segunda-feira, 8 de fevereiro de 2010

Do ''lulismo'' ao ''rousseffismo'' :: Marcelo de Paiva Abreu

DEU EM O ESTADO DE S. PAULO

Em análises recentes das mutações sofridas, desde 2002, pela estratégia política do presidente Lula, têm sido destacados contrastes entre o "petismo" pré 2002, sucedido pelo "lulismo" com tintas bonapartistas. A análise deixa de sublinhar as mudanças essenciais que sofreu o "lulismo" em sua transição para o "roussefismo".

É difícil, entretanto, concordar com o diagnóstico de que o "petismo" teria sido ejetado quando Lula concordou em assinar a Carta ao Povo Brasileiro, traindo o programa do Partido dos Trabalhadores (PT). De fato, a ocasião foi uma magnífica oportunidade para que Lula pudesse escapar a compromissos programáticos estapafúrdios, atribuindo a guinada à crise que se agravava.

É preciso não deixar de levar em conta as dificuldades que seriam enfrentadas caso tivesse sido adotada a política econômica coerente com o programa do partido. Lula, caso eleito, enfrentaria enormes turbulências e pagaria o custo político de ter arruinado a estabilização que havia herdado. O cenário de um governo Lula 2003-2006 fiel ao programa do PT é inverossímil.

Mais convincente é a interpretação de que o "petismo" foi, de fato, abandonado quando a crise do "mensalão" explicitou claramente que o PT não poderia cumprir o papel de inspirador para que os demais partidos amadurecessem suas práticas políticas. A metáfora eficaz é a da "queda de um anjo".

Com a fragilização do PT como partido coerente e sério, ganhou força o lado pragmático, turbinado por suas propensões ao protagonismo populista - já em parte explicitadas, por exemplo, pela exacerbação da diplomacia presidencial com ênfase na pirotecnia. Esse lulismo versão 1.0, que persistiu até o final de 2007, foi bastante eficaz ao combinar a exploração do prestígio do presidente - oriundo de sua espetacular trajetória de retirante-metalúrgico-presidente - com a adoção de políticas econômicas prudentes.

A partir daí tornou-se dominante a temática sucessória, gerando a transição para o lulismo versão 2.0. A inviabilização dos possíveis candidatos mais consistentes do PT - José Dirceu e Antonio Palocci - gerou a crise do "petismo". Após consideração dos custos e benefícios de uma campanha pelo terceiro mandato, o presidente Lula, em espetacular "dedazo", ungiu Dilma Rousseff como candidata.

O lulismo versão 2.0 baseou-se em mais protagonismo, culminando em escancarada campanha eleitoral com uso da máquina federal.

As demandas eleitoreiras tiveram, além disso, impacto na postura fiscal do governo, com significativo aumento de despesas. A crise econômica mundial criou condições para que se alegasse que o aumento de gastos configurava política anticíclica, embora boa parte da expansão da despesa seja irreversível. Apesar de o compromisso com a adoção de uma política monetária prudente ter sido em grande medida preservado, tornou-se evidente a fadiga do Banco Central, em fricção permanente com o restante do governo.

Caso o presidente Lula tenha sucesso em assegurar a eleição da sua sucessora, haverá, necessariamente, mudança radical no estilo, e também da substância, da ação governamental. O que seria o "roussefismo" comparado ao "lulismo"? Até mesmo por circunstâncias biográficas, a projeção externa da nova presidente seria menos proeminente do que a de Lula, implicando custos não desprezíveis de reconversão de estilo de atuação. Internamente, os custos de transição terão que ver com o grande contraste entre criador e criatura quando se trata de capacidade de articulação política e de definição estratégica.

Ao contrário de Lula, a candidata dependerá crucialmente do seu chefe da Casa Civil, presumível articulador político e acomodador de atritos na esteira da veemência presidencial. Há aí vários subcenários que vão desde Antonio Palocci até Marco Aurélio Garcia.

Os contrastes entre os prováveis estilos de atuação nesses dois casos polares são uma indicação das incertezas implícitas no "roussefismo". Palocci, emblemático do lulismo 1.0. Garcia, circunscrito ao neo-bolivarianismo durante todo o governo Lula, mais alinhado ao "petismo".

No que diz respeito a assuntos econômicos, enquanto Lula buscou preservar a ambiguidade entre diferentes correntes de seu governo em relação à política econômica, a candidata sempre se alinhou entre os que defendiam, com vigor, o aumento de gastos e o afrouxamento da política monetária. Explicitou, em diversas ocasiões, o seu banzo pelos velhos tempos, mesmo que fardados, em que havia ênfase adequada em desenvolvimento com papel proeminente do Estado. Dilma Rousseff, embora neófita no PT, está mais alinhada ao "petismo" do que o próprio Lula.

Não é surpreendente que muitos eleitores considerem pouco atraente o que se pode antever como "roussefismo". Dadas as incertezas e, pior ainda, as certezas, a busca de alternativas é compulsória. Mesmo porque há que levar em conta o ponderável argumento da alternância como incentivo para não prorrogar a hegemonia da atual coalizão política.

Alternância seria algo essencial para interromper o aparelhamento do Estado que marcou os dois mandatos de Lula. E também para reavaliar as políticas públicas adotadas desde 2003, preservando as que têm mérito distributivo e ajustando as que constituem mera extração de benesses do Estado.

Para embasar um voto consciente é essencial, no entanto, que seja rompido o silêncio do candidato da oposição. Quanto à economia, só se espera que o trailer propiciado por Sérgio Guerra não tenha sido fiel ao filme.

*Marcelo de Paiva Abreu, Ph.D. em Economia pela Universidade de Cambridge, é professor titular do Departamento de Economia da PUC-Rio

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