No filme chileno "No", ainda em cartaz, conta-se a história do referendo que marcou a transição do autoritarismo para a democracia no país vizinho. Em 1988, depois de quase 14 anos no poder, o ditador Augusto Pinochet foi levado pela pressão da comunidade internacional a realizar uma consulta popular para legitimar o seu regime. Com o controle do aparato estatal e a força bruta da intimidação, Pinochet tinha tudo para vencer o referendo. A campanha do "Sí", que defendia a continuidade de seu governo, era favorita e poucos imaginavam em uma reviravolta. Até que a entrada de um publicitário na campanha do "No" (interpretado pelo ator Gael Garcia Bernal) começa a incomodar e a mudar os humores da opinião pública - o que acabou por decretar o fim dos anos de chumbo do general, dois anos depois.
Um dos grandes méritos do filme é mostrar os bastidores das divergências entre o publicitário e os principais líderes da oposição. Enquanto o marqueteiro queria construir uma campanha otimista, bem-humorada, para cima - nos cânones da publicidade comercial de um mero refrigerante - a discórdia se instalou entre os políticos.
Para alguns, era inaceitável que os horrores, as torturas, os desaparecimentos perpetrados pela ditadura não constassem das peças exibidas contra o regime na TV. O marqueteiro, cioso do que vende e do que não vende na cabeça de um consumidor, resistia: o clima pesado é pouco atraente, assusta. Os dirigentes partidários contra-argumentavam, dizendo que não se tratava de convencer bebedores de coca-cola, mas cidadãos. O tom da campanha era um desrespeito e um acinte à história de luta dos milhares que tombaram durante a ditadura.
Seu papel é de um vendedor que oferece o Brasil ao mercado
Para o publicitário, o que estava em jogo era simplesmente uma questão de propaganda. E propaganda é, acima de tudo, otimismo. Não se deveria falar do passado, mas do futuro. A tão desejada democracia estava logo ali à frente, ao alcance de todos. Bastava responder "No", com os dedos da mão, no dia do referendo, tal qual o movimento dos limpadores de parabrisa dos automóveis em dia de chuva. A democracia vem depois da tormenta e tem as cores do arco-íris, transformado em símbolo da campanha - uma total inversão do que se esperaria de um movimento de oposição. A estratégia confunde os pinochetistas. Um ministro chega a perguntar a um dos marqueteiros da campanha do "Sí": "Mas arco-íris não é coisa de gay (maricón)?"
Sem preconceito moral ou político, o marqueteiro usou elementos da cultura pop e do capitalismo como armas a favor de uma causa em cuja linha de frente estavam velhos militantes socialistas e comunistas.
É certo que o filme toma "liberdades poéticas" em relação aos personagens reais e ao que de fato aconteceu durante o plebiscito. Mas o quadro geral não altera a mensagem principal: a de como princípios políticos estão sujeitos à diluição quando a tarefa maior é conquistar a opinião pública (ou um mercado qualquer).
No Brasil, um ano depois do referendo chileno, em 1989, a campanha do PT à Presidência - a primeira depois da redemocratização - já entendia a necessidade de uma linguagem leve, como a paródia dos telejornais da TV Globo, para vender a candidatura do então ferrenho opositor Luiz Inácio Lula da Silva.
Com o discurso tonitruante e raivoso, Lula metia medo em boa parte da população e não passaria da barreira dos 30% até que na quarta eleição, em 2002, venceu com uma estratégia radicalmente diferente. A mudança começou primeiro na política, com a aliança inédita com um partido de direita, o PL (hoje PR), cujo vice foi o empresário José Alencar. Depois, o marketing alterou a forma. O candidato era de oposição, mas a imagem, criada por Duda Mendonça, era a do "Lulinha paz e amor", na mesma linha do arco-íris chileno.
É este mesmo Lula que continua a surpreender - em relação a seu passado - e a avançar em direção a uma visão mais pragmática do seu papel, agora como ex-presidente da República. É o que se depreende de sua entrevista ao Valor PRO - a primeira sobre política e economia que ele concede desde o fim de seu mandato.
O que mais chama a atenção é a franqueza com que o ex-presidente justifica suas palestras e viagens ao exterior pagas por empreiteiras brasileiras. "Viajo para vender confiança. Adoro fazer debate para mostrar que o Brasil vai dar certo. Compre no Brasil porque o país pode fazer as coisas. Esse é o meu lema. Se alguém tiver um produto brasileiro e tiver vergonha de vender, me dê que eu vendo. Não tenho nenhuma vergonha de continuar fazendo isso. Se for preciso vender carne, linguiça, carvão, faço com maior prazer", afirmou.
Desde que terminou seu mandato, Lula parece não ter a menor pretensão aristocrática de ser um estadista no sentido clássico. Seu projeto é popular, nacionalista e ao mesmo tempo burguês. Seu papel é de um vendedor que vai ao mercado mundial oferecer o Brasil, de um empreendedor, de um "self-made man" político e econômico. "Tem pouca gente com autoridade de ganhar dinheiro como eu, em função do governo bem-sucedido que fiz neste país", afirmou, sem revelar o valor cobrado por palestras.
No Brasil e no exterior, Lula é o dono do otimismo. Um otimismo, no entanto, que depende dos limites da disputa política interna. Se o PT fosse oposição, diria que o copo d"água está mais vazio do que cheio, como obrigatoriamente faz qualquer adversário do status quo.
Políticos não são proprietários do conteúdo de sua retórica da mesma forma que os marqueteiros são amarrados pela lógica da forma, geralmente otimista.
Lula foi inimigo do capitalismo enquanto agentes econômicos eram seus inimigos no mercado eleitoral. Uma vez selada a aliança interna e alcançada a hegemonia, rebaixa-se a ideologia. Os adversários agora são os chineses que querem vender seus produtos na África. Lula é o líder da cruzada. Tem o monopólio do otimismo que vende. E, assim, dá razão, aos que explicam a formação dos Estados nacionais como criações que servem de arma aos interesses organizados de grupos capitalistas.
Fonte: Valor Econômico.
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