DEU NO VALOR ECONÔMICO
Devendo falar sobre a conjuntura política a certa altura de 2004, dei-me conta de que dezenove anos haviam passado desde o fim, em 1985, da ditadura militar - os mesmos dezenove anos que separaram o fim do Estado Novo, em 1945, do golpe de 1964. Lembrei-me então do espanto com que, aos vinte e poucos anos, tomei consciência, no início dos anos 1960, de que a séria perturbação da ordem legal e o eventual golpe militar eram coisas efetivamente possíveis, não obstante o que surgia até pouco antes a minha percepção juvenil como o longo e cabal amadurecimento institucional da democracia brasileira. Seria preciso tomar também com reservas a sensação de que a democracia de novo conquistada estava aí para ficar?
Li outro dia um texto do cientista político Gerald Gamm, de 2009, cujo tema é a emergência súbita de instituições duradouras ("sticky", justo como as nossas lei que "pegam"), com referência especial aos Estados Unidos no tempo de uma geração que vai de 1890 a 1915. Gamm salienta, no período, a implantação de mecanismos importantes para o funcionamento do Congresso, o surgimento, com Theodore Roosevelt, da "Presidência moderna" que busca o apoio direto do povo, a estabilização do sistema bipartidário que dura até hoje... À parte o que possa haver aí de erro ou acerto quanto aos EUA, também nós estamos a uma geração do marco que 1985 representa. Nossas instituições estarão "pegando"? Terá sido este um período especial?
Em coluna de um par de semanas atrás, dei resposta positiva a indagações de implicações parecidas dirigidas aos militares e seu papel político. As mudanças dramáticas na cena mundial, do enfrentamento capitalismo-socialismo e da Guerra Fria para a globalização e o colapso do socialismo, bem como as consequências domésticas dessas mudanças, compõem-se de maneira propícia com o que há de diretamente relevante para a superação das tensões de nosso "pretorianismo" em aspectos favoráveis da psicologia coletiva nas relações entre civis e militares. Sem embargo de que, na América Latina como um todo, dados sistemáticos indiquem ser possível falar de uma síndrome "progressista" cuja inclinação é antimilitar (e que sem dúvida transparece nas disputas atuais sobre a Lei de Anistia), as disposições populares no Brasil, como vimos (e como Cláudio Couto salientava em artigo no Valor de 4 de fevereiro sobre os dados da pesquisa CNT/Sensus divulgados há pouco), são antes simpáticas aos militares - e vale a aposta de que os próprios militares venham a superar o ânimo negativo e a cultura de "sublevação".
Mas há outros aspectos salientes quanto a 1985-2010. Internamente, pondo de lado o ramerrame das composições com "o atraso", talvez fatais, e das brigas partidárias, é difícil escapar à percepção de que o período acaba marcado por lideranças especiais. Cada um exibindo suas próprias deficiências, se se quiser, o fato é que dezesseis anos de Fernando Henrique Cardoso e Luiz Inácio Lula da Silva redundam em algo extraordinário não só em confronto com nossos anos de chumbo. E temos não apenas os êxitos das políticas econômicas e sociais, culminando na elevação do status do próprio país na cena mundial: especialmente com a experiência do acesso à Presidência do líder operário de um partido de esquerda, de programa socializante e retórica radical, que chega ao fim do segundo mandato num quadro de normalidade assegurado pelo aprendizado de equilíbrio e moderação, é visível que a democracia brasileira, com um aprendizado mais geral, alcança novo patamar institucional. Ainda que seja tarefa inacabada a consolidação de partidos consistentes, mesmo se tomados como meros objetos de identificação estável por parte de eleitores cujas deficiências herdadas de nosso lastro social negativo os tornam amplamente desatentos à política.
