sexta-feira, 24 de outubro de 2025

O que a mídia pensa | Editoriais / Opiniões

Embora deixe a desejar, novo pacote antifacção é avanço

Por O Globo

Texto endurece legislação, mas não contempla agência antimáfia e restrição à progressão de regime

Num cenário em que organizações criminosas dominam vastas extensões do território nacional, expandem-se pela economia formal e infiltram-se nas instituições, faz-se essencial o conjunto de propostas legislativas apresentado pelo ministro da Justiça e Segurança Pública, Ricardo Lewandowski. O objetivo é apertar o cerco ao crime organizado, endurecendo penas e facilitando a investigação. Apesar da iniciativa meritória, porém, o pacote apresentado por Lewandowski ficou aquém do desejável e do necessário.

Levantamento do GLOBO mostrou que, nas 27 unidades da Federação, atuam pelo menos 64 facções criminosas, algumas com abrangência nacional. A proposta é englobar tais grupos e também milícias num novo tipo penal, a “organização criminosa qualificada”. A pena para quem tentar controlar território com “violência e ameaça” passa a ser de oito a 15 anos de prisão. No caso de homicídios atribuídos às quadrilhas, pode chegar a 30 anos.

Atualizar a legislação é decisão acertada. São bem-vindas também as iniciativas para asfixiar as finanças das organizações criminosas. O projeto prevê que a Justiça poderá decretar apreensão de bens e valores no curso do inquérito, sem esperar o trânsito em julgado da sentença, desde que haja suspeita de que são produto do crime. Também facilita ações contra empresas usadas em lavagem de dinheiro e permite que forças de segurança infiltrem agentes para fins de investigação. São ações essenciais, dada a diversificação das atividades do crime, de postos de gasolina e empresas de ônibus a fintechs ou até lojas de brinquedos.

Não menos relevante é a criação de um banco de dados nacional, com objetivo de reunir informações sobre os integrantes das facções. Embora os bandidos transitem de um estado a outro, as informações costumam ser compartimentadas, dificultando as investigações. Também é positiva a previsão de monitoramento, com autorização judicial, de conversas e reuniões de presos ligados a facções. Não é segredo que bandidos comandam atividades criminosas de dentro dos presídios, mesmo os de segurança máxima.

Apesar dos avanços indiscutíveis, pontos importantes ficaram de fora. A principal ideia descartada foi a agência nacional antimáfia, defendida por integrantes do Ministério Público e próceres do combate às facções. Um organismo dedicado melhoraria a integração entre as forças de segurança, sem se sobrepor a elas. Mas havia divergências no governo sobre esse ponto, e a Polícia Federal foi contra. Temia-se que a estrutura gerasse gastos e esvaziasse o poder das polícias. Também não foram contemplados crimes eleitorais envolvendo organizações criminosas, como compra de votos e caixa dois, bem como restrições à progressão de regime para integrantes de facções. É verdade que esses temas são objeto de outros projetos, mas mereciam atenção. Perdeu-se a oportunidade de apresentar um projeto de maior eficácia.

De modo geral, embora deixe a desejar, o projeto traz avanços. É preciso enviá-lo logo ao Congresso, onde não deverá encontrar grande resistência. Com a PEC da Segurança, que já tramita no Legislativo, o Brasil poderá dispor de uma legislação mais sólida para enfrentar o crime organizado. Não se espera que baste para resolver o problema, mas certamente ajudará. A segurança é hoje a principal preocupação dos brasileiros. Não há tempo a perder.

Parlamentares não devem se meter a legislar sobre bagagens em avião

Por O Globo

Brasil dispõe de agência reguladora e órgãos de defesa da concorrência para zelar pelos direitos do consumidor

Não fazem sentido as iniciativas do Senado e da Câmara para legislar se companhias aéreas devem cobrar por bagagens de mão ou despachadas. Num país onde vigora o livre mercado, não é papel do Legislativo intervir na regulação de práticas comerciais que não causam dano à população. O Brasil dispõe de uma agência reguladora específica para a aviação — a Agência Nacional de Aviação Civil (Anac) —, cuja missão é zelar pela segurança e pela qualidade dos serviços prestados, e de organismos dedicados à defesa da concorrência e dos direitos dos consumidores. O Congresso tem muito mais o que fazer em benefício dos brasileiros para perder tempo e energia com esse assunto.

