DEU EM O ESTADO DE S. PAULO
A seu modo, José Serra apontou para um problema real ao declarar que o governo da Bolívia faz "corpo mole" no combate ao tráfico de cocaína.
Dados do United Nations Office on Drugs and Crimes, para a Bolívia, mostram que a área plantada com folhas de coca tem aumentado sistematicamente desde 2001, passando de 21 mil hectares naquele ano para 30 mil hectares em 2008, um crescimento de 43%. Para o ano de 2009, a Drug Enforcement Administration (DEA), órgão do governo americano, informa que a área plantada teria alcançado 35 mil hectares. Trata-se de área muito superior aos 12 mil hectares permitidos por uma lei de 1988, mesmo quando acrescida dos 3.200 hectares adicionais autorizados para a região do Chapare, no Departamento de Cochabamba, em 2004. O mesmo órgão das Nações Unidas estima que a capacidade de produção de folha de coca, assim como de cocaína, elevou-se em quase 100%, ou seja, praticamente dobrou entre 2001 e 2008. A tendência antecede a posse de Evo Morales, mas se acelerou depois dela, apesar da erradicação anual de 6 mil hectares de plantações de coca, segundo dados da Fuerza Especial de Lucha contra el Narcotráfico, órgão do governo boliviano.
O país vizinho responde por cerca de 30% das quase 100 mil toneladas da droga que ingressam no Brasil anualmente.
"Coca, sim; cocaína, não" é o lema da política de Evo Morales em relação ao tema. Se a cocaína merece combate, o cultivo da folha de coca para usos lícitos recebe apoio do governo boliviano. Para tanto se invoca a sua importância cultural (trata-se de tradição dos povos do altiplano, considerada pela nova Constituição um patrimônio cultural da Bolívia) e social (é cultivada por pequenos agricultores). A questão tem também dimensão política. Não apenas por serem os "cocaleros" berço político e base de apoio de Morales, até hoje presidente honorário da federação dos plantadores de coca da região do Chapare, mas também porque a folha funciona como símbolo poderoso. Ela faz o elo entre a tradição anterior à conquista espanhola e o projeto contemporâneo de obtenção da verdadeira independência. É elemento essencial de um discurso político que busca no passado pré-colombiano as origens étnicas que permitiriam a refundação da Bolívia como Estado pluriétnico de maioria indígena. O antagonismo principal não é mais com a Coroa espanhola, mas com os EUA, identificados com a criminalização da folha de coca, no plano internacional, e com as ações de erradicação do seu cultivo nos anos 1990, foco de tensões políticas e sociais em meio às quais Morales se projetou da cena sindical para a cena nacional com liderança política.
Em termos práticos, Morales substituiu a política de erradicação - que reduziu drasticamente a área plantada, sem, contudo, estruturar alternativas economicamente viáveis ao cultivo da folha de coca - por uma política de negociação com associações de "cocaleros", que se revelou permissiva em relação à expansão da área plantada. Ao mesmo tempo, seu governo e seu partido, majoritário agora nas duas Casas do Congresso, movimentam-se para ampliar o limite legal para o cultivo de coca. No final de 2008, alegando que os EUA fomentavam movimentos "separatistas" nos Departamentos com governos de oposição, Morales determinou a expulsão dos agentes da DEA, que colaborava com serviços de inteligência no combate ao narcotráfico. À colaboração preferiu, por razões políticas, o confronto.
O crescimento da área plantada encontra justificativa num pretendido aumento futuro da utilização lícita da folha de coca para produção de manufaturados (licores, chás, sabões, remédios, etc.), não apenas para consumo interno, mas também para exportação (de manufaturados e da folha in natura). Daí a solicitação do governo boliviano para que a ONU distinga claramente a cocaína da folha de coca e seus derivados lícitos. De qualquer forma, a viabilidade da industrialização em larga escala da folha de coca é vista com ceticismo por analistas independentes.
Simpatias políticas à parte, a pergunta que se coloca é se é possível combater o tráfico de cocaína com complacência quanto ao aumento do cultivo da folha de coca em volumes muito superiores à sua absorção para fins lícitos e sem a colaboração da DEA, para a qual a União Europeia, mais bem vista que os EUA na Bolívia, não oferece substituto à altura. A resposta deve considerar a lucratividade do tráfico de drogas e o poder do crime organizado, fatores bem mais reais e concretos do que os desejos de industrializar a Bolívia manufaturando produtos à base de coca.
Trata-se de um problema a que o Brasil não pode ficar indiferente, em vista da facilidade de ingresso da cocaína pela imensa fronteira seca que temos com a Bolívia e dos danos que a cocaína e o crack produzem na sociedade brasileira. Acerta o governo ao firmar acordo que facilita cooperação entre a Polícia Federal e as autoridades bolivianas. Medida importante, mas tímida diante do problema. Decisivo seria dar prioridade ao controle de fronteiras, com a extensão do Sistema de Vigilância da Amazônia (Sivam), que não cobre a fronteira com a Bolívia. Sem dúvida, mais importante para a segurança do País do que ter aviões-caça de última geração. Por fim, cabe à diplomacia brasileira, em nome do interesse nacional, por meios e modos adequados às relações entre países amigos, pôr em questão a política de Evo Morales para um tema que transcende em muito as fronteiras da Bolívia.
Se a declaração de Serra foi "irresponsável", como buscaram caracterizá-la membros do governo e sua candidata, o que dizer da visita do presidente brasileiro à região do Chapare, em novembro de 2009, às vésperas das eleições gerais bolivianas, quando Lula subiu em palanque de Evo Morales ostentando um colar com folhas de coca?
Diretor Executivo do IFHC, é membro do GACINT-USP.