Por certo, o panorama mundial alterado favorece de modo decisivo os desenvolvimentos positivos. Mas é importante notar que a alteração ocorrida sofre vaivéns cujo sentido não é inequívoco do ponto de vista da dinâmica e dos ajustes domésticos. Escrevendo na segunda metade dos anos 1980, Fritz Scharpf podia convidar ao reconhecimento de que o que surgia então como a derrota dos socialdemocratas em sua luta distributiva seria irreversível, e que sua hora só poderia ressurgir se e quando, depois de um período de prosperidade, a política viesse a ter de novo como foco a distribuição dos ganhos do crescimento capitalista que a economia da oferta e o "darwinismo de mercado" tornavam impossível reclamar naquele momento. Ora, temos agora, em vários países centrais, o foco da política levado "além" da distribuição dos ganhos para a reparação das perdas populares com a crise gigantesca do capitalismo e o socorro trazido pelo Estado. E o Brasil do fim do período 1985-2010 é reconhecido não só como "potência emergente" e democracia estável, mas até mesmo, com seu Estado regulador e economicamente ativo, como receita a ser estudada na busca mundial de equilíbrio econômico.
Resta uma reserva crucial. Se este é o período em que a democracia político-eleitoral veio a articular-se de forma aparentemente definitiva com a "questão social" e com inédito empenho de redistribuição, ele é também o período em que a tranquilidade de um Brasil desigual e ainda amplamente oligárquico e compartimentado veio a conviver de maneira cada vez mais intensa com a violência, como efeito da transformação socioeconômica, da enorme expansão das cidades e de seus correlatos psicologicamente mobilizadores. Oxalá o dinamismo econômico e políticas educacionais efetivas possam vir a mudar o substrato em que esse efeito se assenta, no qual a singularidade negativa contida em nosso legado escravista maciço tem prevalecido sobre o lado positivo que se pode pretender apontar nele: a promessa de convivência pluralista e solidária, com fundações socioeconômicas sólidas.
Fábio Wanderley Reis é cientista político e professor emérito da Universidade Federal de Minas Gerais. Escreve às segundas-feiras
Devendo falar sobre a conjuntura política a certa altura de 2004, dei-me conta de que dezenove anos haviam passado desde o fim, em 1985, da ditadura militar - os mesmos dezenove anos que separaram o fim do Estado Novo, em 1945, do golpe de 1964. Lembrei-me então do espanto com que, aos vinte e poucos anos, tomei consciência, no início dos anos 1960, de que a séria perturbação da ordem legal e o eventual golpe militar eram coisas efetivamente possíveis, não obstante o que surgia até pouco antes a minha percepção juvenil como o longo e cabal amadurecimento institucional da democracia brasileira. Seria preciso tomar também com reservas a sensação de que a democracia de novo conquistada estava aí para ficar?
Li outro dia um texto do cientista político Gerald Gamm, de 2009, cujo tema é a emergência súbita de instituições duradouras ("sticky", justo como as nossas lei que "pegam"), com referência especial aos Estados Unidos no tempo de uma geração que vai de 1890 a 1915. Gamm salienta, no período, a implantação de mecanismos importantes para o funcionamento do Congresso, o surgimento, com Theodore Roosevelt, da "Presidência moderna" que busca o apoio direto do povo, a estabilização do sistema bipartidário que dura até hoje... À parte o que possa haver aí de erro ou acerto quanto aos EUA, também nós estamos a uma geração do marco que 1985 representa. Nossas instituições estarão "pegando"? Terá sido este um período especial?