Apesar disso, deputados e senadores se apressam para aprovar algum projeto que lhes permita proclamar terem instaurado a “bagagem gratuita”. A Câmara determinou regime de urgência para a votação de um projeto que veta cobrança pela bagagem de mão levada a bordo. O relator, deputado Neto Carletto (Avante-BA), diz avaliar se impõe também a “gratuidade” a bagagens despachadas, ideia defendida pelo presidente da Câmara, Hugo Motta (Republicanos-PB). Para não ficar atrás, a Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) do Senado aprovou um projeto que garante “gratuidade” da bagagem de mão, determinando no texto, relatado pelo senador Randolfe Rodrigues (PT-AP), limites de peso (10kg) e até altura, largura e profundidade das malas (25cm x 35cm x 55cm). Aprovado em caráter terminativo, o projeto seguiu para a Câmara sem passar pelo plenário.

Os parlamentares esquecem o conceito mais básico de economia: nada é de graça. A melhor forma de equilibrar oferta e demanda é o preço explícito. Do contrário, ele fica implícito no custo da passagem, dividido por todos os passageiros, mesmo os que não levam nada. A ilusão de gratuidade funciona como incentivo para levarem mais malas. Sem falar nas dificuldades óbvias de gravar o tamanho de malas na lei. Quem garante que bagagens e bagageiros terão sempre essas dimensões?

É ilustrativo o que ocorreu a partir de 2017, quando a Anac autorizou a cobrança por bagagens despachadas até 23kg. No primeiro ano, a queda de preço das passagens atribuída à medida foi de R$ 14,85, ante preço médio de R$ 348,24, segundo a dissertação de mestrado do economista Bruno Resende na FGV-RJ. Outra pesquisa, publicada em 2021 no International Economic Journal pelos economistas Fernando Barros Jr., Rafael Castilho e Daniel Galvêas, estimou por meio de um modelo estatístico em 6,7% a redução resultante da cobrança pelas bagagens.

Desafiando os fatos, o Congresso aprovou em 2022 um projeto reinstaurando a “gratuidade” da bagagem despachada, felizmente vetado pelo então presidente, Jair Bolsonaro. Agora, diante da crise de imagem do Parlamento, o ímpeto demagógico ressurgiu. É curioso notar como parlamentares em geral sensíveis a argumentos científicos quando se trata de vacinas ou pesquisas médicas desprezam a ciência econômica. Não é tão difícil entender: não existe bagagem grátis.

Solução para os Correios é privatizar ou fechar

Por Folha de S. Paulo

Empréstimo de R$ 20 bilhões garantido pelo Tesouro é fachada para torrar dinheiro do contribuinte

Um governante responsável já teria vendido ou encerrado atividades da empresa para estancar sangria que só faz alimentar a dívida pública

O novo esforço para salvar os Correios da bancarrota —que é para onde a estatal se encaminha há muitos anos, com maior velocidade neste mandato de Luiz Inácio Lula da Silva (PT)— constará da extensa lista dos grandes atentados perpetrados pelo governo federal contra os pagadores de impostos.

A administração petista tenta iludir o público com a lorota de que a operação de salvamento ocorreria por meio de um empréstimo de R$ 20 bilhões, de que participariam bancos estatais e até privados. Ninguém no mercado emprestaria tanto dinheiro a uma empresa que jogou no ralo do prejuízo R$ 4,4 bilhões apenas no primeiro semestre de 2025.

Como o Tesouro Nacional será o fiador do crédito —vai pagar a conta em caso de calote— trata-se, na verdade, de mais uma doação bilionária de recursos dos contribuintes a esse saco sem fundos do estatismo brasileiro.

Os Correios, com custos inflados pelo aparelhamento partidário e processos arcaicos, não têm condições de competir com as empresas privadas de logística no Brasil. O monopólio da estatal no transporte de encomendas, que obrigava os cidadãos a pagarem caro por um serviço ruim, foi quebrado em 2009 em decisão do Supremo Tribunal Federal (STF).

O privilégio ficou mantido apenas para cartas, cartões postais e malas diretas, demandas que o avanço da comunicação imediata digital se encarregou de sufocar.

Uma lei de 2023 e um decreto de Lula do ano seguinte tentaram fazer voltar o passado ao estabelecerem que os Correios detêm a preferência em licitações para prestar serviços logísticos a órgãos da administração federal.

A tentativa de golpear a livre concorrência foi questionada na Justiça por uma associação de agentes privados, mas a ação foi extinta por tecnicalidade. De todo modo, o privilégio não salvou nem salvará a finança dos Correios, que em dois anos e meio de gestão petista acumulam R$ 7,6 bilhões de prejuízo —e contando.