A seu modo, José Serra apontou para um problema real ao declarar que o governo da Bolívia faz "corpo mole" no combate ao tráfico de cocaína.
Dados do United Nations Office on Drugs and Crimes, para a Bolívia, mostram que a área plantada com folhas de coca tem aumentado sistematicamente desde 2001, passando de 21 mil hectares naquele ano para 30 mil hectares em 2008, um crescimento de 43%. Para o ano de 2009, a Drug Enforcement Administration (DEA), órgão do governo americano, informa que a área plantada teria alcançado 35 mil hectares. Trata-se de área muito superior aos 12 mil hectares permitidos por uma lei de 1988, mesmo quando acrescida dos 3.200 hectares adicionais autorizados para a região do Chapare, no Departamento de Cochabamba, em 2004. O mesmo órgão das Nações Unidas estima que a capacidade de produção de folha de coca, assim como de cocaína, elevou-se em quase 100%, ou seja, praticamente dobrou entre 2001 e 2008. A tendência antecede a posse de Evo Morales, mas se acelerou depois dela, apesar da erradicação anual de 6 mil hectares de plantações de coca, segundo dados da Fuerza Especial de Lucha contra el Narcotráfico, órgão do governo boliviano.
O país vizinho responde por cerca de 30% das quase 100 mil toneladas da droga que ingressam no Brasil anualmente.
"Coca, sim; cocaína, não" é o lema da política de Evo Morales em relação ao tema. Se a cocaína merece combate, o cultivo da folha de coca para usos lícitos recebe apoio do governo boliviano. Para tanto se invoca a sua importância cultural (trata-se de tradição dos povos do altiplano, considerada pela nova Constituição um patrimônio cultural da Bolívia) e social (é cultivada por pequenos agricultores). A questão tem também dimensão política. Não apenas por serem os "cocaleros" berço político e base de apoio de Morales, até hoje presidente honorário da federação dos plantadores de coca da região do Chapare, mas também porque a folha funciona como símbolo poderoso. Ela faz o elo entre a tradição anterior à conquista espanhola e o projeto contemporâneo de obtenção da verdadeira independência. É elemento essencial de um discurso político que busca no passado pré-colombiano as origens étnicas que permitiriam a refundação da Bolívia como Estado pluriétnico de maioria indígena. O antagonismo principal não é mais com a Coroa espanhola, mas com os EUA, identificados com a criminalização da folha de coca, no plano internacional, e com as ações de erradicação do seu cultivo nos anos 1990, foco de tensões políticas e sociais em meio às quais Morales se projetou da cena sindical para a cena nacional com liderança política.
Em termos práticos, Morales substituiu a política de erradicação - que reduziu drasticamente a área plantada, sem, contudo, estruturar alternativas economicamente viáveis ao cultivo da folha de coca - por uma política de negociação com associações de "cocaleros", que se revelou permissiva em relação à expansão da área plantada. Ao mesmo tempo, seu governo e seu partido, majoritário agora nas duas Casas do Congresso, movimentam-se para ampliar o limite legal para o cultivo de coca. No final de 2008, alegando que os EUA fomentavam movimentos "separatistas" nos Departamentos com governos de oposição, Morales determinou a expulsão dos agentes da DEA, que colaborava com serviços de inteligência no combate ao narcotráfico. À colaboração preferiu, por razões políticas, o confronto.
O crescimento da área plantada encontra justificativa num pretendido aumento futuro da utilização lícita da folha de coca para produção de manufaturados (licores, chás, sabões, remédios, etc.), não apenas para consumo interno, mas também para exportação (de manufaturados e da folha in natura). Daí a solicitação do governo boliviano para que a ONU distinga claramente a cocaína da folha de coca e seus derivados lícitos. De qualquer forma, a viabilidade da industrialização em larga escala da folha de coca é vista com ceticismo por analistas independentes.
Simpatias políticas à parte, a pergunta que se coloca é se é possível combater o tráfico de cocaína com complacência quanto ao aumento do cultivo da folha de coca em volumes muito superiores à sua absorção para fins lícitos e sem a colaboração da DEA, para a qual a União Europeia, mais bem vista que os EUA na Bolívia, não oferece substituto à altura. A resposta deve considerar a lucratividade do tráfico de drogas e o poder do crime organizado, fatores bem mais reais e concretos do que os desejos de industrializar a Bolívia manufaturando produtos à base de coca.
Trata-se de um problema a que o Brasil não pode ficar indiferente, em vista da facilidade de ingresso da cocaína pela imensa fronteira seca que temos com a Bolívia e dos danos que a cocaína e o crack produzem na sociedade brasileira. Acerta o governo ao firmar acordo que facilita cooperação entre a Polícia Federal e as autoridades bolivianas. Medida importante, mas tímida diante do problema. Decisivo seria dar prioridade ao controle de fronteiras, com a extensão do Sistema de Vigilância da Amazônia (Sivam), que não cobre a fronteira com a Bolívia. Sem dúvida, mais importante para a segurança do País do que ter aviões-caça de última geração. Por fim, cabe à diplomacia brasileira, em nome do interesse nacional, por meios e modos adequados às relações entre países amigos, pôr em questão a política de Evo Morales para um tema que transcende em muito as fronteiras da Bolívia.
Se a declaração de Serra foi "irresponsável", como buscaram caracterizá-la membros do governo e sua candidata, o que dizer da visita do presidente brasileiro à região do Chapare, em novembro de 2009, às vésperas das eleições gerais bolivianas, quando Lula subiu em palanque de Evo Morales ostentando um colar com folhas de coca?
Diretor Executivo do IFHC, é membro do GACINT-USP.
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