vá além disso servirá pouco ao esforço de restauração da
normalidade do ambiente político.
O STF cumpre uma tarefa importante no recorte
histórico recente do nosso País e, inclusive, devemos a ele, como poder de
Estado, a ação principal de resposta a uma tentativa de golpe contra a
democracia que está configurado, não resta dúvida de que aconteceu. É corajosa
e necessária a decisão de encarar as dificuldades e levar adiante uma ação que
apura responsabilidades por eventos criminosos acontecidos entre os anos de
2021 e 2023.
Dos 11 ministros do Supremo, oito estão com
seus vistos de entrada nos Estados Unidos suspensos, como um dos exemplos do
cenário que Fachin, um dos punidos pelo governo de Donald Trump, terá pela
frente. O ambiente ruim é bastante alimentado, no âmbito interno, por setores
da política identificados com o ex-presidente Jair Bolsonaro, que já teve
condenação confirmada em julgamento na 1ª turma por participar (até liderar) da
tentativa de golpe.
Na nova fase, com Edson Fachin substituindo a
Luis Roberto Barroso, espera-se, como gesto inicial, manifestações claras de
apoio à postura firme de até agora quanto à tentativa de ruptura institucional,
inclusive com a comprovação de planejamento e execução de ações violentas. Ao
mesmo tempo, é importante que se faça uma discussão acerca da necessidade de
autopreservação dos ministros, como magistrados que são, por exemplo, evitando
comentários públicos acerca de temas sobre os quais podem ser chamados a
decidir.
Precisamos de um Supremo Tribunal forte, independente e altivo. Da mesma forma que nunca o tivemos tão exposto, inclusive submetido a injustificáveis ações punitivas de um governo estrangeiro que busca, através disso, interferir em assuntos fora do seu alcance com o interesse de atender o desejo de um aliado político, Edson Fachin pode ser o nome certo, considerado o seu perfil, para o delicado momento do Brasil.
Contra o feminicídio, não basta pena
histórica
Por Correio Braziliense
Sozinho, o endurecimento das leis não é capaz de salvar vidas e famílias. A punição é tão importante quanto a prevenção e o suporte às vítimas
Na noite de 20 de agosto de 2024, em um bar no Gama, Juliana Soares foi ameaçada de morte pelo ex-namorado, na frente de amigos e de clientes, enquanto comemorava seu aniversário de 34 anos. Inconformado por não ter sido convidado, Wallison Felipe de Oliveira esperou terminar a festa para cumprir a promessa. Atropelou Juliana por três vezes enquanto ela voltava a pé para casa ao lado da mãe e da filha de 5 anos. Avó e neta foram socorridas e sobreviveram. Juliana morreu no local, vítima de múltiplas fraturas graves e de um entendimento covarde de que mulheres não podem se recusar a corresponder às expectativas dos homens.
O crime teve como punição a maior pena por feminicídio da história do país: 67 anos, seis meses e 14 dias de prisão em regime inicialmente fechado. Isso em razão da entrada em vigor da Lei nº 14.994/2024 – que tipificou o feminicídio como crime autônomo e elevou os parâmetros para a pena privativa de liberdade, que varia entre 20 e 40 anos de reclusão (antes era de 12 a 30) –, além da responsabilização pelas tentativas de homicídio contra a filha e a mãe de Juliana. Trata-se de uma condenação a ser ressaltada pelo seu valor simbólico e jurídico, mas não suficiente para frear a epidemia de execução de mulheres em curso acelerado no Brasil.
No mesmo ano do assassinato de Juliana, registrou-se, no país, um média de quatro mortes de mulheres por dia em contextos de violência doméstica, familiar ou por menosprezo e discriminação. É o maior número de feminicídios da série histórica (desde 2020), segundo o Ministério da Justiça e da Segurança Pública. Casos de estupro também chegaram ao maior patamar: 83.114 ocorrências – o equivalente a 227 vítimas a cada 24 horas, sendo 86% delas do sexo feminino. Não se pode desconsiderar as tentativas de assassinato de mulheres no mesmo período – 3.870, média de 10 por dia –, além das outras formas de violência, como a psicológica e a virtual.
Considerando que marcos legais de proteção à
mulher existem há décadas – a Lei do Feminicídio completou 10 anos em março e a
Lei Maria da Penha, 19 anos em agosto –, fica evidente que, sozinho, o
endurecimento das leis não é capaz de salvar vidas e famílias. A punição,
insistem especialistas, é tão importante quanto a prevenção e o suporte às
vítimas. “São necessários a identificação precoce de situações de risco,
medidas protetivas eficazes, acolhimento seguro e apoio psicológico, jurídico e
econômico às vítimas, além de uma mudança cultural com educação para a
igualdade de gênero e combate à misoginia”, elenca a advogada especializada em
direito das mulheres Jaqueline Costa.
A lista é diversa, como precisa ser o combate integral, e efetivo, à violência de gênero. Há uma sensação perigosa de que a epidemia de feminicídios é ignorada no país. Expressa, inclusive, em estudos. Divulgada no ano passado, a pesquisa Medo, ameaça e risco: percepções e vivências das mulheres sobre violência doméstica e feminicídio, realizada pelo Instituto Patrícia Galvão e Consulting do Brasil, com apoio do Ministério das Mulheres, mostra que 66% delas acham que nada acontece com os homens que cometem violência doméstica e que 95% deles, mesmo sabendo que se trata de crime, têm convicção de que não serão punidos. E mais: 90% concordam que evitar o assassinato é mais importante do que punir o feminicida.
Mulheres estão acuadas em um sistema estrutural que desqualifica suas histórias e sem confiar nas instituições que têm a obrigação constitucional de protegê-las. A epidemia de feminicídio que toma conta do Brasil passa desenfreadamente por cima da inviolabilidade do direito à vida e à segurança. O país precisa ouvir e respeitar quem está morrendo pela ineficiência coletiva de viver sob a égide da igualdade.
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