Diante desse quadro terminal, a mera conjectura de injetar outras dezenas de bilhões do erário na estatal deveria provocar repúdio de cidadãos e órgãos de controle. Em relatório desta quinta-feira (23), a Instituição Fiscal Independente, do Senado, alertou sobre as consequências deletérias para o equilíbrio orçamentário do galope dos déficits das estatais, com os Correios na mira.

A melhor saída para a estatal talvez tenha deixado de ser a privatização. Tudo o que os Correios fazem, com a cabeça no século 20, já é realizado pelas empresas privadas com maior eficiência e menor custo. Nada além do interesse escuso de políticos justifica a continuidade dessa situação.

Governantes responsáveis já teriam encaminhado uma solução definitiva para estancar a sangria que só faz elevar a já monstruosa dívida federal de R$ 8 trilhões. Essa solução implica privatizar a estatal, se isso ainda for possível, ou fechar as suas portas a bem do interesse público de interromper esse assalto ao contribuinte.

Trump muda de novo política sobre a Guerra da Ucrânia

Por Folha de S. Paulo

Sanções sobre petroleiras da Rússia poderão ter impacto, mas país de Putin já driblou mecanismos assim

Saiu de cena a política americana de apoio irrestrito a Kiev de Joe Biden e entrou em campo uma amálgama de voluntarismo e ingenuidade

Ao longo de sua campanha para retornar à Casa Branca, Donald Trump dizia que iria acabar com a Guerra da Ucrânia em 24 horas. A realidade se interpôs, e logo o republicano abandonou a meta fantasiosa. Ao mesmo tempo, deu um giro de 180 graus na abordagem americana do conflito.

Saiu de cena a política de apoio irrestrito a Kiev de seu antecessor, Joe Biden, e entrou em campo uma amálgama de voluntarismo e ingenuidade. Trump aproximou-se de Vladimir Putin e chegou a estender o tapete vermelho ao russo no Alasca, em agosto, depois de muitos vaivéns.

Dizendo-se frustrado, Trump insinuou enviar mísseis de cruzeiro Tomahawk, uma arma que daria dor de cabeça a Moscou, e chamou Volodimir Zelenski para reunião na sexta passada (17).

Na véspera do encontro, o russo atravessou o caminho em um telefonema que não só glosou o fornecimento dos mísseis como pariu uma nova cúpula com o americano. O ucraniano voltou para casa de mãos abanando.

Entretanto a aparente discordância entre as diplomacias russa e americana acerca de garantir que o encontro previsto para Budapeste produzisse ao menos uma trégua levou Trump a trocar norte por sul novamente.

Após cancelar a nova reunião, na quarta (22) ele anunciou as primeiras sanções de seu novo mandato contra a Rússia. Mirou-se a jugular do financiamento à guerra ao punir as duas maiores petroleiras do país de Putin. Em 2024, 30% do Orçamento federal russo veio do setor energético.

O foco são as sanções indiretas contra intermediários que negociam o petróleo russo, notadamente para China e Índia, os maiores compradores —Nova Déli já havia sido punida com tarifas extras. Aliados serão afetados, assim como talvez o Brasil, dependente do óleo diesel da Rússia.

O alvo principal, fora do escopo da guerra, é Pequim, a real rival dos EUA ora envolvida em uma disputa comercial encarniçada com Washington. Já o secundário é a popularidade de Trump, que segundo agregadores de pesquisa amarga quase 60% de rejeição entre os americanos.

Embora tenha feito troça de mau gosto com um vídeo de inteligência artificial, o republicano sentiu o golpe dos grandes protestos do fim de semana passado contra seu governo, que levaram estimados 7 milhões às ruas, 100 mil só na sua Nova York.

Para um líder que vive da imagem, nada pior que parecer fraco ante um adversário que até aqui o levou na conversa. É o caso de esperar para ver se a nova orientação seguirá em pé.

Fracasso em metas cobra ações decisivas na COP30

Por Valor Econômico

Às vésperas do evento em Belém, só 62 países entre 195 apresentaram suas novas metas de redução das emissões

A COP30, em Belém, se verá diante do desafio de acelerar as ações em todos os níveis para conter o aquecimento global, diante de um agravamento das condições climáticas adversas à vida na Terra. O limiar mais seguro, o de não deixar que a temperatura do planeta suba mais de 1,5º C em relação ao período pré-industrial, está sendo ultrapassado, enquanto todas as iniciativas balizadas pelo Acordo de Paris se revelam, ano após ano, muito aquém das reais necessidades. Por isso o secretário-geral da ONU, António Guterres, advertiu: “Ultrapassar o limite agora é inevitável”.

