Valor Econômico
Somente fóruns federativos com representação
de todos os entes, num diálogo constante com a sociedade, poderão aumentar a
qualidade do gasto público
A peça orçamentária é o grande farol de uma
sociedade democrática. Para onde ela aponta, seja no presente ou para o futuro,
é o que define um projeto de país, baseado na vontade popular e na qualidade de
suas lideranças políticas e burocráticas. Partindo desse pressuposto, o
Orçamento federal brasileiro precisa urgentemente ser aperfeiçoado para
combater os principais males brasileiros e para gerar as condições que ancorem
um ciclo mais sustentável de desenvolvimento econômico.
A Constituição de 1988 produziu uma melhora
importante no desenho institucional das finanças públicas brasileiras, criando
modelos inovadores de planejamento e formas mais democrática de decidir e
controlar o fluxo do dinheiro público.
Outras reformas vieram depois, como a Lei de Responsabilidade Fiscal, e até o início dos anos 2010 estávamos num caminho incremental de reformas. Entretanto, o que veio a seguir foi uma trilha de vários retrocessos e de incapacidade de gerar aperfeiçoamentos contínuos. Chegou-se a um ponto em que é urgente ter uma reviravolta reformista, tornando esse tema uma pauta prioritária da eleição de 2026.
De forma sintética, é possível identificar
quatro agendas reformistas: a do emendismo congressual, que se tornou um
mecanismo perverso de distribuição dos recursos públicos; a do federalismo,
incentivando o uso de mecanismos cooperativos de atuação dos três entes da
Federação; a da gestão pública, referente às características de um modelo
orçamentário cuja lei maior é de mais de 40 anos atrás; e, por fim, a da
compatibilização da justiça social com um modelo fiscal sustentável e estável.
Os congressistas devem ter poder de fazer emendas
ao Orçamento. Isso foi garantido pela Constituição e muitos países,
especialmente os presidencialistas, contêm essa norma, que é uma forma de os
representantes responderem aos seus eleitores. Em nome disso, deputados e
senadores começaram a ficar insatisfeitos com o presidencialismo de coalizão
estabelecido após a CPI dos Anões do Orçamento, em 1993. Naquele momento,
descobriu-se um conjunto enorme de falcatruas e, graças à pressão social,
delimitou-se melhor, em termos de transparência e accountability, o que poderia
ser feito pelo Legislativo na peça orçamentária federal.
Essa mudança ocorrida na presidência de
Itamar Franco e o sucesso estabilizador do Plano Real levaram os dois governos
de Fernando Henrique e de Lula a ganharem um grande poder orçamentário,
especialmente com a forte capacidade de contingenciar recursos. Por vezes, em
nome do necessário equilíbrio das contas públicas, algumas emendas nem eram
executadas ou entravam na montanha-russa dos “restos a pagar”. Para ter
recursos públicos executados em suas bases eleitorais, os congressistas
precisavam negociar constantemente com o Poder Executivo, o que resultava numa
assimetria exagerada a favor do governo.
Em nome de uma justa reivindicação de maior
equilíbrio entre os poderes, modificações no presidencialismo de coalizão foram
feitas no início do segundo governo Dilma. Só que o momento de grave crise
institucional resultou num exagero contrário: várias mudanças legais aumentaram
vertiginosamente o volume de recursos nas mãos dos congressistas - R$ 50
bilhões em emendas em 2025 - e, o mais grave, pioraram a qualidade do gasto.
Reduziu-se enormemente a transparência e rastreabilidade dessas despesas, tendo
como exemplos mais cabais desse retrocesso o chamado orçamento secreto e as
“emendas Pix”.
Além disso, após 30 anos em que houve aumento
do planejamento e impessoalidade da distribuição de recursos, uma parte
expressiva do Orçamento federal começou a ser utilizada de forma perversa, sem
diálogo com os objetivos do país, o que enfraquece a qualidade das políticas
públicas. Essa soma tão grande de recursos aumentou o poder dos congressistas
em suas bases, enfraqueceu o Executivo federal e tornou os prefeitos muito
dependentes dos deputados e senadores.
Isso para não falar das denúncias de corrupção
e/ou mau uso dos recursos públicos ou da suspeita de que tais verbas públicas
estão servindo, na verdade, para financiamento das candidaturas dos próprios
congressistas. Criou-se um círculo vicioso de reprodução oligárquica dos que já
estão eleitos, reduzindo a competição democrática pelas cadeiras do Congresso
Nacional.
Reformar esse emendismo oligárquico é uma
tarefa essencial para que o Estado brasileiro se torne mais republicano,
eficiente e efetivo. O Congresso Nacional já tem as funções nobres de debater a
agenda do país, defender o regime democrático, legislar e fiscalizar o governo.
