Folha de S. Paulo
Responsabilizar os crimes do regime militar
não é revanche, é condição para o fortalecimento da democracia
Não apenas serve de exemplo para evitar novas investidas como pode ser o pontapé para reformar as forças de segurança
Há 50 anos, em 25 de outubro de 1975, Vladimir
Herzog foi torturado até a morte pela ditadura
militar. Cinco décadas depois, os autores desses e outros crimes
seguem sem ser responsabilizados.
No julgamento da trama golpista de 8 de Janeiro, o ministro Alexandre de Moraes afirmou, corretamente, que "a impunidade, a omissão e a covardia não são opções para a pacificação, pois o caminho aparentemente mais fácil deixa cicatrizes traumáticas na sociedade e corrói a democracia". Em meio à mobilização por anistia, Moraes asseverou que a não responsabilização significaria o "incentivo a novas tentativas de golpe".
As palavras do ministro, contudo, contrastam
com a posição do STF que,
em 2010, decidiu que a Lei de
Anistia de 1979 poderia beneficiar agentes do Estado envolvidos
em crimes cometidos durante o regime militar. Desde então, dezenas de denúncias
criminais contra agentes da ditadura por tortura, estupro, sequestro, execução
e desaparecimento forçado têm esbarrado no precedente do Supremo Tribunal
Federal, permitindo que muitos réus, como o coronel
Carlos Brilhante Ustra, alcancem o fim da vida sem ter enfrentado as
consequências de seus crimes.
A leitura distorcida adotada pelo STF vai na
contramão das decisões da Corte Interamericana de Direitos Humanos, que
condenou o Brasil nos casos Gomes Lund (2010)
e Vladimir Herzog (2018) e que já consolidou que anistias não podem beneficiar
autores de graves violações de direitos humanos.
Apesar das pressões, essa temática pouco
avançou. Há 15 anos a sociedade brasileira aguarda o julgamento da ADPF 320,
que demanda ao STF a revisão da matéria, considerando os compromissos
internacionais assumidos pelo Brasil. Hoje, novos recursos, relatados pelos
ministros Flávio Dino e
Alexandre de Moraes, podem alterar esse quadro —antes que não haja mais
possibilidade de responsabilização.
Como o próprio ministro Moraes apontou, a
impunidade para os golpistas do passado serviu de incentivo para novas
conspirações contra o Estado democrático de Direito. Mas, para além do 8 de
Janeiro, a ausência de responsabilização de 1979 se faz sentir ainda no
cotidiano de terras indígenas, favelas e periferias do país, onde agentes do
Estado seguem promovendo, impunemente, violações de direitos.
Responsabilizar os crimes da ditadura não é
revanche; é condição para o fortalecimento da democracia. A responsabilização
dos que atentaram contra o Estado de Direito no passado e no presente não
apenas serve de exemplo para evitar novas investidas autoritárias como pode ser
o pontapé inicial de um processo de reformas institucionais nas nossas forças
de segurança, que seguem atuando como se a democracia não tivesse chegado a
determinados territórios.
Mais do que ninguém, o Supremo sabe, hoje,
que a impunidade e a omissão deixam cicatrizes traumáticas. É dele a chance de
reparar as incorreções interpretativas da Lei de
Anistia de 1979 para responsabilizar os torturadores e assassinos
da ditadura.
Aline Miklos
Coordenadora da área de advocacy do Instituto Vladimir Herzog
Belisário dos Santos Jr
Membro da Comissão Arns
Carla Osmo
Coordenadora da Clínica de Direitos Humanos da Unifesp
Gabriel Sampaio
Diretor de Litigância e Incidência da Conectas Direitos Humanos
Lucas Pedretti
Coordenador da Coalizão Brasil Memória Verdade Justiça e Reparação

Nenhum comentário:
Postar um comentário