Não só as condições climáticas estão piorando. Elas são agravadas pela atmosfera política poluída pelos avanços dos negacionistas das mudanças ambientais, cuja vanguarda hoje é o país mais rico do mundo e o segundo maior emissor de gases estufa, os Estados Unidos, sob Donald Trump, e pelo desmantelamento do único quadro que poderia dar esperanças de um esforço bem-sucedido para evitar catástrofes climáticas — o multilateralismo.

Em 2024, a temperatura do planeta ficou pela primeira vez 1,6º C acima do período pré-industrial, segundo o Instituto Copérnico. Embora ela tenha de se repetir por duas décadas para consolidar novo patamar, o instituto aponta que há 70% de chances de a atual década enfileirar 5 anos acima dessa meta ideal. A perspectiva pessimista é, em primeiro lugar, decorrência inevitável da relutância dos principais responsáveis pelas emissões de CO2 em reduzi-las. O acirramento das disputas geopolíticas agravou a situação.

Os EUA negam o problema e têm agido nos foros internacionais para boicotar acordos, como o de redução de carbono do transporte marítimo, no exemplo mais recente, além de desmontar todas as estruturas criadas no país para proteger o ambiente. A China, o principal emissor mundial, apresentou metas frouxas, de redução de 7% a 10% em relação a seu pico, consideradas decepcionantes, embora o país costume ultrapassá-las. Os exemplos americano e chinês foram uma ducha de água fria para os demais países.

A União Europeia, vanguarda das ações ambientais, não apresentou suas novas metas até agora, mesmo depois de o prazo ter sido adiado até setembro. O bloco está a caminho de realizar uma transição “pragmática”, o que significa afrouxar em toda linha a legislação verde com a qual pretendia, inclusive, estabelecer parâmetros ambientais para os demais países comerciarem com a Europa. Ela pretende flexibilizar o sistema de preços do carbono para casas e carros, e isentar os pequenos produtores, por um ano, da lei do desmatamento, por exemplo (“FT”, 21-10). A Alemanha, o país mais avançado em ações verdes do bloco, hoje faz o que pode para salvar os carros com motores a combustão e quer, ao lado da França, extinguir regras que obrigam as empresas a averiguarem a existência de abusos ambientais e sociais de seus fornecedores.

O resultado geral do recuo das ambições ecológicas é que, às vésperas da COP30, só 62 países entre 195 apresentaram suas novas metas de redução das emissões. Ondas de calor mais fortes, incêndios florestais mais amplos e devastadores, aumento mais rápido que o previsto da temperatura dos oceanos, com redução de sua capacidade de absorver carbono, derretimento acelerado das calotas polares, desmatamento vasto, com perda da biodiversidade, são as consequências dessa leniência. Um levantamento sistemático de 45 métricas para avaliar o estágio de cumprimento das metas do Acordo de Paris, o Estado da Ação Climática 2025, realizado pelo Systems Change Lab, esforço conjunto de ONGs e fundações, apresentou resultados melancólicos.

Do total, 29 metas se revelaram muito “fora da rota”, entre elas, as de deter o desmatamento, reduzir as ameaças à biodiversidade, diminuir o uso do carvão como fonte de energia, a principal causa de emissões no setor, e o financiamento às ações contra o aquecimento global. Outras 5 metas simplesmente estavam na direção errada. A principal: o financiamento aos combustíveis fósseis cresceu US$ 75 bilhões por ano desde 2014. O único indicador que estava no caminho “certo”, a venda de veículos elétricos, arrefeceu na Europa e EUA e é agora considerado fora de rota. “Não estamos apenas ficando para trás, como também fracassando nos pontos mais críticos”, disse Sophie Boehm, pesquisadora sênior do World Resources Institute (WRI) e coautora do relatório.

A COP30, diante de condições tão difíceis, não fará milagres, como as outras não fizeram, apesar da reconhecida competência da coordenação brasileira. A ausência de metas mandatórias e a exigência de consenso amplo entre 195 nações para agir se mostraram empecilhos até agora intransponíveis a iniciativas conjuntas resolutas e tempestivas. O financiamento climático por parte dos países desenvolvidos continua sendo uma barreira intransponível, à qual se soma a firme relutância em um acordo para reduzir no tempo o uso de combustíveis fósseis. A Presidência brasileira terá sido bem-sucedida se conseguir avanços claros nas duas questões.

Para que serve a ONU?