O aumento do seu espaço na execução de políticas públicas está afetando
negativamente a qualidade da gestão pública em todos os níveis da federação.
Sem mudar esse modelo, ademais, o país não elegerá melhores congressistas.
O aperfeiçoamento do funcionamento federativo
é uma segunda agenda central para o Brasil. Dois riscos estão presentes
atualmente. O primeiro é o de repassar custos de um ente para outro. Isso ocorre
quando o plano federal cria novas despesas para os governos estaduais e,
sobretudo, municipais sem a correspondente transferência financeira. O país é
muito desigual e heterogêneo, de modo que políticas nacionais precisam ser bem
calibradas em termos de recursos públicos. Mas também há o caso reverso:
estados e municípios em alguns momentos fazem o “jogo de empurra”,
transferindo, irresponsavelmente, dívidas e outros gastos para a União pagar a
conta.
A ausência de coordenação federativa é outro
risco, fenômeno presente em várias áreas governamentais. É preciso ampliar a
cooperação entre os entes porque muitas questões coletivas precisam, em maior
ou menor grau, de uma gestão compartilhada que combine bem parâmetros nacionais
com a descentralização customizada da resolução dos problemas. O SUS é o melhor
exemplo de boa colaboração intergovernamental e agora a educação poderá seguir
essa mesma trilha, com suas especificidades, com o recém-criado Sistema
Nacional de Educação.
A segurança pública está mais distante da
coordenação federativa, pois a ideia dominante nessa área é, conceitualmente, a
de um federalismo de cercados - cada nível de governo faz coisas que não se
comunicam entre si. Tal modelo tornou-se ainda mais prejudicial ao país com o
crescimento estrondoso do crime organizado.
Nenhum estado sozinho conseguirá competir com
essas máfias e milícias, uma vez que elas têm hoje uma dimensão nacional. Sem
uma política de colaboração intergovernamental forte, com o necessário apoio de
forças federais que abarquem todo o território brasileiro, o gasto público será
ineficiente e inefetivo.
Somente fóruns federativos com representação
de todos os entes, num diálogo constante com a sociedade, poderão aumentar a
qualidade do gasto público num país tão heterogêneo. Combater a dengue ou a
criminalidade organizada, criar uma política ampla de primeira infância,
construir uma infraestrutura interligando estados e reduzir os efeitos da
mudança climática são despesas que o Estado brasileiro terá de fazer nos próximos
anos. O sucesso desse processo depende da colaboração intergovernamental.
A reformulação do modelo institucional de
Orçamento, tornando-o uma peça que interliga claramente os insumos com os
resultados, é a terceira agenda urgente. A lei que ainda dá os principais
contornos à peça orçamentária, especialmente em sua execução, é de 1964! Muita
coisa mudou de lá para cá, com o aumento das demandas por transparência,
agilidade, transversalidade, intersetorialidade, customização e desempenho,
tanto no nível da qualidade como no da equidade. Houve muitas reformas de
gestão pública, além da criação de um “welfare state” amplo e complexo, e ainda
assim permaneceu um modelo burocratizante de organização do fluxo
orçamentário-financeiro. Precisa-se de um novo paradigma, capaz de avaliar e
aprender com a implementação das políticas públicas.
Para terminar esse processo reformista, o
grande desafio é compatibilizar justiça e equilíbrio orçamentários no plano
fiscal. Ter um sistema tributário mais progressivo, reduzir privilégios de
estamentos estatais, diminuir renúncias fiscais que não resultam em ganhos
econômicos generalizados, além de melhorar a gestão das despesas públicas, são
um ponto de partida para se ter um orçamento que priorize o combate às
desigualdades e amplie as oportunidades dos cidadãos, especialmente os mais
vulneráveis. Sem essa agenda, não há como manter a legitimidade dos ajustes das
contas públicas por muito tempo.
Um modelo de justiça republicana e
democrática do Orçamento, contudo, não pode partir do pressuposto de que as
despesas podem sempre crescer infinitamente. Casar o equilíbrio orçamentário
com a estabilidade das regras é uma tarefa ainda não realizada no Brasil. Não
dá mais para todo ano procurar receitas em vários lugares e fazer cortes sem
saber qual será o padrão de gasto público futuro.
Daí que o sucesso do próximo governo, e da
década seguinte do país, dependerá fortemente de um modelo de longo prazo que
compatibilize justiça e equilíbrio fiscais. Por isso, esse assunto deveria sair
do olhar dicotômico para uma proposta integradora. Teremos líderes políticos
capazes de construir esse projeto? Eis aí um debate realmente relevante, capaz
de nos tirar de polarizações forçadas.

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