Em coluna de um par de semanas atrás, dei resposta positiva a indagações de implicações parecidas dirigidas aos militares e seu papel político. As mudanças dramáticas na cena mundial, do enfrentamento capitalismo-socialismo e da Guerra Fria para a globalização e o colapso do socialismo, bem como as consequências domésticas dessas mudanças, compõem-se de maneira propícia com o que há de diretamente relevante para a superação das tensões de nosso "pretorianismo" em aspectos favoráveis da psicologia coletiva nas relações entre civis e militares. Sem embargo de que, na América Latina como um todo, dados sistemáticos indiquem ser possível falar de uma síndrome "progressista" cuja inclinação é antimilitar (e que sem dúvida transparece nas disputas atuais sobre a Lei de Anistia), as disposições populares no Brasil, como vimos (e como Cláudio Couto salientava em artigo no Valor de 4 de fevereiro sobre os dados da pesquisa CNT/Sensus divulgados há pouco), são antes simpáticas aos militares - e vale a aposta de que os próprios militares venham a superar o ânimo negativo e a cultura de "sublevação".
Mas há outros aspectos salientes quanto a 1985-2010. Internamente, pondo de lado o ramerrame das composições com "o atraso", talvez fatais, e das brigas partidárias, é difícil escapar à percepção de que o período acaba marcado por lideranças especiais. Cada um exibindo suas próprias deficiências, se se quiser, o fato é que dezesseis anos de Fernando Henrique Cardoso e Luiz Inácio Lula da Silva redundam em algo extraordinário não só em confronto com nossos anos de chumbo. E temos não apenas os êxitos das políticas econômicas e sociais, culminando na elevação do status do próprio país na cena mundial: especialmente com a experiência do acesso à Presidência do líder operário de um partido de esquerda, de programa socializante e retórica radical, que chega ao fim do segundo mandato num quadro de normalidade assegurado pelo aprendizado de equilíbrio e moderação, é visível que a democracia brasileira, com um aprendizado mais geral, alcança novo patamar institucional. Ainda que seja tarefa inacabada a consolidação de partidos consistentes, mesmo se tomados como meros objetos de identificação estável por parte de eleitores cujas deficiências herdadas de nosso lastro social negativo os tornam amplamente desatentos à política.
Por certo, o panorama mundial alterado favorece de modo decisivo os desenvolvimentos positivos. Mas é importante notar que a alteração ocorrida sofre vaivéns cujo sentido não é inequívoco do ponto de vista da dinâmica e dos ajustes domésticos. Escrevendo na segunda metade dos anos 1980, Fritz Scharpf podia convidar ao reconhecimento de que o que surgia então como a derrota dos socialdemocratas em sua luta distributiva seria irreversível, e que sua hora só poderia ressurgir se e quando, depois de um período de prosperidade, a política viesse a ter de novo como foco a distribuição dos ganhos do crescimento capitalista que a economia da oferta e o "darwinismo de mercado" tornavam impossível reclamar naquele momento. Ora, temos agora, em vários países centrais, o foco da política levado "além" da distribuição dos ganhos para a reparação das perdas populares com a crise gigantesca do capitalismo e o socorro trazido pelo Estado. E o Brasil do fim do período 1985-2010 é reconhecido não só como "potência emergente" e democracia estável, mas até mesmo, com seu Estado regulador e economicamente ativo, como receita a ser estudada na busca mundial de equilíbrio econômico.
Resta uma reserva crucial. Se este é o período em que a democracia político-eleitoral veio a articular-se de forma aparentemente definitiva com a "questão social" e com inédito empenho de redistribuição, ele é também o período em que a tranquilidade de um Brasil desigual e ainda amplamente oligárquico e compartimentado veio a conviver de maneira cada vez mais intensa com a violência, como efeito da transformação socioeconômica, da enorme expansão das cidades e de seus correlatos psicologicamente mobilizadores. Oxalá o dinamismo econômico e políticas educacionais efetivas possam vir a mudar o substrato em que esse efeito se assenta, no qual a singularidade negativa contida em nosso legado escravista maciço tem prevalecido sobre o lado positivo que se pode pretender apontar nele: a promessa de convivência pluralista e solidária, com fundações socioeconômicas sólidas.
Fábio Wanderley Reis é cientista político e professor emérito da Universidade Federal de Minas Gerais. Escreve às segundas-feiras
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