Por O Estado de S. Paulo

Aos 80 anos, a ONU deveria retomar suas prioridades originais, sintetizadas por seu segundo secretário-geral, Dag Hammarskjöld: ‘Não levar a humanidade ao paraíso, mas salvá-la do inferno’

O mundo mudou demais para caber na Carta da ONU. Criada no rescaldo da 2.ª Guerra e sob a promessa de uma paz regulada por leis e instituições, a organização chega aos 80 anos com a autoridade moral corroída e a utilidade prática em dúvida. Sua história é a de uma ideia nobre que resistiu a todos os desastres – mas já não inspira confiança de que possa evitá-los no futuro.

A Assembleia-Geral virou um teatro de retórica, onde ditadores discursam sobre direitos humanos e democracias se calam para não constranger parceiros comerciais. O Conselho de Segurança, paralisado por vetos cruzados, segue preso ao mapa geopolítico de 1945, e não opera sobre o de 2025. A burocracia se multiplicou num festival de agências, comissões e secretariados – cada um com seu orçamento e “missão global” –, mas com pouca coordenação e quase nenhum resultado. Sob a retórica de “governança global”, instalou-se um ecossistema autossuficiente de carreiras, relatórios e conferências que perpetuam a instituição, não a reformam; multiplicam acrônimos – e fracassos. Em vários sentidos a ONU deixou de ser um árbitro e se tornou uma ONG de luxo, povoada por tecnocratas que acreditam poder mudar o mundo a partir de um parágrafo bem redigido.

Mais grave que a ineficiência é a seletividade moral. A ONU recrimina Israel com fervor ritual, mas fecha os olhos a atrocidades na China, em Cuba ou no Irã. O Conselho de Direitos Humanos é frequentado por ditaduras, e comissões “anticorrupção” abrigam regimes cleptocráticos. A organização fala em “diversidade” e “inclusão”, mas cede palanques a governos que perseguem minorias e criminalizam dissidentes. O discurso dos direitos humanos tornou-se instrumento de poder – manejado por quem os viola – e retórica de conveniência para diplomatas que confundem neutralidade com covardia.

Esse colapso ético reflete o colapso da própria ordem que a ONU pretendia sustentar. A era do multilateralismo dourado – quando as grandes potências ao menos fingiam cooperar – acabou. O sistema internacional entrou num estado hobbesiano de competição permanente. Os EUA já não querem e a Europa não consegue sustentar a ordem liberal. O vácuo é ocupado por autocracias assertivas, guerras regionais e democracias divididas. O mundo está menos governado por regras do que por ressentimentos – e a ONU, paralisada entre blocos rivais, é o espelho desse caos.

A tentação é descartá-la como relíquia. Seria um erro. Mesmo irrelevante em muitas frentes, a ONU continua indispensável em algumas, como ajuda humanitária, segurança alimentar, refugiados e cooperação científica. Ainda é o único fórum onde rivais podem falar antes de se enfrentar, e onde pequenas nações podem se projetar, ao menos simbolicamente, no concerto das potências. O problema não é o conceito de multilateralismo, mas sua inflação: querer que a ONU seja tudo é o que a impede de funcionar no que realmente importa.

Reformas amplas – como expandir o Conselho de Segurança, eliminar o veto ou redefinir mandatos – podem até ser desejáveis, mas são politicamente inviáveis. O caminho possível é o da modéstia: tornar a instituição mais transparente, enxuta, mensurável e responsabilizável. Estabelecer prioridades com base em evidências, não em slogans. Reavaliar os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável, cuja ambição utópica virou álibi para a ineficiência. Reduzir o palavrório e medir resultados: salvar menos causas, hierarquizando-as com eficácia. E, sobretudo, recuperar alguma credibilidade moral – começando por aplicar às ditaduras os mesmos padrões de julgamento que aplica às democracias.

A ONU octogenária é menos o símbolo de uma esperança do que o lembrete de um limite. As nações podem fracassar separadamente, mas só cooperando ainda têm chance de evitar o colapso coletivo. Reformar o possível, delegar o resto à simbologia – eis o máximo de idealismo que a conjuntura permite. Se quiser sobreviver à própria irrelevância, a ONU terá de provar que pode ser útil ao mundo que existe, não ao que sonhou em 1945 – e que ainda há espaço, mesmo nas ruínas do multilateralismo, para um mínimo de ordem diante do caos.

Os tartufos petistas

Por O Estado de S. Paulo

Convictos de que o PT não tem o voto dos evangélicos, Lula e os petistas fazem seguidos acenos a esses eleitores. Sem procurar entendê-los de verdade, trabalham apenas para cooptá-los

“Templo é dinheiro”, dizia uma máxima, décadas atrás, que ironizava a ascensão das igrejas neopentecostais, braço evangélico que emergiu a partir dos anos 1970 e 1980 e que, liderado pela Igreja Universal do Reino de Deus e outras, notabilizou-se pela força midiática de pastores, pela teologia da prosperidade e pela organização empresarial da fé. A variação da expressão atribuída a Benjamin Franklin – “tempo é dinheiro” – era fruto em grande medida do preconceito e do choque de um país de maioria católica, onde inclusive ser católico chegou a constar como precondição para votar, e que se viu estremecido com a vertiginosa ascensão e relevância dos evangélicos. Ainda que tenha contribuído para isso o vigarismo religioso que marcou a conduta de pastores desde então, não deixa de ser chocante que, depois de tantos anos de crescimento da população evangélica, o País ainda se veja às voltas com o preconceito, a desinformação e a instrumentalização da fé para fins políticos.

Atribuem-se ao segmento evangélico muitos dos males do fundamentalismo bolsonarista e do radicalismo de pastores que se misturam à política. A confusão, o preconceito e os estereótipos, afinal, se ampliaram depois que pastores influentes passaram a atuar em favor de Jair Bolsonaro, que teve alta taxa de sucesso eleitoral nas disputas de 2018 e 2022. Ao mesmo tempo, as últimas campanhas presidenciais e os institutos de pesquisa mostraram a distância que separa o presidente Luiz Inácio Lula da Silva e o PT dos evangélicos. Desde então, conselheiros do presidente e estrategistas petistas não hesitam em tentar uma, vamos chamar assim, aproximação, na expectativa de fazer Lula ser visto como crente. O “aceno” petista para a população evangélica parece estar em toda parte.

Recentemente, o presidente abriu sua agenda para receber bispos no Palácio do Planalto. A possível indicação do advogado-geral da União, Jorge Messias, para assumir uma cadeira no Supremo Tribunal Federal passou a incluir a condição de evangélico como atributo a ser considerado em seu favor. Com alguma frequência, Lula passou a exibir sua verve de pregador de quermesse, usando referências religiosas em discursos. Até a onipresente primeira-dama Janja da Silva tem se empenhado em participar de cultos em templos religiosos a fim de desfazer a imagem de inimiga dos evangélicos e se contrapor a Michelle Bolsonaro, a ex-primeira-dama declaradamente evangélica e conservadora. Lula e Janja também já se deixaram fotografar orando, alimentando suspeitas de que o esforço é apenas uma estratégia marqueteira. Sem contar a produção de cartilhas do PT para ensinar o comissariado e a militância a “como falar com os evangélicos”.

Essas e outras iniciativas são evidências de quem não parece ter intimidade com o segmento. São a certeza de que os evangélicos – hoje cada vez mais organizados e eleitoralmente fortes – representam uma massa ao mesmo tempo genérica e uniforme, composta por pastores e parlamentares populares, influentes e barulhentos, e uma população fiel, obediente e facilmente manipulável. Na falta de compreensão real, opta-se pela cooptação.

Esse tipo de instrumentalização da fé pela política é nociva à integridade da democracia. Primeiro, porque, quando líderes políticos se apropriam do discurso religioso para obter poder ou tentar manipular eleitores, a espiritualidade – que deveria servir à reflexão, à ética e à busca do bem comum – é reduzida a uma ferramenta de controle e persuasão. Segundo, porque, assim, o autoritarismo e o populismo se disfarçam de missão divina. Terceiro, porque a fusão entre religião e política mina o pluralismo e a liberdade de consciência, pilares fundamentais de uma sociedade democrática.

Por fim, ignora-se o elementar: ninguém é apenas evangélico. Todos têm aspirações e necessidades que passam tanto por suas crenças quanto por elementos reais do cotidiano. Como qualquer eleitor com distintos valores religiosos ou morais, preocupam-se com segurança, trabalho, renda, saúde, bem-estar e um futuro próspero. Simples assim. Quem olha para os evangélicos e vê apenas uma pilha de votos não está genuinamente interessado nem nos valores religiosos nem no exercício saudável do poder.

Um crime sem autores

Por O Estado de S. Paulo

Vítimas do incêndio no Ninho do Urubu foram traídas duas vezes: pelo Flamengo e pelo Estado

O incêndio no Ninho do Urubu – que, em 2019, matou dez jogadores das categorias de base do Flamengo com idades entre 14 e 16 anos – foi uma tragédia criminosa das mais atrozes na história recente do esporte brasileiro. Seis anos depois, em vez de trazer algum conforto, o desfecho da ação penal em primeira instância só aumentou a dor de suas famílias e espalhou pelo País um profundo sentimento de indignação.

Na terça-feira passada, o juiz Tiago Fernandes de Barros, da 36.ª Vara Criminal do Rio de Janeiro, absolveu os sete réus que ainda respondiam criminalmente pelo caso. Segundo o magistrado, não ficou demonstrado nos autos o nexo causal entre as condutas dos acusados e o incêndio – provocado, vale lembrar, por uma gambiarra na fiação elétrica do contêiner feito de alojamento para os garotos. Assim, o episódio que destroçou famílias e revelou ao Brasil o descaso do riquíssimo Flamengo com a segurança de seus atletas termina, no âmbito penal, sem culpados.

Não se questiona aqui o papel do juiz, que, diante de um processo que ele avaliou estar mal instruído, teve de decidir conforme o Direito e a ausência de provas robustas para a condenação. O que se pode afirmar, e com veemência, é que o sistema de Justiça, em sentido amplo, falhou miseravelmente com os parentes das vítimas e, em última análise, com toda a sociedade fluminense.

As famílias que entregaram seus filhos saudáveis ao Flamengo, confiando em um projeto esportivo que prometia oportunidades e ascensão social, foram traídas duas vezes. Primeiro, pelo clube, que demonstrou uma irresponsabilidade vergonhosa ao manter os adolescentes dormindo em estrutura improvisada e sabidamente insegura, vale dizer, sem aval do Corpo de Bombeiros. Depois, ao tratar a dor alheia como um problema contábil, litigando contra as próprias vítimas na tentativa de reduzir indenizações, o Flamengo revelou um desapreço moral incompatível com a sua história e com a grandeza de sua torcida.

A segunda traição veio do Estado. A incapacidade das autoridades – Polícia Civil, Ministério Público, Poder Judiciário – de conduzir um processo consistente resultou em impunidade. Ao fim e ao cabo, é disso que se trata. Mas, se confia no trabalho que fez, agora é dever do Ministério Público recorrer da sentença e demonstrar que o juiz errou ao não identificar a responsabilidade de cada um dos réus absolvidos.

Condenações sem base jurídica são indefensáveis no Estado de Direito, por mais rumoroso que seja o processo. Mas cabe, sim, denunciar a falha de um sistema de Justiça que, diante da escandalosa negligência do Flamengo, traiu a confiança da sociedade à qual serve. O resultado é esse vácuo a um só tempo legal e moral: dez jovens morreram queimados no centro de treinamento de um dos maiores clubes de futebol do mundo e não há responsáveis.

O incêndio no Ninho do Urubu não foi uma fatalidade. Foi o resultado previsível de uma cadeia de decisões temerárias e da complacência com a precariedade daquelas instalações. Se o Estado não for capaz de identificar e punir os responsáveis, consolidar-se-á a ideia de que tragédias criminosas simplesmente acontecem no Brasil – e ninguém tem nada a ver com isso.

Avanços e lacunas da saúde bucal

Por Correio Braziliense

Entre erros e acertos, a verdade é que o Brasil ainda não abandonou a alcunha de "país dos desdentados"

A saúde bucal no Brasil vive hoje um paradoxo: avanços técnicos e políticas emblemáticas convivem com desigualdades profundas, filas de espera e necessidades de tratamento ainda elevadas em inúmeros grupos sociais. Os resultados da Pesquisa Nacional de Saúde Bucal (SB Brasil 2023) mostram essa realidade em números: embora haja redução histórica de cáries e perda dentária em várias faixas etárias, persistem fragilidades regionais e grupos deficitários — por exemplo, 46,8% das crianças de cinco anos já têm experiência de cárie; e o edentulismo, que é a perda total ou parcial de dentes em idosos, caiu de 53,7% (2010) para 36,27% (2023), permanecendo, porém, numericamente expressivo.

O SUS e o programa Brasil Sorridente, do governo federal, representam conquistas centrais: desde 2004, o programa ampliou a cobertura de equipes odontológicas na atenção básica, ações de promoção, fluoretação, extrações, restaurações e reabilitação protética em muitos municípios, incorporando a saúde bucal à estratégia de atenção primária. Há, também, instrumentos de vigilância (o próprio SB Brasil) que permitem medir progresso e desigualdades. 

Ainda assim, a oferta efetiva varia muito conforme a região e pela capacidade de gestão local — muitas unidades básicas de saúde (UBS) não contam com equipe completa, há infraestrutura insuficiente para procedimentos de maior complexidade e listas de espera para próteses e tratamentos especializados. As regiões Norte e Nordeste do Brasil ainda concentram piores indicadores (maior necessidade de prótese, maior experiência de cárie em idades iniciais), evidenciando falhas em políticas de equidade. 

No campo legislativo, a pauta da odontologia está ativa. Entre propostas recentes destacam-se projetos que tocam na formação profissional (PL no Senado para instituir um exame nacional de proficiência em odontologia — PL 3000/2024), propostas sobre remuneração e reconhecimento da categoria (PL 1259/2023, que trata do salário profissional de odontólogos e técnicos) e iniciativas com foco em populações vulneráveis (PL 4440/2024, que propõe um programa de reconstrução dentária no SUS para mulheres vítimas de violência). 

Além disso, há projetos que buscam ampliar a presença da odontologia em contextos hospitalares (PLs que exigem cirurgião-dentista em UTI e internamentos prolongados). Essas proposições mostram duas coisas: o reconhecimento político da importância da saúde bucal e a disputa por recursos, regras e prioridades.

Entre erros e acertos, a verdade é que o Brasil ainda não abandonou a alcunha de "país dos desdentados", que o persegue há séculos. Amanhã (25/10), Dia Nacional da Saúde Bucal, é o momento certo para refletirmos sobre a saúde bucal pública brasileira. Se, por um lado, o país alcançou progressos mensuráveis e construiu instrumentos importantes (programas, pesquisas e diretrizes), os ganhos são desiguais e faltam arranjos estruturais para que a redução histórica de doenças se converta numa saúde bucal universal e equitativa. Sem financiamento previsível, integração entre níveis de atenção e políticas firmes de equidade, manteremos avanços estatísticos ao lado de persistentes lacunas que, para variar, continuam atingindo os mais vulneráveis.

O debate necessário sobre mobilidade urbana

Por O Povo (CE)

Temas que dizem respeito à vida nas cidades são de grande atualidade

Edição do O POVO desta quinta-feira trouxe ampla reportagem sobre as mudanças que ocorrem na área da mobilidade urbana. Diferentemente do que acontecia até algum tempo atrás, o que antes era tratado como assunto dos municípios passou a preocupar o governo federal. Além disso, o Supremo Tribunal Federal (STF) também tem em sua pauta de julgamentos um assunto que pode impactar o segmento, no que diz respeito aos entregadores e motoristas de aplicativos.

De fato, a questão do transporte urbano, tanto individual quanto coletivo, passa por mudanças que exigem medidas de adaptação à nova realidade.

Os temas mais importantes em debate são a viabilidade da tarifa zero para o transporte coletivo; o fim da obrigatoriedade de cursos em autoescolas para adquirir a Carteira Nacional de Habilitação (CNH); e uma ação no Judiciário — em andamento no STF — pedindo o reconhecimento de vínculo empregatício dos entregadores e motoristas de aplicativos com as plataformas digitais.

Esse é um assunto delicado, pois um setor expressivo desses trabalhadores prefere manter a "flexibilidade" para escolher os próprios horários e locais de trabalho, que seria perdido com registro formal, segundo o entendimento da categoria.

Uma boa solução seria encontrar um meio-termo, de modo que os entregadores e motoristas tivessem uma proteção mínima, inclusive previdenciária, com participação das plataformas de aplicativos. Porém, não ficariam vinculados formalmente às empresas. Seria como uma nova categoria de trabalhadores, entre a rigidez da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) e a total falta de regulamentação.

Sobre o fim da obrigatoriedade de aulas em autoescolas para a obtenção da CNH, o propósito é reduzir o custo do documento, que pode cair até 80% em relação ao valor atual. A medida, ainda em discussão, possibilitaria que mais pessoas tivessem acesso ao documento e poderia contribuir com o fim da ilegalidade de milhares de motoristas e motociclistas que conduzem seus veículos sem habilitação.

Também não será fácil a proposta de zerar a tarifa dos ônibus e outros modais de transporte coletivo, mas é uma proposta na qual o governo federal pretende investir. O presidente Lula determinou à equipe econômica um estudo para avaliar a viabilidade de estender a gratuidade a todo o País. O assunto, de amplo apelo popular, deverá estar presente na disputa presidencial do próximo ano.

Todos esses temas, que dizem respeito à vida nas cidades, são de grande atualidade. O importante é que se busquem soluções que contemplem os milhões de brasileiros que serão beneficiados, mas que não sobrecarregue o caixa do governo além de seus limites.

 


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